Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

domingo, 18 de outubro de 2020

QUEM SABE O QUE É (FOI) XARÉU?

Domingo, 18 de outubro de 2020

O texto que provoca uma grande saudade e deliciosas lembranças ao editor deste Blog Gama Livre foi publicado no Facebook A Voz do Campeão no último dia 16 de outubro. O texto traz as boas lembranças da minha Fonte Nova, templo em que eu praticamente não perdia um jogo do Esquadrão de Aço, fosse contra o Santos, Botafogo, Flamengo ou simplesmente um Vitória, Galícia, Leôncio ou São Cristovão da Bahia.

Hoje a minha querida Fonte Nova não tem nada mais a ver com essa coisa horrorosa de agora e que deram o horroroso nome de  Itaipava Arena Fonte Nova.

O texto do autor, Ivan J. Carvalho, me faz lembrar também das mil fugidas das minhas aulas da Universidade Federal da Bahia. Por muito tempo a minha faculdade funcionava num prédio no início da Avenida Joana Angélica. Daí até o estádio da Fonte Nova —falei estádio, porra! Não falei arena— era um pulinho, não mais do que 1.100 metros. Se fugia mais cedo, ia andando. Se mais tarde, perto do jogo iniciar, em marcha acelerada. Verdade que, normalmente eu não fugia sozinho, estava fugindo em bando de pelo menos uns 7 a 15 alunos. Nunca cheguei atrasado à Fonte Nova (novamente não falei arena). Cobrir essa distância de pouco mais de mil metros entre a Faculdade e a Fonte Nova era moleza para quem passava o dia jogando bola na praia, na maioria das vezes na areia fofa.

Mas o que tem a ver isso aí em cima com o título e conteúdo do artigo abaixo? Leia e saiba. Afinal o Xaréu era alguma coisa emocionante de se ver. Povão bonito.


Essa sim é a Fonte Nova

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QUEM SABE O QUE É (FOI) XARÉU?

Quem nunca frequentou o estádio da Fonte Nova nas décadas de 70 e 80, certamente dirá que é apenas o nome de um peixe.

Mas quem já arranhou a mão para comprar o ingresso nos minúsculos buracos de forma triangular em cimento das bilheterias da nossa saudosa Fonte Nova, sabe que xaréu era o momento mágico em que, em meados do 2º tempo dos jogos, os portões de saída do estádio eram abertos e os torcedores, que não tinham condições de comprar ingressos, seja porque não tinha dinheiro, seja porque não encontraram para comprar, entravam para assistir ao resto do jogo de graça.

A partir dos 20 minutos do segundo tempo, os demais torcedores que tiveram o fortúnio de adquirir um ingresso, dividiam as atenções do jogo com a iminente abertura dos portões atrás do gol do placar (portão 7), onde ficava a histórica Kombi do reggae, uma Kombi (naquele tempo não existia van) velha, caindo aos pedaços que vendia cerveja ao som do reggae de Bob Marley, Jimmy Cliff, Peter Tosh e o hino do Bahia e que era o ponto de encontro de torcedores tricolores no pré e pós jogo.

Não importava as cores do time, tricolores e rubro negros se misturavam em um ambiente em que o amor inabalável pelas suas cores não permitia que a violência desse as caras. Todos ficavam boa parte do jogo espremidos em busca de uma fresta no portão que permitisse ver, ao menos, a ponta do mastro da bandeirinha do escanteio. Alguns quase arrancavam o globo ocular para posicioná-lo no furinho que estava no alto do portão.

Como a China acabara de sair da revolução de Mao Tsé Tung e ainda não entrara na era do “xingling”, um radinho de pilha era artigo de luxo e para muitos que alí estavam o jogo era acompanhado somente pela reação da torcida dentro do estádio. Se a torcida gritasse gol, era a alegria geral, se a torcida emitisse apenas um “uuhhhh!!!”, a lamentação era geral cá fora. Enquanto isso, lá dentro, Lourinho tocava sua buzina para acordar o time.

E ninguém pense que esses torcedores não sabiam o que era emoção dentro do estádio, pois muitos deles entraram a tempo de se deliciarem com o gol de Raudinei, o frango de Gelson, o último gol de Toninho Taino no inigualável 5x0, o gol do sergipano Charles contra o Fast Clube e tantos outros.

Quando os funcionários da SUDESB puxavam as trancas de ferro e os portões se abriam, surgia uma massa de torcedores como se estivessem chegando para a festa de São Firmino em Pamplona, e invadiam o pátio sob o placar eletrônico em uma correria desenfreada para conseguir um lugar na arquibancada.

Naquele momento o futebol baiano conseguia a proeza de se igualar à praia como o lazer mais democrático da cidade de Salvador onde estudantes e professores, patrões e operários, os funcionários públicos e desempregados, ricos e pobres sentavam todos juntos no mesmo cimento duro e crespo sem a atual separação por pontos cardeais e as fumaças dos cigarros Gaivota e Arizona sem filtro misturavam-se às do Charm, Minister e Hilton. O picolé da Capelinha ganhava fácil da Kibon-Maguary na preferência e nem banguela resistia a um doce rolete de cana e um amendoim cozido.

Era o tempo em que o estádio de futebol era apenas um local da prática do mais apaixonante e popular esporte do país e arena era apenas a sigla da famigerada Aliança Renovadora Nacional, criada pela nefasta ditadura militar. O estádio de futebol era uma obra de arquitetura que tinha a alma do povo que ali frequentava, todo torcedor tinha a intimidade com o ambiente como se ali fosse (e era) a continuidade sua casa.

O Dicionário de Baianês define o xaréu como: “pessoa que entra no estádio de graça no final do jogo quando se abrem os portões” (peço licença a Nivaldo Lariú para fazer duas pequenas, mas importantes, correções dessa definição, a entrada era durante o jogo e não no final e não era a pessoa, mas o momento instantâneo da abertura dos portões), e nenhum outro dicionário refere-se ao xaréu como e manifestação folclórica do Estádio Octávio Mangabeira.

Segundo o professor Cid Teixeira, o nome dá-se ao ato dos pescadores da orla soteropolitana que, após as puxadas de rede, separavam os peixes sem valor comercial (o xaréu era o mais abundante) e levavam para as imediações da Barroquinha para distribuir à população pobre que se aglomerava naquela região. Quando o carro chegava com a carga de peixes para distribuição gratuita, logo gritavam: “OLHA O XARÉU!!!”, e a multidão corria para disputar a valiosa, e talvez a única, refeição do dia. Daí a associação da imagem das pessoas esfomeadas correndo um busca do peixe à busca de um melhor lugar no estádio para assistir ao resto de uma partida futebol.

O xaréu, assim como a Kombi do reggae e Lourinho, era uma instituição cultural do povo soteropolitano que foi implodida junto com a, carinhosamente chamada pelo torcedor, Fonte Nossa.