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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

O Múltiplo Darcy Ribeiro

 Segunda, 26 de outubro de 2020

Por
Pedro Augusto Pinho

Darcy Ribeiro (Montes Claros, 26/10/1922 – Brasília, 17/02/1997) foi, antes de qualquer outra qualificação, o maior pensador do Brasil e sobre o Brasil. Mas também foi antropólogo, historiador, sociólogo, escritor, político e um dos nossos grandes educadores.

Não é fácil escrever sobre uma pessoa que dizia de si mesmo: “enfrentei a vida com coragem, inocência e gozo”. Síntese invejável!

Coragem, desde sempre, ao deixar a faculdade de medicina, em Belo Horizonte, para ser antropólogo na Escola de Sociologia e Política, em São Paulo. A medicina parecia pouco atraente para quem queria conhecer o mundo e o lugar do Brasil nele. Surgem daí os cinco volumes fundamentais dos “Estudos de Antropologia da Civilização”:

I – O Processo Civilizatório (1968), as etapas da evolução sociocultural. “A alienação dos valores tradicionais ameaça crescentemente a manutenção da ordem social. Que terá acontecido? Em que erramos?”, profetiza.

II – As Américas e a Civilização (1970), o processo de formação e causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos. “As diferenças fundamentais entre a antiga situação e a nova encontram-se na nova dinâmica social, caracterizada pela consciência da incapacidade do sistema global de dar solução para os problemas gerados pela modernização reflexa e de satisfazer o nível de aspirações da população”. Seria possível um processo decisório afastado das realidades das sociedades, de cada e diferente sociedade, e podendo satisfazer qualquer uma delas? Seria o desmoronamento da sociedade industrializada num país em que o setor primário responde pela maioria da riqueza nacional? Ou no país onde as estruturas de informação e comunicação são dominadas pelo setor privado comercial? Sem atentar para as diferenças, o erro será permanente.

III – O Dilema da América Latina (1971), estruturas de poder e forças insurgentes. Onde Darcy organiza as classes em dominantes (patronato e patriciado), setores intermediários (autônomos e dependentes – funcionários), classes subalternas (campesinato e operariado) e classes oprimidas (marginais, biscateiros, domésticos, delinquentes). Também critica a “inaptidão das esquerdas tradicionais para se constituírem em um contendor instrumentado de projetos viáveis de tomada do poder e de reordenação da sociedade”.

IV – Os Brasileiros (I – Teoria do Brasil) (1969), onde ironiza no Prefácio “muitos metros cúbicos de livros e artigos tentam entender o Brasil do passado e do presente. Indagam, essencialmente, por que uma nação populosa e das mais ricas em recursos naturais permanece subdesenvolvida e só é capaz de promover uma prosperidade de minorias, não generalizável ao grosso da população”.

V – Os Índios e a Civilização (1970), a integração das populações indígenas no Brasil Moderno. Onde, com sua absoluta honestidade, reconhece que “trabalhando ao longo dos anos, em pesquisas de campo bem como na reconstituição de situações com base na bibliografia pertinente e, ainda, em esforços de reflexão teórica sobre o material coletado, o estudioso acaba de se tornar incapaz de distinguir suas induções de suas deduções”. Muito mais do que a consciência da dúvida, uma reflexão sobre a complexidade do humanismo diante do “processo civilizatório”.

Estes magníficos trabalhos seriam mais do que suficientes para demonstrar a imensa grandeza e honestidade intelectual de Darcy Ribeiro. Mas, ainda no mundo das ideias e das letras, ele nos deixou obras de ficção e ensaios, que mostram a amplitude de seu gênio.

Até aqui apenas tratamos do intelectual. E coloco em suas próprias palavras a dimensão gerencial, empreendedora, também marcante do construtor da Universidade de Brasília e dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), no Rio de Janeiro:

“gosto de mandar e dirigir e sou capaz de comandar empreendimentos grandes que envolvem muitas pessoas, fazendo-as trabalhar eficazmente” e foi um inovador, notável incentivador e motivador de pessoas. Continuo a transcrição: “Temo muito ser recordado no futuro mais por meus empreendimentos que por minhas ideias, o que será uma injustiça. Quisera mesmo é mudar o jeito de pensar das pessoas, cavalgar milhões delas e dirigi-las a seu gosto e seu pesar, para a felicidade e a glória”; o educador libertário de que trataremos. (Darcy Ribeiro, “Vida, minha vida”, Coleção Darcy no Bolso, Editora UnB, Fundação Darcy Ribeiro, Rio-Brasília, 2010).

Antes do educador, detenhamo-nos no político. Homem de ideias e de ação seria impossível não ser chamado para política.

Ministro da Educação e Cultura (MEC) quando, no regime parlamentarista do presidente João Goulart, foi Primeiro Ministro o professor Hermes Lima (18 de setembro de 1962 a 24 de janeiro de 1963) e chefe da Casa Civil, entre 18 de junho de 1963 e 31 de março de 1964. Cassado e exilado, viveu no Uruguai e atuou em diversos países como educador e construtor de universidades. Na volta ao Brasil foi vice-governador de Leonel Brizola (1983-1987), e senador pelo Rio de Janeiro de 1991 até sua morte em 1997.

Devemos registrar o que Darcy chamou de “Terceiro Exílio”, sua saída do Peru de Velasco Alvarado, deposto em 29 de agosto de 1975, e o fim do SINAMOS – Sistema Nacional de Apoyo a la Movilización Social. Escreve o Mestre: “Acabava a revolução social dos milicos nasseristas e um novo comando reatava o Peru ao atraso” (quanta tristeza a morte não poupou a Darcy neste atual embrutecimento bolsonarista). “Para mim (a queda de Alvarado) representou o total desastre de um dos projetos mais ambiciosos que elaborei minha revolução cibernética não ideológica, filha dos computadores e da matemática, da simulação numérica. Se mesmo com Velasco Alvarado ela não pudera ser articulada para se por em ação, não havia qualquer possibilidade de que florescesse nas novas condições” (Darcy Ribeiro, “A volta por cima”, Coleção Darcy no Bolso, UnB, FDR, Rio-Brasília, 2010).

Se precisássemos resumir o múltiplo Darcy Ribeiro optaríamos pelo educador. A pessoa que usou todo seu enorme talento para nos libertar da pedagogia colonial.

“Como é que o Brasil consegue ser tão ruim em educação? Quem quisesse organizar um país com o objetivo expresso de alcançar, com tantos professores e com tantas escolas, um resultado tão medíocre, teria que fazer um grande esforço”. E discorre sobre o que seriam as causas desta situação “para os liberais”: o processo de urbanização e de industrialização, o transladar do campo para cidade, a inexistência de uma escola ideológica (a escola sem partido) que domesticasse camponeses urbanizados e proletários convencendo-os que “são pobres porque são burros”.

O Império e a República jamais se propuseram a educar o povo. “Nossa incapacidade de educar a população, assim como a de alimentá-la, se deve ao próprio caráter da sociedade nacional. Somos uma sociedade enferma de desigualdade, enferma de descaso por sua população. Assim é porque aos olhos das nossas classes dominantes, antigas e modernas, o povo é o que há de mais reles. Seu destino e suas aspirações não lhes interessam, porque o povo, a gente comum, os trabalhadores são tidos como mera força de trabalho, destinada a ser desgastada na produção. Nosso atraso educacional é uma sequela do escravismo. Nós fomos o último país do mundo a acabar com a escravidão, e este fato histórico, constitutivo de nossa sociedade, tem um preço que ainda estamos pagando” (Darcy Ribeiro, “Educação no Brasil”, in O Livro dos CIEPs, Bloch Editores, Rio de Janeiro, 1986).

A classe dominante brasileira se mantém no poder através da ignorância de seu povo, e assim o faz não alterando essa realidade e dificultando todo acesso ao conhecimento; para o que é importante criar uma escola, que é por onde se quebram as amarras da ignorância, que reproduzem somente o que importa para perpetuação da escravidão, para construir e manter os antolhos mentais que impedem de entender o que está sob os olhos.

As revoltas que sempre estão ocorrendo, as mortes que se avolumam são tratadas como antagonismos à paz, à liberdade, à democracia, que o povo assassinado nunca gozou.

Vemos um ápice, que sempre é superado em nossa história, com o atual teto de gastos (criado pela Emenda Constitucional 95, de dezembro de 2016). Teto que só existe para as despesas, já insignificantes, destinadas a um mínimo de cuidado com o povo. Para as finanças, para a banca, nem a covid-19 restringe trilionárias transferências do Tesouro, dos impostos recolhidos pelo Governo, para que os bancos elevem seus lucros.

Ao lembrarmos saudosos deste grande brasileiro, quando completaria 98 anos, pensamos a falta que ele e Leonel Brizola, com quem trabalhou no “primeiro programa sério de reforma do sistema escolar público” brasileiro nos fazem.

Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.

Transcrito do MONITOR MERCANTIL