Quinta, 28 de janeiro de 2016
Da Auditoria Cidadã da Dívida
Maria Lucia Fattorelli [i]
Introdução
Investigações sobre a natureza da dívida pública em distintos países
têm revelado a prática de mecanismos meramente financeiros que geram
dívida sem contrapartida alguma ao país e à sociedade. Dessa forma, o
processo de endividamento público deixa de ser um instrumento de aporte
de recursos ao Estado, e passa a ser um veículo de transferência de
recursos públicos para o setor financeiro privado. A isso denominamos
Sistema da Dívida.
É preciso denunciar os mecanismos que geram dívida pública e levam à
imposição de rigorosos planos de ajuste fiscal, provocando a paralisação
de setores vitais da economia, a corrosão da Democracia, a ofensa aos
Direitos Humanos, ao mesmo tempo em que os recursos são transferidos
para os bancos privados nacionais e internacionais.
Nos últimos cinco anos, essa política de austeridade na Grécia
provocou queda do PIB em 22%; redução do orçamento nacional em cerca de
EUR 40 bilhões; desemprego recorde que atinge mais de 60% dos jovens
homens e 72% das jovens mulheres; redução de salários, pensões e
aposentadorias; privatização acelerada do patrimônio público;
flexibilização de leis trabalhistas; redução de serviços públicos de
saúde, educação, creches, assistência social; incremento brutal da
emigração, já que cerca de 110 mil pessoas formadas deixaram o país;
aumento brutal da miséria e degradação social, com famílias vivendo do
lixo, e mais de 5.000 suicídios contabilizados na conta da verdadeira
crise humanitária instalada no país que é o berço da Democracia.
No presente artigo apresento alguns mecanismos que alimentam o
Sistema da Dívida na Grécia, identificados durante os trabalhos da
“Comissão da Verdade sobre a Dívida Pública” [ii] destinada a realizar auditoria da dívida.
Crises provocadas por bancos e interferência do FMI
Sacrifícios sociais e econômicos para servir ao pagamento de juros e
encargos da dívida pública têm sido uma regra em diversos países
latino-americanos há muitas décadas.
Desde os anos 80, logo após a crise produzida pelos bancos internacionais[iii],
enfrentamos a interferência do FMI no Brasil, na Argentina, no Equador e
em muitos outros países. A ingerência se dava por meio de Cartas de
Intenções que ditaram toda a política econômica a ser seguida, impondo
especialmente o ajuste fiscal, para que os recursos se destinassem ao
pagamento de encargos da chamada dívida pública. O resultado foi
desastroso para os países e povos, porém, montanhas de recursos
financeiros, patrimoniais e minerais têm sido continuamente destinados
ao pagamento de dívidas que não param de crescer.
Na presente década, assistimos a história se repetir no continente
europeu. Logo após a crise financeira provocada pelos bancos, o FMI
passou a interferir pesadamente na região, formando a Troika e impondo seu mesmo receituário de sempre.
Crises provocadas por bancos privados nacionais e internacionais têm
aberto o caminho para a interferência do FMI, que invariavelmente aplica
seu receituário que exige ajuste fiscal: corte de serviços sociais e
investimentos públicos, privatizações, aumento de tributos e
contrarreformas. Tudo para pagar dívidas geradas por processos
ilegítimos.
Na Europa, desde fevereiro de 2009, já se sabia que a decisão de
“salvar” bancos empurraria a União Europeia para uma crise, conforme
matéria publicada pelo jornal “The Telegraph”[iv]:
Apesar da evidência acerca das graves consequências que adviriam de
tal decisão, inúmeras medidas para salvar os bancos foram adotadas na
Europa, e contaram com a expertise[v] do FMI.
Dentre as medidas adotadas para beneficiar bancos cabe destacar os
diversos atos “fora de padrão” autorizados pelo Banco Central Europeu,
sob a justificativa de turbulência financeira, como o programa SMP[vi], considerado ilegal. Outro escândalo foi a criação da EFSF[vii] – sociedade anônima sediada em Luxemburgo, cujos sócios são 17 países europeus[viii].
O acordo de criação diz que a EFSF é uma companhia não financeira,
entretanto, seu objeto é emitir instrumentos financeiros, que são
transformados em “empréstimos”. Os países sócios se comprometeram com
bilionárias garantias à EFSF, inicialmente no montante de EUR 440
bilhões[ix], que logo em 2011 subiram para EUR 779.78 bilhões[x]. A criação da EFSF foi uma imposição do FMI[xi], que lhe forneceu uma contribuição de EUR 250 bilhões[xii]. Na prática, a EFSF vem sendo operada pela Agência de Gestão da Dívida alemã[xiii] que, em conjunto com o Banco Europeu de Investimento, presta apoio ao seu funcionamento.
