Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Curas malditas

Sexta, 22 de novembro de 2013
Por Ivan de Carvalho

Hoje não vou escrever sobre política. A palhaçada que está sendo feita para transformar em presos políticos os políticos presos no contexto do escândalo do Mensalão e, ainda mais, o absurdo de tentar manter na Câmara dos Deputados, contra a determinação do STF, os condenados presos, sem direitos políticos, fazem a gente ficar quase sem ter o que dizer. A Câmara dos Deputados – sob influências corporativas e governistas em geral – intenta um golpe institucional com o STF como alvo direto e imediato e como alvo amplo e mediato a nação. É o que se pode dizer e já que o fizemos, vamos mudar de assunto, escrever de coisas sérias.

Conheço uma velhinha, pobre, humilde, sofrida, quase santa. Dona Lúcia. Quando ainda não era velhinha, teve Doença de Chagas. Exatamente. Ela teve – não tem mais – a incurável Doença de Chagas, provocada por um protozoário, o trypanosama cruzi, levado às pessoas pelo inseto conhecido como barbeiro, chamado nos antigos livros de escola primária do sertão nordestino de “barbeiro ou chupão”.
Uma doença tipicamente tropical identificada pelo cientista brasileiro Carlos Chagas. O inseto transmissor costuma ocultar-se em pequenos lugares escuros, a exemplo dos buracos de uma casa com paredes de taipa, sem reboco. A contribuição do programa Minha Casa, Minha Vida para nos libertar dessa doença ainda nada representa, na minha avaliação. E como é uma doença que não afeta o primeiro mundo, os laboratórios farmacêuticos não investiram em pesquisa (os governos do Brasil, como outros países afetados, fingiram que não era com eles), de modo que “não existe cura”.
No entanto, a agora velhinha, já com o efeito básico da doença em curso (ela faz inchar progressivamente o coração) ouviu ruídos da sabedoria popular, foi a Feira de Santana, visitou um cidadão que fazia uma “garrafada” para curar Doença de Chagas. Tomou a garrafada conforme as prescrições e até hoje, de quando em vez, faz um exame que mostra que ainda carrega a doença no sangue. Mas, conforme constatado, ela não causa mais dano algum a dona Lúcia nem ao seu coração. O homem que fazia a garrafada já morreu, mas não de doença de Chagas. E seu filho tem uma farmácia em Feira de Santana. Dona Lúcia não soube me dizer se ele faz a garrafada que o pai fazia – dona Lúcia não precisa mais dela.
Para não sair desses assuntos de doenças e curas, volto a um assunto de que já tratei antes neste espaço. A auto-hemoterapia. Consiste em retirar sangue – geralmente 10 ml – de uma veia e aplicá-lo imediatamente em um músculo adequado. Para a quantidade de sangue citada, seria o músculo glúteo. Sangue no músculo é reconhecido como “corpo estranho” e ouriça o sistema imunitário.
Esse tratamento é antigo e quando não existiam os antibióticos era um santo remédio contra infecções. Hoje pode servir na profilaxia das infecções hospitalares, reduzindo sua incidência a níveis talvez insignificantes (a bactéria de pega, seu sistema imunitário pega ela sem dar-lhe tempo a multiplicar-se) e para atuar em combinação com os antibióticos no combate a infecções instaladas. Um médico clínico do Rio de Janeiro, Luiz Moura, praticante da auto-hemoterapia, inclusive nele mesmo, cuidou de divulgá-la na Internet. A Secretaria de Saúde de Olinda, vendo o depoimento do médico em um DVD no Youtube, pegou o pião na unha: informou-se mais e criou um centro de auto-hemoterapia, que teve intensa demanda e êxito. Mas o mundo estava caindo sobre a antiga descoberta da medicina, hoje muito usada...na veterinária. Sorte dos bichos. A Anvisa (ah, como é desconfiável a Anvisa), emitiu uma “nota técnica” em 2007, dando conta de que não há “comprovação científica” da eficácia da auto-hemoterapia. Mas o governo do qual faz parte esqueceu-se de promover pesquisas que demonstrassem ou descartassem tal eficácia, empiricamente já provada.
O Conselho Federal de Medicina e o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro abriram processos contra o Dr. Luís Moura. O Cremerj absolveu o médico (ele tinha provas materiais e testemunhais de muitas curas), mas o proibiu de fazer proselitismo, sob pena de ter cassado o direito de exercer a profissão. O CFM não julgou o caso, alegando-o prejudicado ante a absolvição fluminense (acho que o julgamento federal ia fazer muito barulho, tornar a auto-hemoterapia mais conhecida e debatida).

Finalmente, atendendo a interesses corporativos e à pressão de poderosos e óbvios lobbies, os conselhos federais de Medicina, Farmácia e Enfermagem proibiram, em 2011, seus integrantes de prescrever ou aplicar a auto-hemoterapia. Joaquim Barbosa, presidente do STF, que, afirma-se, se beneficiou dela na Alemanha, onde é um tratamento normal, talvez, se trocar o STF pela política, possa levantar essa bandeira.
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Este artigo foi publicado originariamente na Tribuna da Bahia desta sexta.

Ivan de Carvalho é jornalista baiano.