Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Anatomia da intervenção imperialista

Terça, 26 de fevereiro de 2019

por Prabhat Patnaik [*]
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O que está a acontecer na Venezuela de hoje proporciona uma lição objectiva sobre a natureza da intervenção imperialista em países do terceiro mundo na era do neoliberalismo. O imperialismo ultimamente interveio de acordo com linhas semelhantes em outros países latino-americanos, nomeadamente no Brasil, mas a Venezuela, precisamente por causa da forte resistência que apresentou, mostra as técnicas do imperialismo num contraste mais agudo. 

Não há muito, a viragem à esquerda na América Latina – não apenas em Cuba, Bolívia e Venezuela mas também no Brasil, Argentina, Equador e vários outros países onde regimes de centro-esquerda chegaram ao poder e perseguiram políticas redistributivas em favor dos trabalhadores pobres – foram uma fonte de inspiração para forças progressistas de todo o mundo. Hoje, muitos destes regimes foram derrubados, não porque seus programas e políticas tivessem perdido apoio popular, mas através de maquinações vis nas quais os EUA desempenharam um papel importante. Foram golpes de estado de uma nova espécie, diferentes dos anteriores efectuados pelos EUA nos anos 50, 60 e 70; eles são específicos da era do neoliberalismo.
Houve dois importantes factores que contribuíram para estes derrubes. Um é o colapso dos termos de troca das commodities primárias na esteira da crise capitalista mundial. Países latino-americanos, incluindo o Brasil, têm sido fortes exportadores de matérias-primas e o movimento desfavorável dos termos de troca deixou-os com receitas cambiais reduzidas para a compra das suas importações essenciais. No caso da Venezuela, os preços reduzidos do petróleo desempenharam este papel; além disso os preços reduzidos do óleo também reduziram as receitas do governo. A tentativa do governo de preservar os benefícios redistributivos desfrutados pelos pobres diante do declínio das receitas cambiais, ao invés de adoptar as medidas de "austeridade" que as agências imperialistas advogam, provocou um surto de inflação. 

Isto indubitavelmente significou adversidade para os pobres. Mas estas adversidades, deve-se notar, não foram por causa das políticas; elas foram causadas pela deterioração dos termos de troca. De facto os pobres teriam sofrido muito mais no caso de uma política de "austeridade" face a estas dificuldades do que sofreram pela não-imposição de uma tal política de "austeridade". 

As dificuldades económicas da Venezuela foram infinitamente pioradas por causa das sanções impostas pelos EUA, as quais impedem mesmo que mercadorias essenciais como remédios para salvar vidas sejam importadas livremente. E ultimamente os EUA mais uma vez escalaram sua guerra económica contra a Venezuela através do congelamento dos activos possuídos pelo Estado venezuelano, a companhia petrolífera nos EUA, e através do anúncio de que todas as receitas das exportações de petróleo venezuelano para os EUA não serão entregues ao regime democraticamente eleito e constitucionalmente legítimo do presidente Nicolas Maduro mas sim ao regime de Juan Guaidó, o qual, com apoio dos EUA, simplesmente proclamou-se como o presidente. Isto equivale literalmente a roubar o dinheiro da Venezuela para encenar um golpe na própria Venezuela, um fenómeno que recorda a era colonial quando os povos eram pilhados para financiar conquistas coloniais. 

Tais roubos e sanções, não é preciso dizer, agravam a miséria do povo da Venezuela e a culpa desta mesma miséria é então atribuída ao governo Maduro a fim de voltar o povo contra ele. 

O segundo elemento que tem contribuído para o recente jogo do derrube é o facto de que os EUA estão agora a se desvincular gradualmente do envolvimento directo no Médio Oriente,sem de qualquer forma abandonar seus desígnios imperiais ali. E isto permite-lhe agora centrar-se mais sobre a América Latina. 

As recentes tentativas de golpes dos EUA, das quais a Venezuela é um exemplo clássico, diferem dos golpes que patrocinaram nas décadas de 50, 60 e 70 em pelo menos seis modos óbvios e em conjunto constituem um novo padrão. 

O primeiro é que apesar de os golpes anteriores, seja no Irão ou Guatemala ou Chile, terem sido contra governos eleitos democraticamente, e terem desavergonhadamente instalado em sua substituição regimes autoritários apoiados pelos EUA, são executados em nome da democracia. No Brasil, Bolsonaro aparece como um presidente democraticamente eleito; mas não só houve um golpe "parlamentar" contra Dilma Rousseff como o líder político reconhecido como o mais popular no país, o ex-presidente Lula do Partido dos Trabalhadores, foi impedido de competir nas eleições presidenciais. 

Da mesma forma na Venezuela, Juan Guaidó, o pretendente apoiado pelos EUA, acontece ser o presidente da assembleia nacional e não apenas algum homem forte militar. Por outras palavras, as forças políticas que representam a velha ordem exploradora de supremacia branca estão a ser directamente mobilizadas em massa pelos EUA nesta luta contra os regimes progressistas na América Latina. 