Tais medidas de salvamento bancário estão diretamente relacionadas aos peculiares acordos impostos pela Troika à Grécia a partir de 2010. A análise dos mecanismos[xiv]
inseridos nos referidos acordos mostra que eles não significaram
benefício algum à Grécia, mas serviram aos interesses dos bancos
privados, em perfeita consonância com as diversas medidas de resgate
bancário.
Sistema da Dívida
O “Sistema da Dívida” corresponde à utilização do endividamento
público às avessas, ou seja, em vez de servir para aportar recursos ao
Estado, o processo de endividamento tem funcionado como um instrumento
que promove uma contínua e crescente subtração de recursos públicos, que
são direcionados principalmente ao setor financeiro privado.
Esse esquema funciona por meio de diversos mecanismos que geram
dívidas, na maioria das vezes, sem qualquer contrapartida real, seguidos
de outros mecanismos que promovem seu contínuo crescimento. Para
operar, tal sistema conta com um conjunto de engrenagens articuladas
compostas por privilégios legais, políticos, econômicos, em conjunto com
a grande mídia, além de determinante suporte dos organismos financeiros
internacionais para impor medidas que favoreçam sua atuação.
As experiências de auditoria já realizadas têm demonstrado que o “Sistema da Dívida” segue um modus operandi semelhante em diversos países.
Na Grécia, esse sistema tem funcionado a partir de 2010 de forma perversa, por meio dos acordos impostos pela Troika, atrelados ao conjunto de memorandos[xv] que impõem sucessivos planos de austeridade fiscal.
Nos últimos cinco anos, essa política de austeridade provocou queda
do PIB em 22%; redução do orçamento nacional em cerca de EUR 40
bilhões; desemprego recorde que atinge mais de 60% dos jovens homens e
72% das jovens mulheres; redução de salários, pensões e aposentadorias;
privatização acelerada do patrimônio público; flexibilização de leis
trabalhistas; redução de serviços públicos de saúde, educação, creches,
assistência social; incremento brutal da emigração, já que cerca de 110
mil pessoas formadas deixaram o país; aumento brutal da miséria e
degradação social, com famílias vivendo do lixo, e mais de 5.000
suicídios contabilizados na conta da verdadeira crise humanitária
instalada no país que é o berço da Democracia.
Em resumo, tais acordos e respectivos memorandos tiveram como
resultado graves violações dos direitos humanos e, em particular, dos
direitos sociais, das liberdades fundamentais e do próprio Estado de
Direito, como declarou, na ONU[xvi], a presidente do Parlamento Helênico, Zoe Konstantopoulou.
Tudo isso justificado pela necessidade de pagar uma dívida financeira
sobre a qual recaem diversos questionamentos históricos acerca de sua
legitimidade, e que a partir de 2010 foi reciclada por mecanismos
inseridos nos acordos impostos pela Troika.
Paradoxalmente, os memorandos que exigiram drásticos cortes em
serviços administrativos e sociais essenciais, determinaram que fossem
gastos bilhões de euros na criação de onerosas estruturas totalmente
privadas, mas que passariam a contar com expressivo suporte de recursos
públicos:
- Hellenic Financial Stability Fund (HFSF) [xvii] , fundo privado destinado a processar a capitalização de instituições financeiras privadas;
- Hellenic Republic Asset Development Fund (HRADF) [xviii], fundo privado destinado a acelerar o processo de privatização do patrimônio público.
Além desses fundos, a Greek Public Debt Management Agency[xix],
agência que gerencia a dívida interna, recebeu aportes financeiros e
teve sua estrutura aprimorada, pois passou a incorporar diversas novas
atribuições, como a emissão de títulos de curto prazo para garantir
liquidez a obrigações relacionadas aos custos do endividamento grego.
Resta evidente o papel desempenhado pelos memorandos: ao mesmo tempo
em que impõem imenso sacrifício social, promovem a utilização do Estado
para financiar estruturas que alimentam o Sistema da Dívida e transferem
recursos financeiros e patrimônio estatal para o setor financeiro
privado nacional e internacional.
