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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 23 de junho de 2023

PARTE XX – A MAIS IMPORTANTE MEDIDA PREVENTIVA CONTRA A CORRUPÇÃO: ELIMINAR O CLIENTELISMO E O FISIOLOGISMO NOS PROCESSOS ELEITORAIS

Sexta, 23 de junho de 2023

Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 23 de junho de 2023

CORRUPÇÃO, PREVENÇÃO E DESIGUALDADE
PARTE XX – A MAIS IMPORTANTE MEDIDA PREVENTIVA CONTRA A CORRUPÇÃO: ELIMINAR O CLIENTELISMO E O FISIOLOGISMO NOS PROCESSOS ELEITORAIS

Nesta série de textos abordarei, de forma sucinta, vários temas relacionados com um dos mais relevantes problemas da realidade brasileira: a corrupção sistêmica. Não é o maior dos nossos problemas (a extrema desigualdade socioeconômica ocupa esse posto). Também não é momentâneo ou transitório (está presente em todos os governos, sem exceção, desde que Cabral chegou por aqui). Não está circunscrito a um partido ou grupamento político (manifesta-se de forma ampla no espectro político-partidário). Não está presente somente no espaço público (a corrupção na seara privada é igualmente significativa). Não será extinta ou reduzida a níveis mínimos com cruzadas morais ou foco exclusivo na repressão (será preciso uma ação planejada, organizada e institucional em torno de uma série de medidas preventivas). Não obstante esses traços característicos, tenho uma forte convicção. A construção de uma sociedade democrática, justa, solidária e sustentável, centrada na dignidade da pessoa humana em suas múltiplas facetas e manifestações, exige um combate firme, consistente e eficiente a essa relevantíssima mazela do perverso cenário tupiniquim.

Na Parte IV dos escritos desta série (“O candidato corrupto”) foram destacadas as peripécias de certos candidatos afeitos a toda sorte de práticas nocivas no cenário eleitoral. São procedimentos correntes, largamente disseminados de norte a sul do País, não obstante serem razoavelmente desconhecidos do que se chama de opinião pública, entendida como espaço de debate político formado pela grande imprensa, entidades da sociedade civil e pessoas físicas mais ativas.

Foi dito, e agora é repetido: “quem compra o voto do eleitor, vende o voto como parlamentar”. Foram dados dois exemplos emblemáticos de “compras” de votos por candidatos. O primeiro consiste na contratação interesseira de cabos eleitorais. O segundo, envolve a compra de lotes de votos controlados por certas lideranças comunitárias, religiosas e afins.

Faltou explicitar, em linhas gerais, como o voto e o poder do parlamentar corrupto é “vendido” no balcão de negócios (ou negociatas). Infelizmente, são práticas ou procedimentos frequentes no submundo mais sujo da ação política nos âmbitos federal, estadual, distrital e municipal.

Sendo mais claro, direto e específico, as maiorias parlamentares clientelistas e fisiológicas rimam, visceralmente, com a indicação para cargos comissionados e a liberação de recursos orçamentários para a realização das mais “tenebrosas transações”, como disse Chico Buarque. Não devem ser esquecidas algumas “mercadorias” muito valorizadas nos balcões de negociatas parlamentares, como: a) venda de convites/convocações (ou vetos dessas providências) em audiências públicas e comissões de inquérito; b) venda de emendas em projetos para garantir vantagens de todas as ordens, especialmente benefícios tributários e regulatórios; c) deficiências total ou parcial na execução de projetos vinculados a emendas parlamentares, especialmente as impositivas e d) tráfico de influência com a utilização das posições de poder para obtenção indevida de certas decisões governamentais.

Essas negociatas não são ocorrências exclusivamente pontuais ou pessoais. A história recente do País mostra a montagem de esquemas escusos envolvendo dezenas e até centenas de parlamentares. Vários deles foram institucionalizados em instrumentos normativos diversos. Aponto três exemplos emblemáticos a partir da ótica do Supremo Tribunal Federal.

Afirmou a Presidente do STF, Ministra Rosa Weber, como relatora da ADPF n. 854: “A captação do orçamento público federal por lobbies de interesses privados tornou-se viável, segundo o Relatório Final da CPMI [do Esquema PC Farias], diante de um ecossistema orçamentário profícuo a fraudes, formado pelas interações entre a CMO, órgãos do Executivo e grupos políticos, corporativos e empresariais. (…) Consta do Relatório Final da CPMI (p. 335) que os poderes do Relator-Geral eram tão desmedidos que, depois de aprovado seu Relatório Final pela CMO, ainda assim podia reajustá-lo, sem devolver à Comissão, e, mesmo após a votação no Plenário do Congresso, autorizava-se, por delegação do colegiado, a modificação da redação do projeto aprovado antes do envio do autógrafo! Detectados inclusive casos de emendas orçamentárias não aprovadas pelo Congresso inseridas nos sistemas informáticos de acompanhamento e execução orçamentária após a publicação da lei orçamentária no Diário Oficial da União”.