Associado a isto está o fenómeno de protestos de rua em grande escala e manifestações organizadas pelas forças apoiadas pelos EUA, as quais afirmam estarem a defender a democracia muito embora sejam arregimentadas contra governos democraticamente eleitos. Os golpes contra-revolucionários, em suma, adquiriram um carácter de massa ao invés de serem meros putsches militares, como era o caso anteriormente. 

Em segundo lugar, estes levantamentos contra-revolucionários em massa decorrem de dificuldades económicas enfrentadas pelo povo, muito embora os governos progressistas não sejam responsáveis por estas dificuldades e apesar de a maior parte das mesmas serem criadas através de actividades deliberadas do próprio imperialismo dos EUA. Os golpes da era anterior não tinham um carácter de massa, nem seguiam a irrupção de quaisquer dificuldades económicas, nem mesmo incomodavam-se a justificar-se invocando estas dificuldades. É verdade que o governo do Dr. Cheddi Jagan, na Guiana, foi derrubado através do desencadeamento de uma greve de camionistas que foi financiada pelo imperialismo. Mas o que então era utilizado ocasionalmente, agora é a nova norma. 

Em terceiro lugar, as culpas pelas dificuldades económicas, embora em grande medida criadas pelo próprio imperialismo, a acrescentar-se ao funcionamento da economia capitalista mundial, são atribuídas não só a governos progressistas, mas mais explicitamente às suas políticas de esquerda. Dificuldades económicas são atribuídas à nacionalização de recursos minerais, à intervenção do Estado na economia, a posições políticas anti-capitalistas e assim por diante. A propaganda para o golpe, em suma, incorpora um ataque ideológico a qualquer interferência no funcionamento da ordem neoliberal. Este ataque ideológico é necessariamente difuso. Ele invoca conceitos como "corrupção" e "incompetência": mas estes são supostamente considerados como sinónimos da interferência do Estado na ordem neoliberal. 

Em quarto lugar, da mesma maneira, o golpe explicitamente argumenta em favor de uma agenda que envolve a restauração da ordem neoliberal pró corporações. Um plano para a "Transição democrática" avançado na Venezuela, por exemplo, esboça que o golpe incluirá:   (i) A reactivação do aparelho produtivo (pelo acesso a fundos do FMI);   (ii) A remoção de todos os controles, regulamentos e "obstáculos burocráticos e medidas punitivas";   (iii) o investimento internacional dentro de um quadro regulamentar que crie confiança e protecção efectiva da propriedade privada;   (iv) Abertura ao investimento privado em empresas públicas;   (v) Aprovação de uma nova Lei dos Hidrocarbonetos que permitira ao capital privado manter maiorias accionistas em projectos petrolíferos;   (vi) O sector privado será responsável pela operação de empresas concessionárias de serviços públicos;   (vii) Eficiência a fim de reduzir a dimensão do Estado. 

Isto é uma agenda desavergonhadamente neoliberal; mas ela constitui o programa do golpe. Uma tal mensagem clara de que o governo democraticamente eleito deveria ser derrubado a fim de pressionar por uma agenda corporativa nunca fora tão explícito anteriormente. 

Em quinto lugar, os golpes actuais são efectuados com base no apoio de todas as potências imperialistas, muito embora eles possam ser efectuados pelos EUA. Portanto a União Europeia foi solicitada por Trump a que reconhecesse o pretenso governo de Juan Guaidó como governo legítimo da Venezuela – e ela o fez. É um sinal dos tempos, tanto pelo facto de que os próprios EUA não têm a mesma força que tinham antes como pelo facto de que vivemos num mundo onde rivalidades inter-imperialistas são postas em surdina, que a cooperação dos outros é requerida pelos EUA mesmo quando empreende uma acção imperialista. 

E finalmente o caso da Venezuela mostra o importante papel que os media estão agora desempenhar para amolecer os povos e levá-los a aceitar que uma acção imperialista contra um governo do terceiro mundo constitui uma defesa da democracia. Jornais como The New York Times têm estado a impulsionar esta linha. 

Em suma, temos agora uma nova ordem mundial, em que igualar interesses corporativos com democracia está a tornar-se um princípio aceite. O povo venezuelano até agora tem permanecido firme contra o golpe patrocinado pelos EUA; mas por causa disto os EUA estão agora a ameaçá-lo com intervenção armada. Se a intervenção armada acontecer, então será a primeira acção assim em anos recentes contra um país soberano, não com o argumento, não importa quão frágil, de que apresenta uma ameaça à segurança dos EUA ou de que de alguma forma prejudicou interesses dos EUA, mas simplesmente com o argumento de que ousou afastar-se de um regime de neoliberalismo. 

24/Fevereiro/2019
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em:
peoplesdemocracy.in/2019/0224_pd/anatomy-imperialist-intervention . Tradução de JF. 

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/