Mecanismos do Sistema da Dívida na Grécia
Todos sabem, desde 2010, que os bancos é que foram salvos com por meio dos acordos impostos pela Troika,
e não a Grécia. A revelação dos mecanismos inseridos nesses acordos
permite mostrar como isso se deu. Isto é, demonstram como os recursos
dos empréstimos foram parar nos bancos, mediante utilização de
instrumentos complexos que visavam esconder o verdadeiro propósito
daqueles acordos atrelados aos memorandos. Não foi nada fácil descobrir
os mecanismos inseridos naqueles complicados acordos vigentes a partir
de 2010. Diante do honroso convite da presidente do Parlamento grego
para colaborar com a Comissão da Verdade sobre a Dívida, deixei minha
vida pra trás no Brasil e fui para Atenas, onde permaneci por sete
semanas, integralmente dedicadas à análise aprofundada desses acordos,
pois o primeiro passo de uma auditoria é a análise documental. O
trabalho foi focado no período recente, devido ao seu impacto desastroso
à economia e ao povo grego, e também devido ao curto tempo disponível
para a elaboração do relatório preliminar. Os acordos analisados,
celebrados em 2010 e 2012, são compostos, na realidade, por um vasto
conjunto de documentos que se intercomunicam de forma confusa; são
redigidos de forma truncada, em sequencia ilógica e faltam partes de
diversos parágrafos. O trabalho exigiu a identificação dos pedaços de um
quebra-cabeça, escondidos e misturados nos longos parágrafos das
centenas de páginas dos acordos. Aos poucos os pedaços foram se ligando e
as informações foram sendo classificadas e ordenadas, possibilitando a
revelação dos mecanismos descritos a seguir.
Mecanismos inseridos nos acordos de 2010, conhecidos como “Acordo Bilateral”
O acordo denominado “bilateral” foi feito em 2010, entre 14 países
europeus, o banco alemão KFW e a Grécia, e compreende, na prática, dois
acordos[xx].
O mecanismo inserido nesse acordo estava escondido em um anexo, onde
havia um terceiro acordo, que permitia que se tornasse parte do acordo
“bilateral” qualquer detentor de títulos da dívida grega, anteriormente
existente. Ao se tornar parte no acordo, tais detentores passaram a
denominar-se “committed lenders” e foram os que de fato se
beneficiaram dos empréstimos bilaterais. O mecanismo utilizou uma conta
aberta no Banco Central Europeu, destinada especialmente para processar
todos os pagamentos relacionados ao acordo. Na data em que se
concentravam vencimentos de diversos títulos de dívida grega anteriores,
a Comissão Europeia autorizava os países a desembolsar parte do
empréstimo. Essa data era referida nos acordos como “recalculation date”,
porque os vencimentos daqueles títulos anteriores não coincidiam
exatamente e eram feitos recálculos de acréscimos para a data efetiva da
liquidação. Os recursos desembolsados pelos países e pelo KFW nunca
chegaram à Grécia, pois eram depositados na conta especial do Banco
Central Europeu e, de lá, eram destinados aos detentores daqueles
títulos anteriores. O repasse dos recursos a esses detentores de
títulos anteriores está codificado nos acordos de forma sutil e ocorria
antes da denominada “balancing date”. Diversas publicações e
registros indicam que aqueles títulos anteriores compreendiam, em grande
parte, títulos extremamente desvalorizados, que chegaram a ser
negociados em mercado a 16.7% de seu valor de face e eram detidos
principalmente por bancos alemães e franceses. Cabe ressaltar também
que um volume de cerca de EUR 49 bilhões havia sido anteriormente
transferido para a dívida grega, conforme denúncias de falsificação de
estatísticas feitas por especialistas[xxi] gregos. Seus estudos mostravam que o montante de EUR 27,99 bilhões sobrecarregou as estatísticas de dívida pública em 2009[xxii],
por causa da elevação falsa em determinadas categorias (tais como DEKO,
obrigações hospitalares e SWAP Goldman Sachs). Estatísticas de anos
anteriores também haviam sido afetadas por EUR 21 bilhões de swaps
Goldman Sacks distribuídos ad hoc em 2006, 2007, 2008 e 2009.
Não se sabe quais títulos anteriores teriam sido quitados por meio
desses acordos, porém, as estatísticas divulgadas pelo Banco Central da
Grécia evidenciam a modificação do perfil da dívida, de títulos para
empréstimos[xxiii]:
BANK OF GREECE | ||
STATISTICS DEPARTMENT | GROSS EXTERNAL DEBT | |
Million of euros , end of reporting period – in market value | ||
TIME PERIOD – QUARTERS | ||
Q1 2010 | Q4 2014 | |
General Government5 | ||
Long-term | ||
Debt securities | 200.006 | 36.109 |
Loans | 12.915 | 226.784 |
Apesar de a Grécia não receber os recursos, registrou a dívida
“bilateral” no montante de EUR 52.9 bilhões, correspondente aos valores
desembolsados pelos países e pelo KFW à conta especial no Banco Central
Europeu. A Grécia teve também que assumir todos os onerosos custos e
encargos decorrentes dessas operações. A revelação desse mecanismo joga
por terra o discurso de que os contribuintes europeus estariam
financiando os gregos. Na realidade, eles financiaram e beneficiaram os
bancos privados que detinham aqueles super desvalorizados títulos
anteriores.