Consta na ementa da Ação Penal n. 447/STF, decorrente das investigações do esquema chamado de “mensalão”: “CORRUPÇÃO ATIVA E CORRUPÇÃO PASSIVA. ESQUEMA DE PAGAMENTO DE VANTAGEM INDEVIDA A PARLAMENTARES PARA FORMAÇÃO DE “BASE ALIADA” AO GOVERNO FEDERAL NA CÂMARA DOS DEPUTADOS. COMPROVAÇÃO. RECIBOS INFORMAIS. DESTINAÇÃO DOS RECURSOS RECEBIDOS. IRRELEVÂNCIA. AÇÃO PENAL JULGADA PROCEDENTE, SALVO EM RELAÇÃO A DOIS ACUSADOS. CONDENAÇÃO DOS DEMAIS. 1. Conjunto probatório harmonioso que, evidenciando a sincronia das ações de corruptos e corruptores no mesmo sentido da prática criminosa comum, conduz à comprovação do amplo esquema de distribuição de dinheiro a parlamentares, os quais, em troca, ofereceram seu apoio e o de seus correligionários aos projetos de interesse do Governo Federal na Câmara dos Deputados. 2. A alegação de que os milionários recursos distribuídos a parlamentares teriam relação com dívidas de campanha é inócua, pois a eventual destinação dada ao dinheiro não tem relevância para a caracterização da conduta típica nos crimes de corrupção passiva e ativa. Os parlamentares receberam o dinheiro em razão da função, em esquema que viabilizou o pagamento e o recebimento de vantagem indevida, tendo em vista a prática de atos de ofício”.

Estes são trechos da ementa da ADPF n. 854/STF: “Chama-se de ‘orçamento secreto’ o esquema de barganha política por meio do qual o Executivo favorece os integrantes de sua base parlamentar mediante a liberação de emendas orçamentárias em troca de apoio legislativo no Congresso Nacional, valendo-se do instrumento das emendas do relator para ocultar a identidade dos parlamentares envolvidos e a quantia (cota ou quinhão) que lhe cabe na partilha informal do orçamento./Também o destino final dos recursos alocados sob a rubrica RP 9 (emendas do relator) acha-se recoberto por um manto de névoas. Cuida-se de categoria orçamentária para a qual se destinam elevadas quantias (mais de R$ 53 bilhões entre 2020 e 2022) vinculadas a finalidades genéricas, vagas e ambíguas, opondo-se frontalmente a qualquer tentativa de conformação do processo orçamentário às diretrizes constitucionais do planejamento, da transparência e da responsabilidade fiscal”.

Parece fora de qualquer dúvida razoável a constatação acerca da construção de uma espécie de “parlamentarismo torto” no Brasil. O “presidencialismo de coalização”, expressão cunhada por Sérgio Abranches, cede espaço para algo como um “parlamentarismo de coação” (ou chantagem, mesmo). A crescente força das lideranças parlamentares mais afeitas ao toma-lá-dá-cá controla as pautas em debate e deliberação, impõe agendas ao Executivo, define importantes questões de governo e, ainda, contabiliza cargos e verbas orçamentárias. Nesse contexto, é muito sintomática a última eleição para a presidência da Câmara dos Deputados no início de 2023. O Deputado Arthur Lira, um dos maiores líderes do Centrão no Congresso Nacional, conseguiu 464 votos, de 513 possíveis. A quase totalidade dos parlamentares programaticamente vinculados ao novo governo Lula sucumbiu diante da força político-parlamentar do reeleito para o comando da Câmara.

Portanto, é relativamente fácil perceber a importância estratégica do saneamento da representação política como medida preventiva (talvez, a mais importante das ações preventivas). Enquanto o eleitor escolher majoritariamente parlamentares que falam as línguas do clientelismo e do fisiologismo, o exercício da ação política, na sua maior parte, em especial nas relações entre os Executivos e os Legislativos, alimentarão em larga escala os caminhos da corrupção e malversações de toda ordem.

Textos anteriores da série:

PARTE I – O SENTIDO COLOQUIAL DE CORRUPÇÃO
PARTE II – A CULTURA DE LEVAR VANTAGEM
PARTE III – O SERVIDOR CORRUPTO SOZINHO
PARTE IV – O CANDIDATO CORRUPTO
PARTE V – O MITO DA FALTA DE PUNIÇÕES
PARTE VI – O SERVIDOR QUE RECUSA A CORRUPÇÃO
PARTE VII - QUADRILHAS ORGANIZADAS POLITICAMENTE
PARTE VIII - A CORRUPÇÃO ESTRUTURAL OU SISTÊMICA
PARTE IX – CORRUPÇÃO NO SETOR PRIVADO
PARTE X - A PERCEPÇÃO DA CORRUPÇÃO COMO O PRINCIPAL PROBLEMA DO BRASIL
PARTE XI – O TAMANHO DA CORRUPÇÃO NO BRASIL
PARTE XII - COMPARANDO A CORRUPÇÃO COM ALGUMAS DAS MAIS IMPORTANTES MANIFESTAÇÕES SOCIOECONÔMICAS NO BRASIL
PARTE XIII – O PRINCIPAL PROBLEMA DO BRASIL: A DESIGUALDADE SOCIOECONÔMICA. NÃO É A CORRUPÇÃO
PARTE XIV - COMO A CORRUPÇÃO ESCONDE A DESIGUALDADE E O DELETÉRIO PAPEL DA GRANDE IMPRENSA
PARTE XV - OS MECANISMOS DE COMBATE À CORRUPÇÃO
PARTE XVI - OS PRINCIPAIS PLANOS NACIONAIS DE COMBATE À CORRUPÇÃO
PARTE XVII – A INDEVIDA PREFERÊNCIA PELAS AÇÕES REPRESSIVAS NO COMBATE À CORRUPÇÃO
PARTE XVIII – A INEFICIÊNCIA DO COMBATE À CORRUPÇÃO COM FOCO MAJORITÁRIO NA REPRESSÃO
PARTE XIX - FOCO NA PREVENÇÃO: O CAMINHO MAIS EFICIENTE
PARA COMBATER A CORRUPÇÃO

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