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(Millôr Fernandes)

domingo, 25 de outubro de 2020

As contas do Banco Mundial

 Domingo, 25 de outubro de 2020

Do 

por Eric Toussaint  — 21 de Outubro

Em 2020, o Banco Mundial (BM) e o FMI fazem 76 anos. Estas instituições financeiras internacionais (IFI), criadas em 1944 e dominadas pelos EUA e seus aliados, agem sistematicamente contra os interesses dos povos, concedendo empréstimos aos estados com o fim de influir nas suas políticas. O endividamento externo foi e continua a ser utilizado como instrumento de submissão dos devedores.

Desde a sua criação, o FMI e o BM violaram pactos internacionais relativos a direitos humanos e nunca hesitaram, nem hesitam, em apoiar ditaduras.

É urgente fazer uma nova forma e descolonização, para sair do impasse em que as IFI e seus principais accionistas encurralaram o mundo. É preciso construir novas instituições internacionais.

Publicamos aqui uma série de artigos de Éric Toussaint, que descreve a evolução do Banco Mundial e do FMI desde a sua criação. Estes artigos foram extraídos do livro Banco Mundial: o Golpe de Estado Permanente, que pode ser consultado gratuitamente em francês ou em castelhano. Existe também uma edição inglesa.

Desde que o Banco Mundial iniciou a sua actividade, em 1946, todos os anos, sem excepção, obteve um resultado operacional líquido positivo. Em 1963, o Banco Mundial é confrontado com benefícios tão significativos que o seu novo presidente, George Woods, que tinha sido, pouco tempo antes, presidente do banco First Boston, propôs à direcção do Banco distribuir dividendos pelos accionistas como qualquer banco que se preze [1]. A ideia é abandonada porque a direcção considera que a distribuição de dividendos daria uma muito má imagem do Banco perante os países em desenvolvimento endividados. Decidiu-se, então, transferir os lucros para as reservas do Banco. Em 2005, as reservas do Banco totalizavam 38,5 mil milhões de dólares.












Desde 1985, o rendimento [2] da principal agência do Banco, o BIRD (Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento), superou anualmente os mil milhões de euros. Resultados excepcionais foram atingidos em 1992 (1709 milhões de dólares de lucro), em 2000 (1991 milhões) e, sobretudo, em 2003 (3021 milhões).

O Gráfico 1 indica a evolução do resultado operacional entre 1981 e 2005.


Como é que o Banco Mundial obtém lucros?

O BIRD obtém lucros através dos reembolsos efectuados pelos países devedores, principalmente através de alguns grandes países com rendimento médio [3]. Os países mais pobres não estão aliás em condições de contrair empréstimos junto do BIRD, contraindo junto da AID (Agência Internacional para o Desenvolvimento, IDA em inglês).

Tabela 1. Evolução da dívida de todos os PED ao BIRD entre 1970 e 2004 (em milhões de dólares)

AnoStock totalMontante dos empréstimosMontantes reembolsadosTransferência líquida
19704 377672491181
19714 892796559237
19725 517928630298
19736 146969757213
19747 1361 338883456
19758 5001 817987830
19769 9841 9371 151786
197711 7842 3731 434939
197813 8122 6611 780881
197916 5203 4522 1611 291
198020 4324 2242 6661 558
198124 3565 2012 9632 239
198228 5705 8283 6112 217
198333 7067 1044 3762 728
198433 4267 9175 2172 700
198546 6127 9156 0771 838
198663 4119 7688 881887
198783 37210 68011 447-767
198879 87111 59114 393-2 801
198980 98110 56413 302-2 738
199092 31413 43814 807-1 369
199197 13611 92416 686-4 762
199292 28310 21817 455-7 237
1993100 15612 88417 724-4 840
1994107 71311 29919 113-7 814
1995111 69113 09419 641-6 548
1996105 30813 14819 276-6 128
1997101 52214 49917 334-2 835
1998108 45514 37617 099-2 723
1999111 32914 08217 101-3 019
2000112 14513 43017 510-4 079
2001112 53012 30517 275-4 970
2002111 30310 28822 414-12 126
2003109 03611 41122 761-11 350
2004104 5268 29818 381-10 084
Fonte: World Bank, Global Development Finance 2005.

O BIRD obtém lucro através da diferença entre o custo dos empréstimos que contrai nos mercados financeiros, por um lado, e o dinheiro que os PED lhe pagam (amortização do capital emprestado + juros), por outro lado. No entanto, é preciso, de facto, que os PED reembolsem o BIRD. E é o que acontece, o BIRD consegue, com regularidade, ser reembolsado. Há, naturalmente, algumas excepções e alguns países são maus pagadores; é o caso do Zaire de Mobutu, por exemplo.

Para fazermos uma ideia de quanto os PED levam a sério o reembolso ao BIRD, basta ter em conta a Tabela 1, onde se percebe que os PED pagam muito mais do que o BIRD lhes empresta. Para os PED, a transferência líquida é negativa desde 1987. Constata-se também que, apesar dos enormes reembolsos, a dívida total junto do BIRD cresceu significativamente.

