Do MPD — Movimento do Ministério Público Democrático
Não sei se é impressão equivocada deste
colunista ou se, de fato, há uma insuficiente preocupação e análise do
Ministério Público e Poder Judiciário a respeito dos comunicados de prisão em
flagrante e seus requisitos formais e materiais.
Pularei aqui a etapa vigente alguns poucos
anos atrás, na qual o flagrante ensejava, tanto do Judiciário quanto do
Ministério Público, de regra, um carimbo ou uma anotação irresponsável mais ou
menos lançada assim: “ciente, aguarda-se inquérito policial”. Por força de lei,
o que é sempre necessário para os sempre numerosos e obcecados positivistas de
plantão, tentou-se imprimir maior efetividade no exame do auto, o que
infelizmente, pelo menos de modo geral, ainda não acontece. Os vícios de
procedimentos e comportamentais no tocante ao tema são muitos. Trata-se a
seguir de alguns.
Começa-se pela falta de esclarecimento ou
padronização da forma de comunicado do Ministério Público. É certo que a
comunicação deve ser autônoma da Polícia ao Ministério Público, até mesmo para
permitir que o Ministério Público, se preciso, dirija-se ao Juízo de plantão
para cobrar o andamento e a necessidade de encaminhamento do auto de prisão em
flagrante para manifestação. Há todo um sentido nesse comunicado que, aliás,
consta expresso na dicção do artigo 306 do CPP. A questão é: como deve se dar
esse comunicado? A lei não o definiu. Certo. Isso, porém, não é motivo para que
o aviso não ocorra.
Na falta de um sistema específico
informatizado entre a Polícia e Ministério Público, há de se entender que a
informação deve ser repassada via correspondência eletrônica (email), seguido
de aviso por outro meio que, comprovadamente, permita o aviso e conhecimento
imediato para exame. Assim, já que não houve previsão legal específica sobre o
tema, por que raios o Conselho Nacional do Ministério Público ou as
Corregedorias-Gerais do Ministério Público, de preferência em ato conjunto com
as Corregedorias da Polícia, não definem a questão? Até quando
experimentar-se-á essa verdadeira desintegração institucional entre o titular
da ação penal e a polícia investigativa? Não dá para entender. Por conta disso
que, muitas vezes, o que acontece é que o Ministério Público toma conhecimento
quando da abertura de vistas de parte da autoridade judicial.
Porém, a situação pode ser ainda pior do que
isso. Isso ocorre quando, mesmo à luz do princípio acusatório (verdadeiro “sol”
a iluminar um processo penal pretensamente democrático) ou mesmo diante da
exigência de que ao Ministério Público cabe exercer o controle externo da
atividade policial (artigo 129, VII, da Constituição), deixa o juiz,
inexplicável e ilogicamente, de resguardar a possibilidade de manifestação
prévia do Ministério Público. Qual o sentido e motivo disso? Só porque
esqueceu-se a lei de dizer o óbvio, que é preciso ouvir o MP?
Isso evidentemente não é motivo, pelo menos
para quem tiver consciente das funções do Ministério Público no processo penal,
mais do que isso, do limite imposto ao exame do próprio Judiciário no tocante a
questão. Deixou a lei de dizer o prazo para manifestação ministerial? Isso não é
argumento para que não se estabeleça a vista, basta que o juiz estabeleça um
prazo em horas de modo a resguardar a validade do plantão e o sentido do
próprio comunicado. Ademais, sabendo que o Ministério Público falará em algum
momento e isso terá que ser examinado, prefere o Judiciário falar duas vezes?
Para além das questões relativas ao comunicado
do próprio flagrante, o mais grave é a falta de cuidado tanto do Ministério
Público como do Poder Judiciário quanto ao exame dos requisitos da referida
prisão.
Será possível compreender que uma prisão
administrativa possa ser feita sem motivação ou deliberação fundamentada da
autoridade policial? Quantos flagrantes são homologados sem que a autoridade
policial tenha feito uma deliberação válida e fundamentada para o caso
concreto? Se assim não precisaria ocorrer, qual o sentido do flagrante ser
lavrado por um Delegado de Polícia? Se um Delegado é obrigado a indiciar um
suspeito "por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato,
que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”, conforme o
artigo 2o, parágrafo sexto, da Lei 12.830/13, qual o motivo para ser diferente
quando da prisão em flagrante? Afinal, se for para transcrever o que disseram o
condutor e testemunhas para lançar e jogar um tipo penal ao final sem nenhum
tipo de raciocínio, para que essa formalidade toda?
Ora, prisão em flagrante é ato administrativo
que cerceia direito de liberdade e, como tal, evidente que há de ser
fundamentado, sob pena de nulidade capaz de ensejar o reconhecimento da
ilegalidade da custódia seguida do imediato relaxamento, na forma do artigo
310, I, do CPP. Mas para alguns assim só será quando a lei dizer. Interpretar a
lei à luz da Constituição, definitivamente, não faz parte de nossa cultura
jurídica[1].
Embora a legislação processual penal já tenha
evoluído para que o tema seja tratado de modo um pouco mais responsável , o que
se deu com o advento da Lei 12.403/11, é preciso avançar ainda mais. Pior do
que isso é saber que o projeto do novo código de processo penal não trata o
assunto de modo suficiente.
A permanecer a situação como está, do mesmo
modo que a audiência de custódia surgiu para tentar mitigar os abusos de
prisões em flagrante convertidas de ofício ou a pedido em preventivas, resultando
numa taxa de encarceramento preventiva absurda, não será surpresa perceber a
necessidade de se discutir a conveniência de uma audiência de flagrante para
forçar a análise do ato dentro de um contexto minimamente preocupado com o
sentido do comunicado da prisão, que está distante de ser mera formalidade.
O flagrante trata-se, quiçá, da modalidade de
prisão mais importante e dependente de uma adequada análise do Ministério
Público e do Judiciário para a obtenção de um processo minimamente democrático.
Ignorar a sua importância, inclusive na sua excepcionalidade que é manutenção
de custódia, aliás, pode ser um bom termômetro do quanto ainda estamos da
temperatura de se compreender o processo penal não como instrumento de defesa
social, pressão midiática ou vingança, mas pela Constituição e as garantias
dela decorrentes.
Márcio Berclaz é Promotor de Justiça no Estado do Paraná.
Doutorando em Direito das Relações Sociais pela UFPR (2013/2017), Mestre em
Direito do Estado também pela UFPR (2011/2013). Integrante do Grupo Nacional de
Membros do Ministério Público (www.gnmp.com.br) e do Movimento do Ministério
Público Democrático (www.mpd.org.br). Membro do Núcleo de Estudos Filosóficos
(NEFIL) da UFPR. Autor dos livros “Ministério Público em Ação (4a edição –
Editora Jusvpodium, 2014) e “A dimensão político-jurídica dos conselhos sociais
no Brasil: uma leitura a partir da Política da Libertação e do Pluralismo
Jurídico (Editora Lumen Juris, 2013)
[1] A propósito, sobre o tema já se escreveu juntamente com Alexandre Morais da Rosa: http://www.conjur.com.br/2014-jun-04/prisoes-flagrante-fundamentacao-anuladas.
[1] A propósito, sobre o tema já se escreveu juntamente com Alexandre Morais da Rosa: http://www.conjur.com.br/2014-jun-04/prisoes-flagrante-fundamentacao-anuladas.