Quinta, 15 de outubro de 2020
Do Le Monde Diplomatique Brasil
Por André Rosa
14 de outubro de 2020
Comunistas brasileiros participaram do processo de reconstrução da Argélia, no campo da educação e da cultura, através da reforma universitária no país
A fundação da Universidade de Brasília (UnB), em 1962, significou a realização de um sonho. Se a construção da nova capital permitiu que o Brasil se reencontrasse consigo mesmo, a UnB possibilitaria uma participação direta da inteligência na superação dos problemas históricos que afligiam o país e o seu povo, como queriam seus idealizadores Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e Oscar Niemeyer. Mas a “utopia concreta” durou pouco. Veio o golpe militar de 1964 — alunos presos, professores perseguidos, a universidade ocupada por tropas da polícia. Cassados e impedidos do exercício da profissão, muitos deixaram o país em um voo cego rumo ao exílio.
Oscar Niemeyer, Leonel Brizola e Darcy Ribeiro. (Acervo Fundar)
Enquanto isso, do outro lado do mundo, a Argélia se reconstruía depois de 132 anos de colonização francesa — a sua independência só foi proclamada em 1962. O povo argelino vivia tempos diferentes, um tempo em que se sentia a calma das tarefas cumpridas entre os homens que juntos lutaram e que juntos se uniam para construir um país. Mas o que poucos sabem é que os comunistas brasileiros participaram do processo de reconstrução da Argélia, no campo da educação e da cultura, através da reforma universitária no país.
Sob a liderança de Oscar Niemeyer, participaram desse projeto os arquitetos Edgar Graeff, Marcos Jaimovich e Oswaldo Cintra de Carvalho, além do biólogo Luiz Hildebrando Pereira da Silva, do físico nuclear Ubirajara Brito, do psiquiatra Euvaldo Mattos e dos educadores Darcy Ribeiro e Heron de Alencar. Juntos, construíram as universidades de Constantine, depois a Científica de Argel e, ainda, a de Ciências Humanas. O sonho da Universidade de Brasília, tão brutalmente interrompido pela ditadura que havia se instalado contra o Brasil, renascia no exílio, na boca do Deserto do Saara, das mãos daqueles que o governo brasileiro tratou como indesejáveis.
Em um artigo publicado na revista Módulo, em agosto de 1976, Niemeyer escreveu que as novas universidades argelinas eram “modernas e integradas, como Darcy Ribeiro as propunha para o Brasil”, e que, sob o aspecto arquitetônico, eram “diferentes de todas as outras: mais flexíveis, mais compactas, mais aptas para os sistemas atuais”. E a contribuição brasileira foi adiante.
Além das universidades, Niemeyer trabalhou também na elaboração do Centro Cívico e do Plano de Argel, que fixou uma hipótese urbanística para o crescimento da capital. Mas não se tratava apenas de obras importantes, construções de prédios e universidades. Havia o elemento humano, o coletivo. Como mais tarde pontuou o arquiteto, “o principal é que tudo isso servirá a uma filosofia social atualizada, dirigida a todos, sem discriminação, pois o país a eles pertence, sem os privilégios que o capitalismo adotou e instuiu”.
Nós, que um dia fomos colonizados, participamos do processo de descolonização de um outro país. A mesma inteligência brasileira que havia sido perseguida na própria nação que ajudou a construir executou, no exílio, o projeto de uma universidade autônoma e atuante no seio da sociedade.
Se um dia uma missão francesa trouxe até nós um de seus maiores filhos, o antropólogo Claude Lévi-Strauss, em nossa “missão brasileira” nós levamos à Argélia alguns de nossos intelectuais mais brilhantes. Não nos esqueçamos de que Luiz Hildebrando Pereira da Silva foi um dos maiores especialistas em malária no mundo, ou que o físico nuclear Ubirajara Brito ocupou o cargo de superintendente de desenvolvimento em ciências básicas do CNPq. Ou ainda, Heron de Alencar, que foi professor de literatura brasileira na Universidade de Paris-Sorbone e vice-reitor da Universidade de Brasília, onde fundou o departamento de ensino em literatura no Instituto Central de Artes – sobre o cearense Heron, é sintomático que o seu nome esteja catalogado na Wikipédia em francês, mas não em língua portuguesa.
Em um Brasil brutalizado e sem memória, de um presidente que tem como seu maior herói um reles torturador, um assassino vulgar a serviço de uma ditadura, é importante que nomes como esses sejam relembrados como símbolos de um Brasil solidário e comprometido com o humano. Afinal, isso sempre foi o que tivemos de melhor em nós.
André Rosa é escritor e tradutor.