Do MPD
Há um projeto de lei na Câmara dos Deputados
criminalizando o professor que manifestar convicção política nas aulas (PL
1411/15), chamando isto de "assédio ideológico". E um outro (PL
867/15) proibindo-o de abordar conteúdos que possam estar em conflito com as
convicções religiosas e morais dos pais dos estudantes, nisto incluído, no
limite, falar da teoria da evolução das espécies e de sexualidade. Voltamos à
Idade Média...
O jeito então será falar de política fora da sala de aula:
no pátio, nos corredores, na lanchonete, na rua.
Porque, enquanto professores, somos obrigados a promover a
educação dos alunos, que é um direito fundamental consagrado na Convenção
Americana de Direitos Humanos. E a educação é necessariamente política, como
dizia Paulo Freire.
Não há mesmo como não ser, eis que, por definição, a
educação há de ser emancipadora: e não é possível emancipar sem apontar ao
aluno as relações de poder e a ação humana na "polis", pois este é o
mundo do qual ele faz parte.
Assim, não é possível a um Estado democrático proibir o
trato da política pelos educadores. Claro que, quanto a aspectos religiosos
específicos, deve ser respeitada a convicção do educando. Mas respeitar não
significa suprimir a abordagem do assunto, sob risco de se implantar uma
cultura educacional capenga, em que alguns caminhos da ciência estejam
interditados. Se o professor não abordar poder, dominação, sexualidade,
evolução das espécies e outros assuntos tão políticos quanto estes, estará
descumprindo aquela convenção internacional, assinada pelo Brasil. Aí sim, será
um infrator.
A escola deve, ou deveria, ser um espaço para o
desenvolvimento da ciência.
Mas o que vemos, no mais das vezes, é a sua utilização
como reprodutora dos valores dominantes no modelo vigente. Colegas professores
de escola pública se queixam de que muitos alunos replicam discursos
excludentes, manifestando um ódio que vai dos nordestinos ao bolsa família. Em
suma, o educando é incentivado a prezar a propriedade privada, a identificar
sucesso com aquisição do supérfluo e a considerar o mercado como a principal
referência para as opções políticas a serem adotadas. Isso é doutrinação pura.
Deveria ter um projeto de lei proibindo.
Fiz essas observações a um amigo e ouvi dele que, afinal,
a propriedade privada também é um direito fundamental, está na Constituição.
Tudo bem. Só que a mesma Constituição determina que a propriedade deve ter uma
função social: é a contrapartida imposta ao proprietário - e isto é bem pouco
cobrado dele.
Mas qualquer controle sobre os limites do direito à
propriedade se perde, por exemplo, na questão do latifúndio, naqueles milhares
de alqueires de terra de um só dono, geralmente mal aproveitados e onde fica
fácil a exploração mais desavergonhada do trabalho humano, por vezes um
trabalho escravo, como volta e meia acontece.
Vista a questão mais do alto, o latifúndio foi a base da
exploração do Brasil-colônia e deixou marcas profundas na nossa cultura: o todo
poderoso senhor do engenho, o senhor de escravos, é hoje o dono do banco, da
fazenda, da fábrica, tratado de "doutor" e exaltado pelos que
explora, com o amparo da mídia, das novelas, da escola. O idioma português
falado no Brasil consagra ao interlocutor, se necessária alguma cerimônia, o
tratamento de "senhor" (ao invés do "vosmecê" português, do
"lei" italiano, do "usted" espanhol, do "you"
inglês etc.).
Ou seja, equiparamos o interlocutor ao proprietário de
escravos e confundimos respeito com subserviência.
Tudo isto o latifúndio, expressão máxima da propriedade
privada, nos legou - e nos impõe até hoje.
Por isso é que, quando me colocam sobre a mesa, como prato
principal, um direito individual como a propriedade e ao mesmo tempo querem
higienizar o direito social à educação, limpando-o de seu conteúdo político, eu
só posso ficar pensando que a idéia geral é toda muito coerente: a gente vai
imbecilizando o estudante, que assim fica mais fácil formá-lo para ser um trabalhador
dócil, que vai servir o proprietário sem reclamar e cujo maior sonho será o de
ser, um dia, proprietário também. Se um daqueles projetos for aprovado, esta,
por exemplo, é uma reflexão que estará proibida em sala de aula. A benefício de
quem?
PLÍNIO GENTIL, Doutor em Direito e em Educação.
Professor universitário. Procurador de Justiça no Estado de S. Paulo. Membro do
Movimento do Ministério Público Democrático.