Terça, 29 de janeiro de 2019
Salin Siddartha
No contexto de uma legislação
de exceção, até hoje em voga no Brasil, a Lei nº 7.170/1983, chamada Lei de
Segurança Nacional, destaca-se como um entulho dos tempos autoritários que
assolaram nosso país, conquanto o cenário conjuntural e estrutural hodierno
seja bem diferente do que redundou no Golpe Militar de 1964. Àquela época,
acontecia a “Guerra Fria”, estabelecedora de princípios restritivos ao
alinhamento de países no contexto global. Durante a Guerra Fria, os Estados
Unidos buscavam estabelecer os rumos gerais da política internacional, no bloco
dos chamados países ocidentais.
Havia um preocupante estado de
tensão internacional naquela ocasião. A Doutrina de Segurança Nacional,
concepção de defesa nacional elaborada pelos Estados Unidos durante aquele
período, foi instrumentalizada para fins de defesa interna e externa no combate
à subversão, abrindo caminho para violações constitucionais e de direitos
humanos. Isso porque, na Guerra Fria, os Estados Unidos usaram a força e a
violência para controlar os países que se encontravam sob sua esfera de
influência contra os que buscavam não se alinhar.
A
Doutrina de Segurança Nacional
A Doutrina de Segurança
Nacional impôs-se como um fabricado princípio que, na prática, estipulava a
América do Norte como guardiã da ordem mundial e as forças armadas de cada
nação como responsáveis pelo comportamento harmônico da sociedade. Fundamentava-se
em diretrizes de guerra total na qual toda sociedade dos países ocidentais se
envolveria com a finalidade de manter a segurança e o desenvolvimento do país.
É uma doutrina que se opõe às garantias individuais e ao regime democrático,
demarcando-se como totalitária ao não aceitar o conflito e a divergência.
Aglutina os interesses e aspirações confluentes entre as elites militares e as
classes dominantes, moldando um projeto comum.
A Doutrina de Segurança
Nacional postulava que os indivíduos só valem pelo que realizam em conjunto e
em benefício coletivo. O Estado é encarado como um meio de mobilização da
coletividade, e a lealdade para com o Estado deve ter prioridade sobre tudo o
mais. Baseava-se no pressuposto de que a centralização do poder é indispensável
como garantia da unidade nacional e que deve existir consenso para que seja
possível viabilizar a sociedade da nação.
No contexto da Doutrina de
Segurança Nacional, à elite dirigente compete definir quais são os interesses
da coletividade, já que aquela doutrina traduz o pressuposto de que os cidadãos,
por si mesmos, não têm capacidade para identificá-los. Um dos objetivos
principais da DSN é o desenvolvimento econômico. Para atingir essas metas,
haveria mister disciplina, austeridade, sacrifícios e renúncias por parte da
população. Assim, essa doutrina parte do princípio de que os valores, símbolos
e deveres da nação estão sob o risco de forças da subversão. Elege como inimigo
todo pensamento crítico que atente para a realidade social.
A Doutrina girava em cima dos
objetivos nacionais de guerra ao comunismo, não importando os meios e as
medidas que fossem tomadas, desde que a segurança da pátria fosse mantida. E,
se a Constituição atrapalhasse, então, que se mudasse a Constituição.
Fundava-se, consequentemente, em uma ideologia de ameaça interna e externa a
ser enfrentada.
Considerava que o comunismo era
um perigo que estava em toda parte e ameaçava a segurança, o desenvolvimento, a
ordem, o progresso, o cristianismo, a moral, os bons costumes e as bases da
civilização. A Doutrina de Segurança Nacional enuncia que a segurança dos
países aliados dos Estados Unidos encontra-se em xeque todas as vezes que o
comunismo ameaçar impor-se aos povos.
Estudada nos cursos de escolas
militares que foram criados pelo governo estadunidense a fim de implantá-la e
aperfeiçoá-la, como, por exemplo, no National War College e no Industrial
College of the Armed Forces, em Washington, a Doutrina de Segurança Nacional é
tanto mais acentuada em seus aspectos coercitivos e persecutórios quanto é a
dependência e a subordinação de cada um dos países aos centros de desenvolvimento
do capitalismo. Desse modo, a DSN foi implantada na América Latina com forte
conteúdo ideológico, como estratégia de dominação dos EUA. Orientou golpes
militares em países latino-americanos orquestrados pela CIA em conluio com as
forças armadas nacionais e com a oposição de direita financiadas pelo capital
internacional. Ela transferia para o terceiro mundo a responsabilidade de
defender-se da guerra revolucionária dentro de suas fronteiras.
A Doutrina de Segurança
Nacional no Brasil
A Doutrina de Segurança
Nacional é a chave para compreender-se o regime militar instaurado no Brasil,
em 1964. Aqui, o estamento militar situou-se como o representante dela. A DSN
expressou o projeto militar formulado e defendido pela Escola Superior de
Guerra-ESG.
Os Estados Unidos usaram a
Doutrina de Segurança Nacional para influenciar a elite civil e militar
brasileira no sentido de que adotasse os princípios capitalistas do
imperialismo e de segurança interna por meio de cooperação militar. Desse modo,
as ideias que perpassam aquela Doutrina, no Brasil, se constituíram na
adaptação para a realidade brasileira de um pensamento desenvolvido no
exterior. No caso, ela foi naturalizada às nossas circunstâncias nacionais,
amoldando-se ao Estado patrimonialista na ligadura da tradição autoritária
nacional com a ingerência militar na República.
