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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

15 estados e Distrito Federal se recusam a contabilizar violência contra LGBTs

Segunda, 19 de outubro de 2020

Da PONTE

19/10/20 por Caê Vasconcelos

Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, deixa números de violência contra LGBTs de fora porque apenas 11 estados enviaram dados – situação é ‘bastante grave’, aponta especialista


Casal LGBT+ Parada do Orgulho LGBT+ de 2019 em SP | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Apenas onze estados disponibilizaram dados de violência contra pessoas LGBTs no Brasil para que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública pudesse elaborar o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, lançado neste segunda-feira (19/10): Amapá, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Paraíba, Pernambuco, Roraima, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins.

Nesses estados, o crescimento de registros de agressão contra LGBTs foi de 7,7% em 2019. Sem dados de assassinatos contra essas populações nos registros oficiais das Secretarias de Segurança Pública, porém, o documento não consegue trazer as 129 mulheres trans e travestis assassinadas no país, somente nos primeiros oito meses de 2020, número levantado de forma voluntária pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Nem as análises do Grupo Gay da Bahia, que trazem que, em 2019, 297 LGBTs foram assassinados no Brasil.

Em números absolutos, segundo a Antra, São Paulo é o recordista nos assassinatos de pessoas trans, com 19 casos, seguido de Bahia e Minas Gerais com 16 assassinatos cada. O Ceará ocupa a quarta posição com 15 assassinatos e o Rio de Janeiro fecha o ranking com 7 assassinatos. Todos os estados registraram aumento em relação ao mesmo período do ano passado.

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Dos cinco estados mais perigosos para população trans, apenas São Paulo e Bahia enviaram os dados de violência contra LGBTs para inclusão no Anuário. Minas Gerais, Ceará e Rio de Janeiro silenciaram. De acordo com o boletim, desde 2017 esses são os estados que mais matam pessoas trans.

É essa ausência de dados oficiais que dificulta a implementação de políticas públicas que protejam a população LGBT+ no Brasil, que, segundo a Antra e o Grupo Gay da Bahia, que colhem os dados ignorados pelo Estado, é o país que mais mata pessoas LGBTs em todo o mundo, ano após ano. A Ponte vem falando disso desde agosto de 2020, quando quatro mulheres trans e travestis foram assassinadas no Ceará em um intervalo de 28 dias.

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No fim de agosto a Ponte trouxe os dados do Atlas da Violência, também do FBSP, mas que bebe de outra fonte: em vez de coletar os dados dos registros policiais, das Secretarias da Segurança Pública, o Atlas da Violência traz levantamentos da saúde, colhidos no SIM/MS (Sistema de Informação sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde), e as denúncias recebidas pelo Disque 100. Nesse estudo, o FBSP já trazia a dificuldade de mensurar os dados de violência contra LGBTs.

Por isso, em setembro, chamamos Dennis Pacheco, pesquisador do FBSP, para falar da relação da LGBTfobia com as polícias e a segurança pública, relembrando a pesquisa “Política e fé entre os policiais militares, civis e federais“, do FBSP, que trouxe à tona que PMs amam Bolsonaro e sertanejo tanto quanto odeiam LGBTs. Em outubro, na série Um vírus e duas guerras, trouxemos a equação do transfeminicídio no Brasil: misoginia, transfobia e falta de dados.

Agora, o Anuário Brasileiro da Segurança Pública prova esse ponto. Dennis Pacheco pontua que “é muito cansativo ficar falando disso toda hora, da mesma perspectiva” e avalia como “bastante grave” a falta desses dados pelas Secretarias de Segurança Pública.

Veja o 14º Anuário de Segurança Pública completo Baixar

“O enfrentamento de um problema pressupõe a identificação desse problema e, dessa forma, o problema da LGBTfobia não pode ser enfrentado pela segurança pública porque ela é incapaz de identificar e mensurar o tamanho, as especificidades, as territorialidades desse problema, a vulnerabilidade dessas pessoas e a violência letal simplesmente por uma falta de vontade política”, explica.

O pesquisador do FBSP lembra do trabalho feito por ONGs como a Antra. “A sociedade civil consegue mensurar de alguma maneira. Como que a Antra, que é uma organização pequena da sociedade civil, que não dá para comprar com um aparelho burocrático imenso do Estado, consegue fazer essa mensuração e o Estado na pasta de segurança pública não consegue?”, questiona.

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Ele também lembra os dados que analisou para a construção do Atlas da Violência 2020. “A saúde, por exemplo, é um setor que entende que política pública só é possível de ser feita com transparência e produção de dados, de evidências. Isso acaba impactando em uma padronização e integração desses dados entre os municípios, estados e união”.

“Na saúde vemos uma das políticas setoriais de gestão mais descentralizadas e mais participativas. Isso significa que existe espaço na saúde que é construído de maneira sistemática para que a sociedade civil possa coproduzir e demandas políticas públicas”, detalha.

Já a segurança pública, argumenta Dennis, “é totalmente avessa à participação social e absolutamente fechada, justifica isso com um discurso político e ideológico de que a sociedade civil não sabe fazer e não entender política de segurança pública”.

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Para Bruna Benevides, pesquisadora da Antra, para além da ausência de dados dos estados, a ausência de dados aprofundados e detalhados dos estados que fazem os mapeamentos demonstram o que a Antra vem dizendo desde o primeiro dossiê, lançado em 2017: “a dificuldade no reconhecimento dessa violência específica”.

