Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sábado, 13 de junho de 2020

JOGA PEDRA NO SERVIDOR PÚBLICO . . .

Sábado, 13 de junho de 2020
Por

Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 13 de junho de 2020

Noticiou o site jornalístico Metrópoles no dia 10 de junho (manchete): “Maia:  prorrogar o auxílio emergencial depende de corte salarial de servidor”. O texto da matéria detalha: “O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou nesta quarta-feira (10/06) que o gasto da União para manter o auxílio emergencial de R$ 600 por mais dois meses seria superior a R$ 99 bilhões. Segundo ele, isso exigiria um corte de salários de todos os servidores federais. As informações foram dadas em entrevista à Rádio Gaúcha”.

O site da Folha de S. Paulo do dia 11 de junho registrou (manchete): “Zambelli apresenta PEC para cortar salários do Executivo, Legislativo e Judiciário. Proposta reduz pagamentos em 25% para servidores que recebem acima de R$ 15 mil”. Zambelli se refere à deputada federal Carla Zambelli, “estrela” de primeira grandeza do bolsonarismo.

Os ataques aos servidores públicos são constantes, quase diários. Sintomaticamente, o Ministro da Economia, senhor Paulo Guedes, qualificou os servidores públicos como parasitas, assaltantes e inimigos. As falas públicas foram as seguintes (site metropoles.com):

“O hospedeiro está morrendo, o cara virou um parasita, o dinheiro não chega no povo e ele quer aumento automático”.

“Por favor, não assaltem o Brasil enquanto o Brasil está nocauteado. É inaceitável que tentem saquear o gigante que está no chão, que usem a desculpa para saquear o Brasil”.

“Todo mundo está achando que, tão distraídos, abraçaram a gente, enrolaram com a gente. Nós já botamos a granada no bolso do inimigo: dois anos sem aumento de salário”.

Nos últimos dias, em peça publicitária veiculada nas mídias, a indefectível Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) solicitou aos deputados e senadores que não derrubem o veto presidencial definidor do congelamento, por dois anos, de reajustes dos servidores públicos federais, estaduais e municipais. A entidade patronal associa a redução da renda dos trabalhadores em geral, durante a pandemia do novo coronavírus, aos servidores públicos. Parece até que se o veto for derrubado ocorrerão reajustes automáticos de remunerações em clara afronta ao disposto no art. 37, inciso X, da Constituição, que exige a remessa pelos Executivos aos Legislativos de projetos de lei específicos para esses fins.

A coleção de pedras (injúrias, difamações, deturpações, mentiras, fake news, etc) jogadas contra os servidores públicos parece não ter fim. O grande Chico Buarque, numa de suas canções mais marcantes e significativas, cantou com energia:

“Joga pedra na GeniEla é feita pra apanharEla é boa de cuspirEla dá pra qualquer umMaldita Geni”

Nos últimos tempos, a Geni do repulsivo Zepelim (ícone da indústria alemã nazista !!!), com muito mais propriedade, é o servidor público.

Pelo visto e ouvido, os servidores públicos seriam os responsáveis pelas incomensuráveis mazelas nacionais, verdadeiras aves de rapinas vis e toscas. Seriam, esses monstros, seres humanos com coração e sentimentos? Malditos servidores públicos !!!

Vale registrar que os servidores públicos federais foram duramente atacados e amargaram uma injusta reforma previdenciária no segundo semestre de 2018. Sequer regras de transição minimamente razoáveis foram adotadas.

No primeiro semestre desse ano de 2020, os servidores públicos federais tiveram uma significativa redução remuneratória com a aplicação das alíquotas previdenciárias progressivas definidas pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019. As alíquotas nominais de 11% passaram para patamares de 12 a 22% (para remunerações acima de dois mil reais).

Observe-se que sequer foi criado e operacionalizado o fundo previsto no art. 249 da Constituição, destino das contribuições previdenciárias dos servidores públicos.

Cumpre destacar um dado relevante. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), são 12 (doze) servidores públicos para cada 100 (cem) trabalhadores brasileiros. Essa média é a mesma verificada nos demais países da América Latina. Nos países mais desenvolvidos, a média é de 21 (vinte e um) servidores para cada 100 (cem) trabalhadores. Na Dinamarca e na Noruega os servidores públicos ultrapassam mais de um terço da população economicamente ativa.

Portanto, o Brasil não tem servidores em excesso, notadamente considerando sua população e a intensa demanda por serviços públicos.

A pura verdade é que vivenciamos, por décadas, uma profunda e crescente crise na gestão da Administração Pública brasileira em todos os níveis. Afinal, são os governantes e dirigentes que manuseiam os instrumentos para: a) a correta formação e distribuição da força de trabalho, inclusive com a eliminação do exército de comissionados de livre escolha; b) a avaliação e controle das atividades realizadas; c) a fixação dos modelos voltados para a produtividade e eficiência dos serviços prestados e d) a correção das inúmeras vicissitudes existentes.

Já chamei a atenção, em outros escritos, para a circunstância de que a ordem jurídica brasileira é muito “curiosa” (perversa seria melhor). Existe uma lei de responsabilidade fiscal para limitar os gastos com pessoal na Administração Pública. Foram criados todos os tipos de limites. São três atualmente: a) máximo; b) prudencial e c) de alerta.

Entretanto, não existem leis de responsabilidade para: a) limitar os juros bancários; b) conter os pagamentos do serviço da dívida; c) restringir a formação de reservas monetárias; d) racionalizar as operações com o câmbio; e) disciplinar as operações compromissadas; f) reduzir os subsídios de várias naturezas; g) diminuir os benefícios fiscais e h) regular tantas outras bilionárias ou trilionárias manifestações de riqueza movimentadas entre o Estado e uma parcela mínima de privilegiados socioeconômicos (as tais elites).

Nessa linha, observe-se a edição da Emenda Constitucional n. 106, de 7 de maio de 2020 (“Institui regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento de calamidade pública nacional decorrente de pandemia”). Diz, com todas letras, no artigo sexto:

“Durante a vigência da calamidade pública nacional de que trata o art. 1º desta Emenda Constitucional, os recursos decorrentes de operações de crédito realizadas para o refinanciamento da dívida mobiliária poderão ser utilizados também para o pagamento de seus juros e encargos”.

O renomado professor Fernando Facury Scaff (não é comunista, anotação necessária nos sombrios dias atuais) observou acerca dessa disposição normativa: “O pagamento dos juros e encargos da dívida pública foram expressamente ressalvados, como de hábito, podendo ser realizados (art. 6º)” (site conjur.com.br).

Pois bem, no que diz respeito à minha pessoa e à minha remuneração oriunda dos cofres públicos, já fortemente tributada na fonte, aceito publicamente a redução de 25% ou até parcela maior para financiar programas emergenciais de ajuda aos mais necessitados, desde que todos os segmentos socioeconômicos abastados colaborem de forma proporcional para o mesmo fim.

A colaboração referida envolveria, entre outros: a) criação (inteligente) do imposto sobre grandes fortunas, expressamente previsto na Constituição (art. 153, inciso VII); b) redução do pagamento do serviço da dívida pública, inclusive via tributação; c) limitação da realização de swap cambial; d) redução das operações compromissadas; e) diminuição significativa de subsídios; f) redução drástica de benefícios fiscais, inclusive no âmbito dos programas de refinanciamento das dívidas; g) tributação de lucros, dividendos e remessas para o exterior; h) criação e operacionalização de um enérgico programa de combate à sonegação fiscal e i) criação de instrumentos normativos e efetivo apoio logístico para a recuperação de parte sensível das dívidas ativas.

Suspeito, só suspeito, que os recursos advindos das fontes referidas permitiriam, com sobras, o financiamento de potentes programas de auxílio, inclusive permanentes, aos mais necessitados (art. 3o., incisos I e III, da Constituição). Ademais, os servidores públicos, assim como doam sangue, suor e lágrimas para combater o novo coronavírus, operacionalizariam com eficiência e o costumeiro compromisso público cada instrumento desenvolvido para reduzir o sofrimento de dezenas de milhões de brasileiros.