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(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Justiça de SP absolve líder sem-teto acusada de extorquir moradores de ocupação

Quarta, 30 de janeiro de 2019
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Juiz considerou Carmem da Silva Ferreira inocente das acusações de extorsão, ameaça e enriquecimento ilícito; para defesa, decisão foi ‘emblemática contra a criminalização dos movimentos sociais e de moradia’

Carmen da Silva Ferreira, Lucio Franca, Ariel de Castro Alves e Preta Ferreira | Foto: Arquivo Pessoal

A Justiça de São Paulo absolveu a líder sem-teto Carmem da Silva Ferreira, responsável pela gestão de uma ocupação no antigo Hotel Cambridge, no centro da cidade de São Paulo. Em denúncia, o MP (Ministério Público) acusou Carmen de extorquir os moradores do local, além de ameaçar quem não pagasse o valor determinado a cada mês. Além disso, a promotoria apontou que ela estaria enriquecendo de forma ilícita com a atividade.
O juiz Marcos Vieira de Moraes, da 26ª Vara Criminal de São Paulo, considerou fracas as provas para ligar a liderança de movimento de luta por moradia aos crimes apontados pela promotoria. Segundo ele, os depoimentos dados por testemunhas de acusação são insuficientes para assegurar de forma clara uma ação ilegal, além de desprestigiar a tese de acusação pois são conflitantes e inconcludentes.
“As vítimas e testemunhas de acusação apenas acusaram Carmem, mas não trouxeram nenhum elemento concreto de prova. Pelo contrário, a defesa anexou aos autos notas fiscais e atas de assembleias demonstrando a destinação das contribuições individuais que cada família deveria pagar para suportar as despesas mensais do edifício”, explica Moraes, em sua decisão por absolvê-la.
Em sua argumentação, o juiz explica que, se tratando de uma acusação sobre enriquecimento ilícito, era natural que a acusação solicitasse a quebra de sigilo bancário de Carmem “visando verificar movimentação suspeita de valores em sua conta bancária ou acréscimo  desproporcional de seu patrimônio pessoal”. Contudo, esta solicitação não foi feita.
A decisão é tranquilizadora para a coordenadora da ocupação. “Eu recebi [a decisão] como alívio, sabendo que a Justiça apurou. Foi uma sentença de 100 páginas, em que o juiz teve interesse em ler para poder der uma decisão justa, não foi dada aleatoriamente. Foi lido o processo, apurado e se chegou à absolvição, foi visto que havia injúrias”, conta Camem à Ponte.

Cobranças injustas x taxas de manutenção

A denúncia dos promotores José Reinaldo Guimarães Carneiro, Camila Bonafini Pereira, Paula Augusta Mariano Marques e Orlando Brunetti Barchini trazia duas testemunhas protegidas, ambas dizendo terem sido expulsas da ocupação por não pagarem as quantias cobradas por Carmem, que nega. Segundo a líder sem-teto, os custos de manutenção do espaço eram divididos entre todos o moradores e, caso houvesse alguma sobra, obrigatoriamente teria que ser investido na ocupação no mesmo mês em que o dinheiro tivesse sido recolhido.
No depoimento, a primeira das testemunhas cita mensalidades entre R$ 200 e R$ 1,3 mil pagos pelos integrantes da ocupação no Hotel Cambridge para despesas que sempre “aumentavam, embora tratassem de serviços fornecidos por ligação direta/clandestina”. Esta pessoa aponta ter ido cobrar satisfação da líder, mas a resposta veio em cobrança de R$ 15 mil para são ser despejada e com agressão física, segundo sua versão.
Fachada da ocupação onde antigamente funcionava o Hotel Cambridge | Foto: Reprodução/Era o Hotel Cambridge
Em outro momento, a testemunha protegida 2 citou uma multa de R$ 400 mil cobrada pela Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) e que teria sido repassada aos moradores. Explica que pagava R$ 250 mensalmente (R$ 200 pelo aluguel do cômodo com banheiro que ocupava, R$ 20 de taxa de água e R$ 30 de energia) e gastado R$ 2,7 mil com a reforma do espaço.
Essa testemunha ainda conta de um caso que teria sido feito por Camem, de pedir roupa para os moradores dizendo que seria enviado para “ajudar os atingidos por uma enchente que ocorreu em Minas Gerais”, mas viu suas roupas à venda no brechó da líder sem-teto.
Por outro lado, Carmem depôs apontando que todos os gastos e valores recolhidos dos moradores são colocados em ata e registrados em cartório. Sobre os R$ 15 mil que teria cobrado para não expulsar a testemunha 1, garante se tratar de valor apontado pela COHAB como inicial em poupança para os moradores naquela época no Hotel Cambridge serem incluídos no plano de faixa 2 de uma parceria público privada do Conselho Municipal de Habitação. Haveria uma reforma do local, que seria transformado em moradias populares. “Em relação às vítimas, negou ter feito qualquer ameaça”, continua.
Em conversa com a Ponte, ela nega ter se beneficiado das doações feitas em 2015, data do rompimento da barragem da Samarco em Minas Gerais. “Claro que não! Teve a tragédia de Mariana e chamamos para fazer um ato de solidariedade e os bombeiros levaram. Somos engajados nessa campanha. O brechó é para atender os próprios moradores, tanto tem um preço bem barato”, explica a líder, dizendo que as roupas do brechó são recebidas por doações externas. “O que arrecada é para sustentação da costureira que toma conta. Uma parte fica para se alguém precisar de remédio ou comida”, sustenta.
A defesa da coordenadora comemora a decisão, a classificando como “emblemática contra a criminalização dos movimentos sociais e de moradia”.”Os promotores que acusaram Carmen visavam criminalizar os movimentos de moradia, que buscam assegurar o direito de moradia previsto na Constituição Federal, dando utilidade às propriedades abandonadas por especuladores imobiliários nos centros urbanos”, sustenta o advogado Ariel de Castro.