Por
Roberto Amaral
Com a colaboração da Justiça, vivemos tempos de repressão, de judicialização de quase tudo: dos costumes, da saúde, da política.
Admirável! Em artigo recente (Significado de devido processo legal, Folha de S. Paulo,
30/09/17), o ministro Ricardo Lewandowski, também professor da
Faculdade do Largo de São Francisco, disserta sobre a necessidade, nos
processos judiciais, especialmente nos procedimentos penais, do respeito
aos direitos fundamentais, “sobretudo os que decorrem diretamente da
dignidade da pessoa humana, para cujo resguardo a prestação
jurisdicional foi instituída”.
Enquanto
a Justiça tem cerca de 80 milhões de processos sem decisão, ministros
do STF e demais juízes pouco param em Brasília e em suas comarcas
É tudo o que vem sendo desrespeitado pela dobradinha Poder Judiciário-Ministério Público, no anseio messiânico, à la Torquemada, de ‘salvar o Brasil’ das garras de Lúcifer, exorcizando a política.
O
ministro-professor, ao desenvolver sua tese, liberal no sentido de
não-autoritária, não penalista, não criminalizante, descreve, porém,
aquele quadro que todos nós enxergamos como o registro em preto e branco
da miséria da Justiça brasileira de nossos tristes dias.
Ao
alinhar as condições que caracterizam o ‘devido processo legal’,
direito incorporado à civilização ocidental pela Magna Carta de João sem
Terra (1215), presente em todas as nossas constituições republicanas e
estampado na Constituição de 1988 (art. 5º, LIV), o ministro Lewandowski
na verdade descreve a realidade brasileira dos tempos de hoje:
“Prisões
provisórias que se projetam no tempo, denúncias baseadas apenas em
delações de corréus, vazamentos seletivos de dados processuais,
exposição de acusados ao escárnio popular, condenações a penas
extravagantes, conduções coercitivas, buscas e apreensões ou detenções
espalhafatosas indubitavelmente ofendem o devido processo legal em sua
dimensão substantiva, configurando, ademais, inegável retrocesso
civilizatório.”
Pois é o que estamos vivendo: ‘inegável retrocesso civilizatório’.
Os
advogados de defesa que atuam nos diversos processos políticos em curso
no país devem inscrever essa catilinária como epígrafe de suas
petições, pois, na vida real, o que não deve ser, é o que tem sido.
O
ministro, porém, não é um ‘teórico’ discutindo ‘o direito em tese’, ele
é um aplicador da lei, ex-presidente do STF, do TSE e do CNJ, e assim,
ele e todos os seus e suas colegas, corresponsável por todos os abusos
que se estão cometendo.
Nosso
Poder Judiciário (especializado em antecipar penas), ademais de
autoritário, ensimesmado, é parcial (por óbvio, a serviço da Casa
Grande), partidarizado, ineficiente, lento, perdulário, nepotista, nada
transparente (ao contrário, por exemplo, do Legislativo), imune a
qualquer sorte de fiscalização (ao contrário do Executivo e do
Legislativo), e trabalha pouco.
Além
do mais, é caríssimo. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça,
seu orçamento corresponde a 1/4 do PIB nacional, o que, no ano passado,
importou em quase 85 bilhões de reais, dos quais 76 bilhões foram gastos
com remunerações (os juízes receberam 47 mil reais de salário em 2016,
quando o teto constitucional é 33,7 mil), pensões, benefícios e despesas
indenizatórias (Folha de S. Paulo, 5/9/17).
E
o povo, o povo massa, o povo carente, continua sem acesso à Justiça!
Não obstante, o Judiciário posa de Poder Moderador, uma extravagância na
República, e desrespeitosamente, e impunemente (a quem apelar, se o STF
é a última instância a que se pode recorrer?) avança sobre a
competência dos demais poderes, carente porém da legitimidade conferida
pelo voto popular!
Quando
a Justiça tem cerca de 80 milhões de processos sem decisão, forjando a
regra da impunidade, alimentadora do crime, ministros do STF (e juízes
de piso, seguidos de procuradores, como os messiânicos titulares da Lava
Jato curitibana) pouco param em Brasília e em suas comarcas: vivem em
doces vilegiaturas de Seca à Meca, ora em viagens dentro de país,
fazendo pregações ou palestras (significativamente sempre para
empresários e quejandos) ou recebendo ou prestando homenagens, ou
excursionando entre Paris e New York.
E
há, também, ministros que são professores, em Brasília tanto quanto no
Rio e São Paulo, e há os que dirigem empresas de Educação e cuidam de
suas finanças junto a bancos públicos; há os que ainda integram o
Conselho de Justiça Federal, o Conselho Nacional de Justiça, e ainda há
os que também prestam assessoria ao ocupante da Presidência da
República, acusado pelo Ministério Público de chefiar quadrilha e
obstruir a Justiça, e ainda cuidam de sua defesa no TSE e no STF.
Como
é que esses senhores atuam, quando é que estudam, quando se debruçam
sobre os autos? Ou, será que, como se comenta nos corredores, nossos illuminatti se limitam a ler os pareceres lavrados por seus assistentes?
Pergunto
à presidente Cármen Lúcia, por quem nutro justificado respeito
intelectual: seus colegas, como funcionários públicos que são,
privilegiadíssimos diga-se de passagem (mordomias várias, apartamento
funcional ou auxílio-moradia, carro preto, motorista e combustível,
diárias e um rol interminável de penduricalhos incompatíveis com a
República e a pobreza que domina a população, mesmo a empregada), têm a
obrigação de trabalhar quantos dias por semana?
