Na última sexta-feira, dia 31 de julho de 2015, tive a honra
de proferir palestra ("A corrupção e o Sistema da Dívida") no
seminário regional, em Alagoas, do movimento pela Auditoria Cidadã da Dívida
(Pública).
Afirmei, na palestra, que a corrupção é, sem dúvida, um dos
grandes problemas nacionais. Trata-se da expressão mais perversa da lógica,
profundamente incorporada à cultura nacional, de se levar vantagem em tudo, sem
preocupações com a licitude ou moralidade. Ademais, assistimos todos a um
triste espetáculo de corrupção que nos chega diariamente, pela via da grande
imprensa, como capítulos de uma novela de extremo mal gosto.
Ocorre que essa grande exposição midiática da corrupção,
cuidadosamente operada por veículos de uma mídia excessivamente concentrada,
produz pelos menos duas grandes distorções: a) a maioria da sociedade admite
que a corrupção é o nosso maior problema e b) essa mesma maioria acredita que a
ausência de serviços públicos de qualidades nas áreas de educação, saúde,
transporte, cultura, esporte, entre outras, decorre da falta de recursos
públicos drenados pela corrupção.
Fiz, nas duas últimas semanas do mês de julho do corrente,
essas constatações de forma empírica com 90 (noventa) alunos das minhas turmas
no curso de Direito da Universidade Católica de Brasília. 95,5% deles acredita
que o Estado brasileiro arrecada/dispõe (d)o volume necessário de recursos
pecuniários para viabilizar a realização adequada, com eficiência
(quantitativa/qualitativa), dos serviços públicos que garantem os direitos
sociais fundamentais de educação e saúde. 66,6% dos alunos pesquisados entende
que a corrupção é a principal razão para as deficiências verificadas. 31,1%
aponta a ineficiência/incompetência administrativa como a principal razão para
a negativa dos direitos aludidos.
Na minha modesta avaliação, o maior problema vivenciado pelo
Brasil (e pelo mundo) na atual quadra história é a alarmante desigualdade
socioeconômica. No caso do Brasil, temos um país que figura entre as dez
maiores economias do mundo e ocupa, para espanto geral, os últimos postos nas
lista de distribuição de renda.
Esse triste e paradoxal quadro não é obra da corrupção,
embora essa mazela tenha sua cota significativa de "culpa no
cartório". Para explicar essa discrepância entram em cena mecanismos
socioeconômicos cuidadosamente construídos, mantidos e aperfeiçoados por
segmentos sociais privilegiados. Destaco os seguintes: câmbio flutuante; metas
de superávit primário; metas de inflação; intenso endividamento do Estado;
juros altíssimos; desnacionalização do parque produtivo; financiamento externo
baseado na exportação de minerais e produtos agrícolas; atração de recursos
financeiros oriundos da especulação internacional; sistema tributário
profundamente injusto; profunda concentração e elitização da grande imprensa;
elevada distorção e deterioração da estrutura político-partidária; considerável
descaso com a necessidade de uma profunda e abrangente revolução educacional;
baixíssima atenção para com os mecanismos de planejamento e gestão eficiente
das ações do Poder Público, notadamente em setores estratégicos; significativo
desprezo pelo meio ambiente e o cultivo de uma “cultura” baseada em valores
extremamente deletérios, tais como o consumismo, a ditadura da aparência e das
mais mais variadas formas de futilidade e superficialidade e um certo incentivo
à violência física e simbólica.
De todos esses instrumentos de criação e reprodução de
desigualdades sociais, o chamado "sistema da dívida" comparece como o
mais relevante. Por ocasião da palestra aludida foram destacados dois números
que a Auditoria Cidadã trabalha como muita ênfase em nível nacional,
principalmente pela voz aguerrida de Maria Lúcia Fatorelli, uma incansável
batalhadora pelas causas democráticas e populares no Brasil e no mundo.
Refiro-me: a) ao montante da dívida pública brasileira e b) ao tamanho do
serviço dessa dívida (juros, encargos, amortizações e rolagem). O primeiro
elemento é um número que ultrapassa os 4 (quatro) trilhões de reais. O segundo
elemento é um número que representa algo em torno de 40% (quarenta por cento)
do orçamento anual da União.
No caso específico do Estado de Alagoas, os dados
apresentados pelo combativo Professor José Menezes, coordenador do Núcleo da
Auditoria Cidadã da Dívida em Alagoas e palestrante no evento do dia 31 de
julho, também são estarrecedores. Em 31 de dezembro de 1998, a dívida do Estado
de Alagoas alcançava R$ 2,38 bilhões. Entre 1998 e 2014 foram pagos (serviço da
dívida) cerca de R$ 7,25 bilhões. Em 31 de dezembro de 2014, a dívida de
Alagoas estava em R$ 9,73 bilhões. Em suma, em 17 anos, a dívida foi paga três
vezes e, atualmente, é quatro vezes maior.
Foi anotado com muita ênfase no seminário do dia 31 de julho
que a construção de instrumentos de geração de privilégios e desigualdades
socioeconômicos, notadamente no campo do “sistema da dívida”, lança mão da
ilicitude (e da corrupção) como ferramentas fundamentais. A demarcação clara da
fronteira entre a legalidade e a ilegalidade é conscientemente dificultada em
magnitude monumental.
Destaquei, diante desses números, a necessidade imperiosa de
cumprir a Constituição (art. 26 do ADCT) e realizar a auditoria da dívida
pública. Importa pontuar que a OAB ingressou no Supremo Tribunal Federal com a
ADPF n. 59 justamente buscando uma decisão da mais alta Corte de Justiça do
Brasil que concretize a auditoria da dívida pública (que deveria ter sido
realizado até 1989).
Não tenho dúvida de que a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, sem pobreza, marginalizações e discriminações (objetivos
inscritos na Constituição) somente será alcançada com o desmonte, pela via da
crescente participação popular, desses perversos instrumentos de geração e
reprodução de desigualdades socioeconômicas, em especial o “sistema da dívida”.
*Aldemario
Araujo Castro é Mestre em Direito, Procurador da Fazenda Nacional, Professor da
Universidade Católica de Brasília, Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil