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(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Vencer a pedagogia colonial para verdadeira independência

Quarta, 28 de outubro de 2020

Por

Pedro Augusto Pinho

Opinião /  28 de outubro de 2020

 

Em 26 de outubro comemoramos o aniversário de nascimento de Darcy Ribeiro. Deveria ser uma festiva data nacional, pois se trata do maior pensador brasileiro, aquele que teve na nossa cultura, no estudo de nossos autóctenes antepassados, na profunda compreensão do povo brasileiro, desenvolvida sua metodologia e seu foco do trabalho.

Darcy, diferentemente da quase totalidade de nossos intérpretes, pensadores e construtores da nacionalidade brasileira, não se escorou em ideologias e teorias do norte, do mundo colonizador. Neste artigo me deterei numa única, mas fundamental questão por ele estudada e que denomino a pedagogia colonial.

Trato por pedagogia colonial aquela que o poder, todo poder e a qualquer tempo, adota para que não haja reflexão crítica, pensamento próprio, ideias que não sigam os interesses do poder, nas populações sob seus domínios. O poder na Inglaterra, por exemplo, que é o fundiário-financeiro desde o século XV, aproveitou a religião cristã para construir seu processo de dominação do espírito, da mente dos habitantes das ilhas Britânicas e, a partir daí, de todo seu Império Colonial.

Notável é a infiltração da pedagogia colonial em nossas mentes, que conduz às maiores ignomínias, às mais autodestruidoras ideias, e que, no entanto, seja considerada tão natural como o ar que respiramos. E, ainda pior, quando conseguimos apontar uma consequência da pedagogia colonial na atitude, às vezes até nociva à própria pessoa, ela, ao invés do reconhecimento, repudia o alerta.

Darcy Ribeiro vai ao âmago desta pedagogia colonial em nossa Nação, quando ressalta a “criação de necessidades” para populações originárias e o aprendizado da “língua do senhor” ambas conduzindo à escravidão e à subserviência.

Escreve este gênio brasileiro: “O preço da satisfação é a submissão final ao processo de produção”, “são integrados como consumidores, como produtores ou como reserva de mão de obra” (Darcy Ribeiro, Os Índios e a Civilização, Editora Vozes, Petrópolis, 1979, 3ª edição) e “desde o primeiro dia, o negro enfrenta a tarefa tremenda de reconstruir-se como ser cultural aprendendo a falar a língua do senhor, adaptando-se às formas de sobrevivência na terra nova” (Darcy Ribeiro, Educação no Brasil, in O Livro dos Cieps, Bloch Editores, 1986).

E esta ausência de uma cognição própria, individual, se transborda na compreensão igualmente submissa da sociedade que, salvo em poucos e isolados episódios de nossa História (veja na Era Vargas), “se ter fluido o conceito de soberania” nacional.

A luta pela soberania política-econômica-administrativa deve, por conseguinte, estar acompanhada da luta pela libertação da pedagogia colonial. E a Escola do Presente, que Leonel Brizola apresenta no Livro dos Cieps, como aquela que surge “questionando, por dentro, esta realidade social injusta, desumana e impatriótica”, esta escola de Darcy Ribeiro é o maior exemplo.

Embora lembre em alguns elementos a Escola do Trabalho, de M. Pistrak (1888-1940), o amor à criança e o humanismo de V. Sukhomlinski (1918-1970) e a alegria de estudar e a escola antipreconceituosa de Georges Snyders (1917-2011), os Cieps e a Universidade de Brasília são, acima de tudo, as escolas da brasilidade. Aquelas que poderiam nos libertar da pedagogia colonial e, portanto, como tudo que seja construção nacional, que signifique a defesa do Brasil, especialmente do pensamento brasileiro, precisa ser imediatamente destruído, não pode existir ou deixaremos de ser colonizados.

E vemos hoje com tristeza os Cieps, como a Petrobrás, sendo fisicamente destruídos, pois a destruição por dentro, das motivações, do entusiasmo da construção nacional, não tem como sobreviver aos tempos neoliberais, a todos governos após a Constituição de 1988.

A pedagogia colonial, existente em pensamentos ideologicamente e politicamente opostos, está explicitada magistralmente na introdução (As Teorias do Atraso e do Progresso) que Darcy Ribeiro escreve para sua monumental As Américas e a Civilização, escrita no Uruguai, em 1968, e publicada no Brasil, em 1970, pela Editora Civilização Brasileira. Vou arriscar uma síntese, que nunca terá o mesmo sabor e completude do texto do pensador brasileiro.