“Nós acreditávamos, e acreditamos, que a criminalização [da LGBTfobia] viria para potencializar e ajudar exatamente no enfrentamento da omissão dos estados para que pudéssemos ter um levantamento de dados que não aconteceu. O que mais uma vez reforça o que a gente vem dizendo: os estados não estão interessados em enfrentar o problema da LGBTfobia, seja ela institucional ou não”, aponta Benevides.

Assim como Dennis Pacheco, Bruna reforça que, apesar das dificuldades, a Antra consegue levantar os dados que os estados, com todos os mecanismos disponíveis, não levantam. “Não querer levantar esses dados é uma fase da LGBTfobia institucional e ao mesmo tempo demonstra um descaso frente a violência contra a população LGBT+”.

“Os estados, que têm todo os mecanismos a sua disposição, acabam se omitindo, por conta disso é preocupante pensar que os estados sigam negligenciando o direto à segurança pública e a vida frente as violações e violências contra a população LGBT+”, critica a pesquisadora.

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“Não esperávamos nada de diferente, é a segunda vez que o Anuário traz esses dados e mais uma vez são dados insuficientes. A falta de dados é o dado mais importante, porque nos denunciar a omissão do Estado, a negligência com as nossas vidas”, completa Benevides.

Par Symmy Larrat, presidenta da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), o Estado brasileiro não sabe lidar com a LGBTfobia. “Está no DNA do Estado ser LGBTfóbico, transfóbico. Então ele tem dificuldade de entende qualquer tipo de relação que seja fora da heterocisnormatividade e a prova disso é que já temos mais de um ano da decisão do Supremo Tribunal Federal [de criminalizar a LGBTfobia] e não há nenhuma orientação do governo federal para a quantificação e apuração dessas violências”.

Além da falta de dados e protocolos para atender a população LGBT+, Larrat chama atenção para a falta de procedimentos operacionais na segurança pública que deem conta das investigações, do atendimento e da quantificação disso. “Temos diversas dificuldades. Como aplicar na lei do racismo e não visibilizar quando é uma questão LGBT+? Como a gente visibiliza isso? Se você simplesmente tipificar na lei de racismo, como o STF disse, não há como identificarmos depois”, aponta.

“Alguns estados tem campos de identidade de gênero e orientação sexual e outros não, a motivação alguns tem e outros não, não há uma uniformidade e é necessário urgentemente que isso ocorro. Em vez disso, esse governo genocida vai a sua Advocacia Geral da União para tentar diminuir a conquista no STF livrando para que templos religiosos possam falar o que quiserem sobre nós dizendo que é liberdade de expressão. É inadmissível que em qualquer lugar tenha incentivo ao ódio, o estímulo a violência”, crava.

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Questionado sobre o que é necessário fazer para que na edição de 2021 do Anuário esses dados possam ser contabilizados, Dennis Pacheco, do FBSP, crava: “É difícil de esperar uma transformação acontecendo de maneira espontânea do Estado. Historicamente as transformações que tivemos na segurança pública, em termos de sistematização e de produção de dados, foram todas causadas por pressões da sociedade civil”.

“Tanto não podemos esperar que isso aconteça de forma voluntária pelo Estado que o Anuário existe porque o Estado se recusa a cumprir com um papel que é dele. Se o FBSP consegue sistematizar, compilar e analisar esses dados, que são pedidos para o Estado via Lei de Acesso à Informação, como que os órgãos estatais não conseguem? O que existe é uma resistência política”, avalia.

Para que esses dados estejam disponíveis ano que vem, analisa o pesquisador, a cobrança precisa ser feita, não só pela sociedade civil, mas também pela imprensa. “Temos olhar quais são os estados que respondem, quais são os estados que não respondem e cobrar posicionamento, entender porque os dados não existem, se há alguma justificativa razoável. Da minha perspectiva não existe uma justificativa razoável para não implementarmos essas transformações”.

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“Já que não podemos publicizar um dado de fato, que seria o esperado, publicizamos a ausência de dado que é um outro dado. Não é nenhum absurdo, é incluir um campo num documento oficial com identidade de gênero e orientação sexual. Não precisa de grandes investimentos, não precisa de grandes treinamentos, é um campo, um quadradinho para preencher”, argumenta Dennis.

Em agosto, a pesquisadora Dália Celeste, do Observatório da Segurança de Pernambuco, que atua com foco de pesquisa em gênero, raça, etnia e sexualidade, havia descrito esses crimes, contra pessoas trans, como “um extermínio escancarado”. “Mulheres trans, travestis e homens trans estão morrendo, mas ficamos sem os levantamentos, porque estão sendo enterrados esses corpos com a morte da identidade”, completou.

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Dália para falou da ausência de segurança pública para corpos LGBTs, principalmente corpos trans, no PonteCast, no episódio “Falar de segurança pública para população LGBT é falar do que não existe“, em 23 de agosto.

“Quando falamos em segurança pública falamos em ausência. Se corpos não são lidos nem vistos como humanos, são corpos que sistematicamente não são dignos de ter esse debate de cuidado e proteção. Falar de segurança para população LGBT é falar de ausência, falar do que não existe”, lamentou Dália.

Nessa conversa, Dália trouxe possíveis caminhos. “Como vamos evitar que pessoas trans sejam executadas? Incluindo no mercado de trabalho. Tirando do espaço de marginalização. Mulheres trans entram para a prostituição porque precisam de dinheiro, precisam se alimentar e ficam vulneráveis”, apontou.

Outro lado

A Ponte procurou as Secretarias de Segurança Pública de Acre, Alagoas, Amazonas, Ceará, Distrito Federal, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia e Sergipe (além da Polícia Civil e da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro, que não tem Secretaria de Segurança Pública), para questionar a ausência dos dados, e aguarda retorno.