Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 12 de junho de 2020

A democracia na UnB não pode ser interrompida novamente

Sexta, 12 de junho de 2020
Por
Professora Fátima Sousa*

Como se não bastasse a gravíssima pandemia que já matou mais de 40 mil pessoas no pais e contaminou outras 780 mil, sem falar nas dores, sofrimentos de todas as ordens que tem abatido nossa população, dia sim dia não nos chegam “surpresas” que insistem em abalar a autonomia das universidades e institutos federais brasileiros e ameaçarem nossos princípios democráticos.

Com a grave ameaça da Medida Provisória 979, devemos ficar em alerta pois vimos que o governo federal deseja seguir seu projeto de acabar com a educação superior e manter o acesso às universidades para poucos. E vem fazendo isso desde que assumiu o Brasil, cortando o orçamento em mais de 30%, deixando as universidades e institutos federais sem financeiro para pagamento de água, luz, manutenção e aquisição de materiais, comprometendo e inviabilizando a vida acadêmica de qualidade, princípio orientador ao seu funcionamento. Refiro-me à despesa de custeio, pois investimentos, não estão entre as prioridades da atual gestão do país.

Preferem valer-se da lamentável situação sanitária que nos assola, para, na calada da noite, covardemente, atentarem contra um dos maiores patrimônios do povo brasileiro: sua democracia. Seguem no desejo de desconfigurar o pensamento plural e livre das Instituições de Ensino Superior, não priorizando as bolsas para a área de ciências sociais e humanas, entre outras ações descabidas de cortes sucessivos à ciência brasileira.

De fato, a ignorância que permeia esse governo é atrevida. Segue sem o cuidado de verificar que a autonomia das Universidades Públicas não pode ser ferida. Não se trata de opinião, está escrito e consagrado no texto de nossa Lei Maior, em seu artigo 207, para que as universidades realmente possam cumprir, de modo autônomo e independente, a sua verdadeira, relevante e indispensável finalidade: formar cidadãos éticos comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa, pautada nos valores da democracia e da paz. Logo, essa MP já nasceu inconstitucional.

Em boa hora e penso que atendendo aos mais de 88 mil cidadãos que se manifestaram na consulta pública do Senado Federal e ainda às inúmeras pessoas que, assim como muitos(as) de nós, posicionaram-se nas mídias sociais para dizerem NÃO àquela que seria mais uma atrocidade que abateria a toda comunidade universitária brasileira, os presidentes do Senado e da Câmara posicionaram-se do mesmo modo contra à MP que foi mais uma tentativa indevida de intervenção nas Universidades e Institutos Federais.

Pensam que estamos desatentos durante a pandemia? Saibam que não. Estamos falando de uma universidade que permanece na ativa, com seus docentes, estudantes e técnicos administrativos atuando em mais de centenas de projetos, pesquisas, reuniões, contribuindo neste momento de crise sanitária, apoiando gestores e profissionais da saúde, a sociedade, e ajudando a construir um país em seu projeto civilizatório.

Abrir mão da autonomia à escolha dos nossos dirigentes é dizer não à legitimidade daquelas(es) que devem nos representar nas instâncias gestoras das nossas universidades. Faz-se necessário entender que o processo de consulta à comunidade acadêmica é fundamental para dar legitimidade e aprofundar a democracia, para que possamos seguir em frente com os projetos que representam as necessidades da sociedade brasileira.

Nossa UnB não vai abrir mão dos seus valores expressos em seu projeto original o qual seguimos construindo a cada semestre:  a ciência, como forma de conhecimento confiável ao lado de outras formas de saberes e práticas humanizadoras; o diálogo em termos de igualdade com os povos que tem suas diversas cores e faces; a tolerância e a compreensão para com as mais diversas formas de manifestação de pensamento e de crença.

A UnB fará, sim, sua consulta à comunidade acadêmica, reafirmando que não permitirá ser interrompida outra vez. Não estamos mais em 1964-65. Aquela época de prisão, demissão, expulsões e decisões no subterrâneo das salas fechadas, cartas secretas ou verdades escondidas fazem parte de um passado que nunca mais queremos revisitar. Não vamos partir o futuro da UnB que queremos seguir construindo, muito menos desistir, nem deixar interromper aquele ímpeto inicial em promover as condições de acessibilidade e a construção de um ambiente de trabalho e estudo inclusivos, respeitosos, solidários, colaborativos, no exercício pleno da democracia e autonomia da nossa UnB.


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*Fátima Sousa
Paraibana, 57 anos de vida, 40 anos dedicados a saúde e a gestão pública; 
Professora e pesquisadora da Universidade de Brasília;
Enfermeira Sanitarista, Doutora em Ciências da Saúde, Mestre em Ciências Sociais; 
Doutora Honoris Causa;
Implantou o ‘Saúde da Família’ no Brasil, depois do sucesso na Paraíba e em São Paulo capital; 
Implantou os Agentes Comunitários de Saúde;
Dirigiu a Faculdade de Saúde da UnB: 5 cursos avaliados com nota máxima;
Lutou pela criação do SUS na constituinte de 1988;
Premiada pela Organização Panamericana de Saúde, pelo Ministério da Saúde e pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde.