Segunda, 25 de janeiro de 2016
Do MPF
MPF
quer que sejam adotadas medidas de reparação à etnia e sua cultura
O Ministério Público Federal em Minas Gerais (MPF/MG)
ajuizou ação civil pública, com pedido de antecipação de tutela, para que o Estado
brasileiro reconheça as graves violações de direito cometidas contra o povo
indígena Krenak durante a ditadura militar, adotando medidas de reparação em
favor de sua cultura.
Na ação, são narrados três episódios principais: a criação
da Guarda Rural Indígena (GRIN), a instalação de um presídio chamado de
“Reformatório Krenak”, e o deslocamento forçado para a fazenda Guarani, no
município de Carmésia/MG, que também funcionou como centro de detenção
arbitrária de indígenas.
São réus na ação a União, o Estado de Minas Gerais, a
Fundação Nacional do Índio (Funai), a Fundação Rural Mineira (Ruralminas) e o
oficial militar reformado da Polícia Militar de Minas Gerais, Manoel dos Santos
Pinheiro, que, na época dos fatos, detinha a patente de capitão da Polícia
Militar de Minas Gerais (PMMG).
O MPF relata em detalhes o ambiente de exceção, trabalhos
forçados, tortura, remoção compulsória e intensa desagregação social impostos
ao povo Krenak quando da implantação do reformatório nas terras da etnia,
situadas à margem esquerda do rio Doce, no município de Resplendor, região
leste de Minas Gerais.
Para o procurador regional dos Direitos do Cidadão em
Minas Gerais, Edmundo Antonio Dias, que integra o Grupo de Trabalho Violações
dos Direitos dos Povos Indígenas e Regime Militar, da 6ª Câmara do MPF, "o
reformatório era um presídio sem previsão legal, destinado a confinar indígenas
em razão de condutas valoradas segundo critérios inteiramente subjetivos. Ali
funcionou uma verdadeira polícia de costumes. As condutas em geral sequer eram
previstas pela legislação penal e os índios não eram submetidos a julgamento.
Os índios não podiam viver sua própria cultura, praticar seus rituais, nem
mesmo conversar na língua materna. Além disso, o episódio do deslocamento forçado
dos Krenak para a Fazenda Guarani evidencia a intensificação, durante o regime
militar, do processo de desterritorialização desde sempre imposto aos povos
indígenas no país."
Em março, o MPF já havia apresentado à Comissão de Anistia
um requerimento de anistia política ao povo indígena Krenak, conforme
prevê o artigo 2º da Lei 10.559/2002, que ainda não foi apreciado.
Violações - Em 1969, foi criada a Guarda
Rural Indígena (GRIN), um grupamento composto por indígenas de várias etnias,
cujo comando, em Minas Gerais, foi delegado à Polícia Militar de Minas Gerais.
A solenidade de formatura da 1ª turma da GRIN ocorreu na
presença do então governador de Minas Gerais, Israel Pinheiro, do seu
secretário estadual de Educação, José Maria Alkmin – que fora vice-presidente
da República entre 1964 e 1967 - e de outras altas autoridades federais.
Durante o desfile, foi exibido um índio dependurado em um pau de arara.
A cena, que foi filmada, é a única registrada no Brasil
que mostra, em um evento oficial, um ato de tortura.
Para o Reformatório Krenak, foram enviados indígenas de
mais de 15 etnias, oriundos de ao menos 11 estados das cinco regiões do país.
No comando do Reformatório Krenak estava Manoel dos Santos
Pinheiro, que na época dos fatos tinha a patente de capitão e havia sido
nomeado, por meio da Portaria n° 110/68, do presidente da Funai, para chefiar a
Ajudância Minas-Bahia. Nesta condição, ele administrou o reformatório e a
ocupação militar das terras Krenak, sendo também o responsável pela
remoção compulsória, em 1972, dos indígenas para a fazenda Guarani.
No reformatório, os indígenas eram mantidos presos por
diversos motivos, como ingestão de bebidas alcoólicas, ou simplesmente por
terem saído da reserva sem autorização. No local, havia uma espécie de
solitária, que os índios denominavam de “cubículo”, onde eram mantidos dia e
noite como forma de punição.
Em seu depoimento prestado ao MPF, em maio de 2014, o
indígena Manelão Pankararu, que foi trazido de Pernambuco para ficar detido no
reformatório, conta que os índios eram levados para essa pequena cela onde eram
submetidos a tortura: “Era uma cadeia grande. Tinha muitas celas, e cada cela
tinha quatro camas. Era igual hospital. Havia também uma cela que era conhecida
como “cubículo”, que era onde eles pegavam os índios e metiam o cacete, eu
escutava os índios gritando. Era ali que o índio tomava couro (…) no cubículo
havia um pau de arara e também o “cachorro quente”, que era um aparelho que
ficava jogando água do teto o tempo inteiro e o índio ficava dois dias numa
cela molhada. Alguns índios iam para o pau de arara e para o“cachorro quente”
por qualquer motivo, sempre que fazia alguma coisa errada”, relatou o indígena.
O MPF, entre os meses de maio e agosto de 2014, esteve nas
terra indígenas dos Krenak e dos Maxakali e tomou depoimentos que confirmaram
que também crianças, mulheres e idosos eram vítimas dos atos de arbítrio, além
de serem obrigados a executar tarefas para os policiais, sendo castigados
quando não as realizassem.
Os indígenas ouvidos também relataram abusos de natureza
sexual cometidos contra as mulheres Krenak pelos policiais militares que faziam
a guarda do reformatório.
Exílio - Em 1972, o povo Krenak foi
retirado à força de suas terras e levado para a Fazenda Guarani, situada no
município de Carmésia, a 343 km de distância. O objetivo real do deslocamento
forçado foi o de liberar as terras dos Krenak para fazendeiros que, no
anterior, haviam perdido uma ação de reintegração de posse ajuizada para
garantir os direitos dos Krenak. "Apesar de a ação ter sido decidida
favoravelmente aos Krenak, foi acertada pelos réus a transferência dos
indígenas para a Fazenda Guarani, deixando seu território aberto para os
posseiros que haviam perdido a ação judicial", observa Edmundo Antonio
Dias.
Os Krenak referem-se ao episódio do exílio com profundo
sofrimento, devido à distância do rio Doce, que era o centro de sua vida
cultural e espiritual. Por oito anos, eles suportaram as péssimas condições de
vida na Fazenda Guarani, que funcionou como uma continuação do
Reformatório Krenak.
Somente em 1983, a Funai ajuizou uma ação ordinária de
nulidade dos títulos concedidos pelo Estado de Minas Gerais e pela Ruralminas
aos fazendeiros. Dez anos depois, em 1993, o STF julgou procedente a ação e
declarou a nulidade dos títulos de propriedade.
Danos psicológicos - Para comprovar a gravidade dos
impactos psicossociais resultantes da violência estatal sofrida pelos Krenak, o
MPF solicitou um parecer ao psicólogo Bruno Simões Gonçalves, especialista em
populações tradicionais. O relatório destaca que os atos de violência
perpetrados pelos réus contra os indígenas resultaram em intenso sofrimento
individual dos integrantes da etnia Krenak e à extrema traumatização
psicossocial coletiva da etnia.
Pedidos - Além do pedido público de
desculpas, que deverá ser feito pela União, Funai, Estado de Minas Gerais e
Ruralminas à etnia Krenak, o MPF pede o reconhecimento judicial da
responsabilidade pessoal do réu Manoel dos Santos Pinheiro como autor e
partícipe do cometimento das graves violações de direitos humanos contra o povo
indígena Krenak, bem como que seja reconhecida a existência de relação jurídica
entre o ex-capitão, hoje major reformado da PMMG, e a União Federal,
consistente no dever de reparar regressivamente o Tesouro Nacional pelas
importâncias que venham a ser despendidas com o pagamento de reparações às vítimas.
Para o MPF, o ex-capitão deve ser condenado não só a pagar
indenização por danos morais coletivos, como deve perder os proventos de
aposentadoria ou inatividade que esteja percebendo da União Federal ou do
Estado de Minas Gerais, bem como as patentes, honrarias e postos militares que
porventura possua, além das funções e cargos públicos, efetivos ou
comissionados, que esteja eventualmente exercendo na Administração Pública
direta ou indireta de qualquer ente federativo.
À União, à Funai, ao Estado de Minas Gerais e à Fundação
Rural Mineira, o MPF requer que promovam, com a participação dos Krenak – e
após realização de consulta livre e informada a este povo, nos termos da
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) –, a recuperação
ambiental de suas terras, esbulhadas e degradadas durante o período da ditadura
militar. Para tanto, os réus devem apresentar projeto para a recuperação, a ser
discutido com o povo Krenak.
Além disso, o MPF pede que os réus implementem várias
ações para resgatar e preservar a cultura e a língua Krenak e promovam a
tradução da Constituição Brasileira, da Convenção nº 169 da OIT e do texto
temático do relatório final da Comissão Nacional da Verdade sobre as graves
violações dos direitos humanos dos povos indígenas.
Os réus também devem entregar, ao povo Krenak, todos os
documentos governamentais, mantidos sob qualquer meio impresso, digital ou
audiovisual, produzidos no período da ditadura militar, referentes à etnia, ao
Reformatório Krenak e à transferência compulsória desse povo à Fazenda Guarani.
Como os Krenak ainda não estão com todas as suas terras
demarcadas, o MPF quer que a União e a Funai concluam o processo de
identificação e delimitação do território sagrado conhecido como Sete Salões,
adjacente ao atual território da etnia.
Arquivo Nacional - Como medida de preservação da
memória, a ação pede que a União sistematize e publique, no Arquivo Nacional,
toda a documentação relativa às violações dos direitos humanos dos povos
indígenas resultantes da instalação do Reformatório Krenak, da transferência
forçada para a Fazenda Guarani e do funcionamento da Guarda Rural Indígena.
O MPF pede também que os réus promovam, após consulta
prévia, livre e informada à etnia Pataxó – que se encontra assentada na terra
indígena atualmente denominada "Terra Indígena Fazenda Guarani" –, a
restauração da sede da Fazenda, implantando no local, em parceria com os
indígenas e eventualmente com terceiros interessados, um centro de memória
destinado a manter a lembrança das violações aos direitos dos povos indígenas
no país e no Estado de Minas Gerais, bem como a abrigar atividades culturais a
serem realizadas pelos povos indígenas, desde que o resultado da consulta
prévia seja favorável a essa medida.
Para ler a íntegra da ação e dos pedidos feitos, clique aqui.