O Gráfico 2 apresenta a evolução do stock e da transferência líquida:

Escala da esquerda: Transferência líquida da dívida ao BIRD para o conjunto dos PED (em mil milhões de dólares).
Escala da direita: Evolução da dívida total ao BIRD para o conjunto dos PED entre 1970 e 2004 (em mil milhões de dólares)

O Banco Mundial afirma que os lucros que obtém através do BIRD não lhe permitem equilibrar as contas por causa do défice da AID, que concede empréstimos a juros baixos aos países mais pobres. O Gráfico 3mostra que se, por um lado, somarmos os empréstimos do BIRD e da AID e subtrairmos o conjunto dos reembolsos pagos pelos PED (incluindo os mais pobres) ao BIRD e à AID, o Banco fica largamente a ganhar desde o início dos anos noventa. Assim, entre 1991 e 1996, a transferência líquida foi sistematicamente negativa, acontecendo o mesmo desde 2000.


















Escala da esquerda: Transferência líquida da dívida ao Banco (BIRD + AID) para o conjunto dos PED (em milhares de milhões de dólares)

Escala da direita: Evolução da dívida total ao Banco (BIRD + AID) para o conjunto dos PED entre 1970 e 2004 (em milhares de milhões de dólares)

A partir de 1984, o Banco Mundial decidiu diversificar a aplicação dos seus benefícios. Por outro lado, em relação ao aumento das reservas, utiliza-as em doses homeopáticas nalguns programas das Nações Unidas. Assim, em abril de 1984, o Banco Mundial fez um donativo de dois milhões de dólares ao Programa Alimentar Mundial, o que ficou registado na acta da reunião da direcção do Banco Mundial como sendo um gesto belo e audacioso («good and astute gesture») [4].

De seguida, a partir de 1985, o Banco Mundial aplicou uma parte dos seus lucros em fundos especiais (geralmente fundos fiduciários, trust funds em inglês) com objectivos limitados: foi o caso da contribuição do Banco no sentido de aliviar a dívida dos países pobres muito endividados, da ajuda aos países afectados pelo tsunami de dezembro de 2004, passando por donativos à Agência de Garantia Mútua de Investimentos, a quinta filial do Banco Mundial [5].

Em geral, a utilização dos fundos é criticada pelos países com rendimento médio, porque são eles que permitem que o Banco Mundial obtenha lucros. Esses países denunciam que os países ricos utilizam uma parte dos lucros conseguidos à sua custa para terem gestos de generosidade para com os países mais pobres. Eles prefeririam uma diminuição das taxas de juro aplicadas pelo Banco Mundial.

Note-se que o Banco é muito activo no mercado dos produtos derivados, que alimentam a especulação internacional. Em 2004, o Banco sofreu uma perda de 4 mil milhões de dólares devido a operações com produtos derivados cambiais. Apesar de a sua actividade clássica ter gerado benefícios comparáveis aos lucros dos anos anteriores, isso afectou pontualmente o seu rendimento líquido [6]. Mas esta é uma actividade paralela do Banco Mundial, certamente muito discutível, mas que nos afasta do nosso assunto...




Notas

[1Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half Century, vol. 1: History, p. 177.

[2Daqui para a frente, a expressão ‘rendimento’ será utilizada sempre que necessário em substituição da expressão ‘resultados operacionais líquidos’.

[3Os países com rendimento médio são aqueles cujo rendimento nacional bruto per capita, em 2003, se situa entre 766 e 9.385 dólares, pedindo emprestado ao Banco a uma taxa próxima da taxa de mercado.

[4Actas do Managing Committee meeting, Abril 9, 1984, citado por Kapur, Devesh, Lewis, John P., Webb, Richard. 1997. The World Bank, Its First Half CenturyVolume 1: History, p. 341.

[5Lista completa desses fundos: Fundo fiduciário para o meio ambiente, Iniciativa Especial para a África Subsaariana, Fundo Fiduciário de Assistência Técnica para a União Soviética, Fundo Fiduciário para Gaza e Cisjordânia, o Fundo Especial para Timor Leste, Assistência Urgente ao Ruanda, Iniciativa de Alívio da Dívida dos Países Beneficiários da AID, Fundo Fiduciário para a Bósnia-Herzegovina, Fundo Fiduciário para a Iniciativa PPTE, Construção de Competências em África, Fundo Fiduciário para o Kosovo, Fundo Fiduciário para a República Federal da Jugoslávia, Agência de Garantia de Investimentos Multilaterais, Fundo Fiduciário para os Países de Baixo Rendimento em Situação de Crise, Fundo Fiduciário para a Libéria, Fundo Fiduciário Múltiplo de Doadores para o Achém e Norte da Sumatra, Fundo Fiduciário para a Reabilitação da Índia após o Tsunami.

[6Ver World Bank, Annual Report 2005, Washington, D. C., vol. 2, p. 33 e s.

Eric Toussaint 

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.

É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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