São dois os esquemas conceituais, de orientações opostas, que “inspiram a maioria dos estudos sobre o desenvolvimento das sociedades americanas: o da sociologia e o da antropologia acadêmicas e o do marxismo dogmático”.

Perdoem-me leitores a arrogância, mas sumarizo esta magnífica exposição de Darcy Ribeiro afirmando que são pensamentos de base liberal, que, até de boa fé, buscam em detalhes, em levantamentos muitas vezes exaustivos de fatos insignificantes, deslocados da história e do ambiente físico e humano em que se dão, justificar uma situação e sua transformação de um polo de atraso para outro de modernidade.

Retomo a obra de Darcy. Há nestas produções acadêmicas um caráter conformista que não espera qualquer transformação da sociedade. “Um tipo de investigação científica que se satisfaz em documentar copiosamente as diferenças entre as sociedades atrasadas e em registrar, com igual abundância de detalhes, os contrastes de modernidade e tradicionalismo”.

Porém, “estes estudos se prestam utilmente ao esforço de doutrinação às nações avançadas em relação às atrasadas, para induzi-las a uma atitude de resignação com a pobreza ou seu equivalente que é a crença nas possibilidades de superação espontânea do atraso”.

Quanto ao marxismo dogmático, “se assenta na ideia de que as diferenças de desenvolvimento das sociedades modernas se explicam como etapas de um processo de evolução unilinear e irreversível, comum a todas as sociedades humanas”. Estudos assim inspirados se reduzem a ilustrações com exemplos locais, e, como há por toda região a relação escravista de trabalho, “o esquema se desdobra em categorias híbridas, como formações feudal-escravistas, semifeudais, semicoloniais, feudal-capitalistas etc.”.

“O paradoxal é que esta concepção teórica, nominalmente revolucionária, resulta, com frequência, ultraconservadora”: sentar e esperar pela evolução libertadora, como um religioso, pelo milagre.

René Capriles, em seu estudo Makarenko O Nascimento da Pedagogia Socialista (Editora Scipione, SP, 1989), escreve que o império russo dos tzares “teve nas escolas paroquiais seu principal meio de ensino e doutrinação”. Confirmando que a pedagogia colonial pode apresentar variações conforme o tempo e o local, mas sempre é um projeto de manutenção do poder.

Voltemos ao analítico As Américas e a Civilização. Darcy Ribeiro propõe estudar a realidade social sob três esferas: adaptativa, associativa e ideológica.

“O sistema adaptativo (analisa como) a sociedade atua sobre a natureza no esforço de prover sua subsistência e reproduzir o conjunto de bens e equipamentos”. Vemos nesta esfera a base nacionalista que deve sustentar toda análise e proposta de transformação das sociedades. Cada sociedade encontra sua condição geomorfológica, hidrográfica, eólica, insolar e tantas outras ambientais próprias e únicas.

Daí resulta o sistema associativo, que “permite organizar a vida social, disciplinar o convívio humano, regular as relações de trabalho e reger a vida política”, ou seja, estruturar a ação da sociedade e lhe dar a forma que corresponda ao processo otimizado da sua relação com a natureza.

“Finalmente, o sistema ideológico é representado pelos corpos de saber, de crenças e valores gerados nos esforços adaptativo e associativo”. Temos, então, o que denomino “consciência” na construção da cidadania, ou seja, a mais eficaz ação para independência da pedagogia colonial; a formação de uma consciência nacional, conhecer-nos e aos outros, respeitando-os e exigindo reciprocidade.

Nesta homenagem aos 98 anos do nascimento do genial intérprete, concluo com a análise que também significa uma proposta nacional em As Dores do Parto (in Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro, Companhia das Letras, SP, 1995). “Nunca houve aqui um conceito de povo, englobando todos os trabalhadores”, a “primazia do lucro” exigida pelo “mercado externo” gera uma “força de trabalho afundada no atraso”.

Assim, há a estratificação de classes que “desgarra e separa os brasileiros”. “O ruim aqui, e efetivo fator causal do atraso, é o modo de ordenação da sociedade, estruturada contra os interesses da população, desde sempre sangrada para servir a desígnios alheios e opostos aos seus. Não há, nunca houve, aqui um povo livre, regendo seu destino na busca de sua própria prosperidade”.

“Somos um povo em ser, impedido de sê-lo”.

Pedro Augusto Pinho, Administrador aposentado.

Transcrito do MONITOR MERCANTIL