Entendia que quase toda a elite
brasileira não estava preparada para governar, porque, conforme deduzia, se
voltava apenas para seus próprios interesses, não se preocupava com a Pátria,
não se importava com a subversão nem com a corrupção praticada pelos inimigos
da Nação e manipulava os brasileiros pobres do campo e da cidade com o objetivo
de manter-se no poder. Foi, durante muito tempo, a principal justificativa das
atividades da chamada Comunidade de Segurança e Informação, no Brasil, visto
que, na perspectiva da DSN, é necessário colher o máximo de informações sobre
as organizações políticas de esquerda, infiltrando agentes no interior delas
para coletar informes e conhecer suas lideranças.
A Doutrina de Segurança
Nacional recomendava a catalogação dos opositores do imperialismo como agentes
da subversão internacional patrocinados pela União Soviética, China e Cuba. Ela
também identificava a harmonia interna com a economia de mercado nos padrões do
liberalismo econômico e foi quem direcionou as políticas e ações dos governos
militares no Brasil.
A DSN, então, definiu a
estratégia a ser seguida na condução do regime militar e, depois de 1964,
passou a ser chamada de “Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento”,
incorporando-se ao discurso oficial da Ditadura Militar sobre a nossa economia.
O propalado “milagre econômico”, que perdurou no decorrer do mandato do General
Emílio Garrastazu Médici, foi politizado pela Doutrina mediante o I Plano
Nacional de Desenvolvimento (1º PND).
A pregação de grupos
nacionalistas de direita, autoritários e de integrismo católico formou um caldo
cultural que facilitou a aceitação da Doutrina de Segurança Nacional como um
corpo coerente pelas classes dominantes no Brasil.
A Lei de Segurança Nacional
A nossa Lei de Segurança
Nacional respalda-se na ideia de combate ao inimigo interno, evocada pela
Doutrina de Segurança Nacional. Estabelece os dispositivos reguladores da ordem
e atua contra perturbações sociais. É um resquício da Ditadura Militar que a
aplicou por diversas vezes, e em várias versões sucessivas. A última versão da
Lei de Segurança Nacional, ainda em vigor, foi sancionada, em 1983, pelo General
João Batista de Oliveira Figueiredo, então Presidente da República. Denomina-se
Lei nº 7.170/1983.
No regime militar que vitimou o
Brasil a partir de 1964, a Lei de Segurança Nacional continha medidas de
exceção e submetia os crimes contra a segurança do Estado a um sistema rígido,
com desprezo às garantias processuais. Naquele tempo, foi muito utilizada
contra os opositores do governo.
Depois de um período em que
ficou sem ter sido evocada nos tribunais brasileiros, voltou a ser aplicada ao
final do Governo Fernando Henrique Cardoso. Atribui ao governo prerrogativas
privilegiadas de repressão a atividades políticas ditas subversivas, tornando
possível, até mesmo, que um partido ou organização política sejam colocados na
ilegalidade. Tem sido empregada, especialmente, para apenar grevistas e
manifestantes, mas dá poder para que se punam como criminosos políticos os que
forem considerados cometendo um atentado à segurança pública.
Como exemplo de utilização no
Brasil, em tempos mais recentes, no ano 2000, as ocupações de prédios públicos
foram reprimidas com a reclusão e indiciamento de ativistas. Semanas
anteriores, líderes do MST, em Mato Grosso, já tinham sido arrolados e também
acusados nos termos da Lei de Segurança Nacional. Em 2006, a Justiça Federal acatou
denúncia do Ministério Público Federal e abriu processo criminal contra 116
militantes do MLST (Movimento pela Libertação dos Sem Terra) por causa
política, com base na Lei de Segurança Nacional, em razão de terem ocupado o
Salão Verde da Câmara dos Deputados, em manifestação de protesto da qual
resultaram algumas depredações. Durante a campanha eleitoral de 2018, o
agressor do Presidente Jair Bolsonaro, Adélio Bispo de Oliveira, foi enquadrado
pela Polícia Federal na Lei de Segurança Nacional.
Ainda que venha sendo brandida
contra os protestos de rua, não há nada na Lei de Segurança Nacional em vigor
que permita correlacioná-la a manifestações de protesto. Editada durante a
Ditadura, ela só poderia ser reivindicada, segundo inúmeros juristas brasileiros,
em situações extremamente graves, como risco à vida de autoridade de alto
escalão ou à soberania nacional.
A Lei de Segurança Nacional é um entulho
autoritário desnecessário em tempos democráticos. É que não precisa existir uma
legislação específica definidora de crimes contra a ordem política e social;
afinal, esses crimes podem vir enunciados no Código Penal. Observa-se que a
Ordem dos Advogados do Brasil-OAB vem-se sobressaindo de maneira contrária à
existência da Lei de Segurança Nacional por ser um mecanismo que limita as
garantias individuais e o regime democrático.
Cruzeiro-DF, 29 de janeiro de 2019
SALIN
SIDDARTHA