"Não reclamem quando os rolezinhos e arrastões virarem algo parecido com as
riots que literalmente botaram fogo em Londres. Ninguém apanha calado a vida
inteira"
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Da Tribuna da Imprensa / Jornal do Brasil
Walmyr Junior
Walmyr Junior
Gostaria de saber quem é que acha legítimo invadir um
ônibus, expulsar os passageiros, espancar alguns deles caracterizando-os como
bandidos pelo simples fato de serem pretos, pobre e moradores de favelas da Zona
Norte do Rio? Essa pergunta, que voltou a me incomodar neste fim de semana, e
quem vem latejando há muito tempo na cabeça, é fruto da tentativa de superação
do medo e da imposição de um comportamento que me oprimiu desde a infância.
Sentimento que me faz pensar, compreender a lógica da ação e da reação nos
conflitos territoriais.
Questiono-me quando vejo centenas e milhares de jovens como
eu tendo seus direitos violados, quando não exterminados. Jovens, negros e
favelados que representam os 77% dos jovens assassinados neste país, que são a
maior população carcerária, que compõem em grande maioria as fileiras do
exército de mão de obras esquecidas pelo Estado.
Sabemos que o racismo está presente no Brasil desde a sua
colonização, porém ser negro, pobre e favelado nestas terras se tornou mais
difícil do que nunca. Somos diariamente criminalizados por nossa cor e classe
social, pagamos sempre com nossa liberdade, quando não com nossas próprias
vidas.
Para gerar mais contestação e aumentar o sentimento de revolta
vimos cenas de reprodução do ódio e da violência passando nos telejornais e
estampadas nos periódicos impressos e tabloides no domingo de sol e de praia
neste último 20 de setembro.
A opção pela estigmatização dos já criminalizados jovens da
favela reafirma a posição da classe média, branca, heteronormativa da Zona Sul
do Rio de Janeiro. Em sua grande maioria, moradores dos bairros de Ipanema,
Leblon, Copacabana, e tantos outros deste território, opta pelo fim da ligação
entre as zonas Sul e Norte, revelando o já existente apartheid carioca.
Nos bons tempos em que meus pais viveram, podia-se
aproveitar a praia de Ramos e a praia da Moreninha. Tempos esses, com a fartura
de peixes na Baía de Guanabara, fazia do Complexo da Maré um dos maiores polos de
diversão e lazer da Zona Norte. Hoje, com a Baía de Guanabara poluída, tentam
nos isolar e iludir com piscinões artificiais e parques com chuveiros e
recursos hídricos.
Tudo isso para dar ‘alternativas’ de lazer para a Zona Norte
e impedir que esse cidadão vá à Zona Sul ter acesso a lazer, cultura e
comodidades oferecidas somente ao povo na Zona Sul. Atreladas a esse projeto de
isolamento social estão a redução e extinção das linhas de ônibus que ligam o
subúrbio à praia, revelando o interesse das políticas de transporte da Cidade.
Enfim, como o militante político Bernardo Cotrim
recentemente escreveu em suas redes sociais, “a metrópole dos megaeventos segue
a marcha de confinamento dos seus pobres, a classe média racista, ignorante e
egoísta clama por mais chibata (redução da maioridade penal, linchamentos,
polícia que esfola antes de prender) e o ciclo de exclusão se reforça.
Não reclamem quando os rolezinhos e arrastões virarem algo parecido com as
riots que literalmente botaram fogo em Londres. Ninguém apanha calado a vida
inteira".
* Walmyr Júnior é morador de Marcílio Dias, no conjunto de
favelas da Maré, é professor e representante do Coletivo Enegrecer como
Conselheiro Nacional de Juventude (Conjuve). Integra a Pastoral Universitária
da PUC-Rio. Representou a sociedade civil no encontro com o Papa Francisco no
Theatro Municipal, durante a JMJ.
Fonte: Jornal do Brasil
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