Segundo
levantamento antigo, que devo ao advogado José Antônio Almeida, somados
as férias forenses, as festas de Natal e fim de ano, as festas juninas e
mais isso e mais aquilo, nossos engalanados ministros não frequentam a
Corte durante mais de oito meses. O garçom que serve cafezinho e água
gelada ao ministro Gilmar Mendes, conhecido também como globetrotter, trabalha 12 meses por ano, oito horas por dia, cinco dias por semana.
As
viagens dos deuses do Olimpo – viagens em dias de trabalho – são
autorizadas pela presidência, ou já está tudo no ‘vai da valsa’? Por que
a ministra presidente, com sua autoridade legal e moral, não faz
cumprir o Regimento e acaba com a ilegalidade de ministros pedirem
‘vistas’ de processos em julgamento para se sentarem indefinidamente
sobre os autos, exatamente para evitar o julgamento?
O
CNJ, que deveria ser o olhar da sociedade, assegurando transparência,
não conseguiu romper com o corporativismo. Saberá o Conselho quantos
presos comuns, pobres e negros na sua maioria, permanecem nas centenas
de masmorras espalhadas pelo país após haverem cumprido as penas às
quais foram condenados?
Que
fazem os titulares das varas das execuções penais? A quem dão
satisfação e por quem são cobrados? Saberão nossos ministros e ministras
e juízes e juízas quantos brasileiros, pobres, homens e mulheres, na
sua maioria negros e negras, apodrecem e enlouquecem cumprindo penas em
recintos insalubres ou aguardando julgamento nas enxovias que são os
xadrezes das delegacias de polícia?
Diversos
ministros de nossa Corte Suprema, amantes dos holofotes que lhes
fornece a imprensa, cultivam o hábito de deitar falação sobre quase
tudo, até sobre questões cruciais sob julgamento ou que irão julgar, o
que é uma aberração. E quando julgam, muitas vezes não se apoiam no
Direito, na Constituição ou na lei, nem na jurisprudência dominante, mas
em argumentos, opiniões, conceitos e preconceitos políticos e
mesmo político-partidários.
Por
isso ficam a bater cabeças (quando não trocando farpas entre em si ou
com a PGR), as Turmas se bicam em decisões conflitantes, o Pleno se
transforma em 11 tribunais e as decisões monocráticas (muitas
contestadas internamente) de exceção passam a constituir a regra.
E
quando o Pleno decide, não raro fere a Constituição, por exemplo quando
admite a prisão antes da sentença transitada em julgado, ou, como se
fosse Poder Legislativo, interfere na legislação eleitoral e anula a
cláusula de barreira, contribuindo para a mixórdia partidária que está
no fundo da crise política de nossos dias.
Com
a colaboração da Justiça, vivemos tempos de repressão, de
judicialização de quase tudo: dos costumes, da saúde, da
política. Tempos de retrocesso civilizatório que se reflete na vida
social. “Um sistema de justiça criminal” – escreve João dos Passos
Martins Neto, bravo procurador do Estado de Santa Catarina, a propósito
da trágica morte do reitor Luiz Carlos Cancellier – “sedento de luz e
fama, especializado em antecipar penas e martirizar inocentes, sob o
falso pretexto de garantir a eficácia de suas investigações”.
O líder desses procedimentos que ferem a lei e o decoro é o inefável Gilmar Mendes, ministro-empresário-advogado- líder
do governo, que, lamentavelmente, faz escola, má escola. Nas suas
pegadas corre, entre outros, o ministro Luiz Fux, como vimos no seu
exaltado discurso no julgamento do pedido de prisão do senador Aécio
Neves. Falatório que continha tudo, exceto uma articulação juridical
embora esta estivesse à flor da pele.
Esse
é outro desvio dos tempos autoritários que vivemos: juízes,
procuradores, ministros travestem-se de políticos, sem se darem ao
trabalho de colher a autorização do voto popular, a que se submetem os
políticos, uma ‘raça’ que pretendem eliminar.
Toda vez que a política é banida, falam os autoritários, fardados ou togados, mas sem votos!
A teoria de Lewandowski e o Direito real
“Não
adotamos qualquer atitude para obstruir a apuração da denúncia. A
humilhação e o vexame a que fomos submetidos – eu e outros colegas da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – há uma semana não tem
precedentes na história da instituição. No mesmo período em que fomos
presos, levados ao complexo penitenciário, despidos de nossas vestes e
encarcerados, paradoxalmente a universidade que comando desde maio de
2016 foi reconhecida como a sexta melhor instituição federal de ensino
superior brasileira (…)”.
Este
é um trecho da carta de despedida do professor Luiz Carlos Cancellier,
reitor da Universidade Federal de Santa Catarina. Homem sério, digno e
bom, não suportou as humilhações a que foi submetido pelas autoridades
judiciárias e morreu na última segunda-feira 2.
O atestado de óbito apontará, como causa mortis,
o suicídio. Seus amigos e os que lutam pela restauração do direito
dirão que foi assassinato. E perguntaremos até à rouquidão: quem
responderá por este crime?
A
íntegra da carta do reitor Cancellier, trecho de seu último bilhete, as
notas da Andes e da União Nacional dos Estudantes e a carta do
procurador João dos Passos Martins Neto podem ser lidas aqui.
Roberto Amaral
*Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia