Sábado, 1º
de agosto de 2015
Siro Darlan, desembargador do Tribunal de Justiça e membro
da Associação Juízes para a democracia.
A violência que permeia a vida em sociedade atinge a cada
dia níveis degradante de insensibilidade e falta de respeito aos semelhantes.
Uma empresa concessionária de serviços públicos, conhecida pelos maus tratos
com que trata seus usuários, operários pobres e moradores dos subúrbios do Rio
de Janeiro atingiu ao máximo de degradação quando autorizou um trem a passar
por cima do cadáver de um homem humilde vendedor ambulante. [veja aqui]
O cadáver de alguém além do sentimento religioso que
tradicionalmente cerca o sepultamento de toda uma liturgia de despedida merece
todo o respeito e tratamento dignificante. Não é incomum ver-se cadáveres de
vítimas da violência que atinge diariamente as comunidades mais humildes sendo
sem qualquer respeito arrastados pelas vielas, transportados em sacos,
carrinhos de material de construção e outros meios igualmente degradantes.
Convém lembrar que todo cadáver, ainda que desconhecido,
nasceu do amor de dois seres humanos, cresceu embalado pela fé e pela esperança
de uma família que acredita em seu futuro. Como todo ser humano, sorriu, e
acalentou sonhos quando criança, por certo amou e foi amado, sentiu-se feliz ou
esperava ser feliz algum dia, ainda que tendo uma vida difícil como ambulante,
e ainda que tenha uma morte violenta, merece o respeito de um sepultamento
segundo a tradição religiosa de sua família.
Do ponto de vista da bioética, um cadáver deve ser visto
como “res-humana”, mas ao mesmo tempo deve ser respeitado pelo significado
afetivo da memória de um ser humano, e é direito de uma família velar seu ente
querido e dar ao seu corpo o tratamento e a destinação da fé que professam.
A falta de respeito demonstrada pelos funcionários de uma
concessionária demonstra a falta de condições para a prestação do serviço
público que lhe foi confiado. Aliás, a atuação negligente dos agentes públicos
de fiscalização, como o secretário de Transporte e as agências reguladoras faz
de todos coautores desse crime contra a população que chegou a esse fato
gravíssimo porque outras ações igualmente desrespeitosas têm sido toleradas
pelo agente público concedente.
A morte de qualquer ser humano, independente de sua classe
social, deve ser lamentada, chorada e velada não apenas por seus familiares,
mas por toda a sociedade que é a mesmo tempo agente e vítima dessa mesma
violência. Agente quando assiste impassivelmente aos atos de violência e não se
compadece e vítima quando essa violência atinge aos seus mais próximos.
Razão assiste ao irmão da vítima que reclamou que isso não
se faz nem com um animal. Muitos prezam tanto seus animais que destinam a eles
a mesma liturgia mortuária que aos humanos, homenageando-os com um enterro em
cemitérios próprios. Assim começou o direito da criança quando uma enfermeira
em Nova York, compadecendo-se do sofrimento de uma criança, reivindicou para
ela os mesmos direitos de proteção dado aos animais.
Fonte: Blog do Siro Darlan