Mecanismos inseridos nos acordos de 2012
Outro conjunto[xxiv] de acordos atrelados a memorandos foram implementados na Grécia em 2012, denominado Master Facility Agreement
– MFAFA. A credora nesses acordos foi a companhia de Luxemburgo EFSF
criada em 2010 para garantir estabilidade financeira na Europa. Embora a
EFSF fosse a maior credora da Grécia em maio de 2015, com uma dívida
registrada no montante de EUR 139 bilhões para com essa sociedade
anônima, em todos os mecanismos identificados a EFSF não enviava
dinheiro à Grécia, mas papéis, instrumentos financeiros. Um dos
mecanismos identificados se aplicou ao programa de capitalização de
instituições financeiras privadas e utilizou o fundo privado Hellenic Financial Stability Fund (HFSF), criado por imposição da Troika. Tal
mecanismo opera da seguinte forma: inicia com a emissão de instrumentos
financeiros pela EFSF, que são em grande parte apenas registrados na
Bolsa de Luxemburgo. A EFSF desembolsa o empréstimo, enviando esses
papéis para o HFSF, por intermédio do Banco Central da Grécia, que
registra a dívida, ou seja a obrigação da Grécia para com a EFSF. Em
seguida, o HFSF utiliza esses papéis (vindos da EFSF, e que possuem
garantia dos países sócios da referida S/A) para comprar papéis emitidos
por bancos privados gregos, ativos tóxicos que não possuem garantia
alguma. Os acordos MFAFA autorizam os bancos privados a emitir tais
papéis sem garantia, que se denominam Greek Bank Instruments,
dando a entender que se trata de obrigação do Estado Grego. Após a
aquisição desses papéis, o HFSF ainda emite derivativos sobre eles e o
Banco da Grécia se responsabiliza por honrar tais papéis e ainda
remunera-los com juros e encargos. Ao final, a Grécia permanece com
papéis tóxicos e registra dívida para com a EFSF, além das demais
obrigações que assume com o HFSF. Os papéis que possuem a garantia dos
países sócios da EFSF ficam com os bancos privados. Pelo menos EUR 48.2
bilhões foram recebidos pelo HFSF por meio desse mecanismo, para serem
aplicados na capitalização de bancos privados. A Grécia não obteve
benefício algum, pois os recursos apenas transitaram pelo Banco Central
da Grécia e foram diretamente para os bancos privados. Além disso, a
Grécia passou a financiar a EFSF, pois teve que arcar com todos os
custos relacionados à preparação de cada documento, registros em Bolsa,
inúmeros custos operacionais, legais e até viagens! Esse mecanismo
comprova a completa ausência de contrapartida dessa dívida gerada
exclusivamente para capitalizar bancos privados, pois os instrumentos
financeiros emitidos pela EFSF simplesmente passam pelo Banco Central
Grego e seguem para o fundo privado HFSF, e deste para os bancos
privados. Como uma dívida gerada dessa forma pode ser sustentável? Sobre
ela ainda recaem pesados juros, encargos, taxas, comissões e toda
espécie de custos informados pela EFSF, além de obrigações
extraordinárias criadas pelo HFSF. O mais grave é que o povo grego fica
com o ônus de reembolsar uma dívida cujos recursos nunca recebeu. Tais
pagamentos estão sendo efetuados, às custas de crescentes cortes de
direitos sociais, entrega de patrimônio público e demais medidas
antisociais, ferindo gravemente os direitos humanos e a soberania grega.
Em outro mecanismo aplicado nos programas PSI e “Debt buy back”, a EFSF emite papéis próprios, denominados EFSF Debt Securities,
que são trocados por qualquer obrigação anterior grega, sem a devida
transparência, envolvendo tanto títulos em poder da população em geral
(que sofreram desconto e arcaram com o prejuízo de cerca de 70%) como
outras obrigações não devidamente identificadas, que ficaram livres de
qualquer desconto.
Assim, enquanto pequenos investidores sofreram perdas expressivas, conhecidas como haircut,
tais trocas representaram lucros estratosféricos para os grandes bancos
internacionais. Outro mecanismo envolveu co-financiamento do
administrador britânico Wilmington Trust (London) Limited[xxv]
como o instrutor para a emissão de títulos de dívida externa
restritos, não-certificados, que não podem ser comercializados em
nenhuma bolsa de valores legítima, pois não obedecem às regras exigidas
para títulos de dívida soberana. Estes títulos receberam o sugestivo
nome de New Greek Bonds, conforme autorizado pelos acordos
MFAFA, de 2012, e alcançaram a cifra de EUR 70 bilhões. O mecanismo
operou com a participação do Banco Central Europeu, que disponibilizou
linhas de crédito para a compra desses New Greek Bonds, gerando
ao mesmo tempo novas obrigações para com a EFSF e com o próprio BCE.
Além de tudo isso, os acordos MFAFA autorizavam a EFSF a realizar toda e
qualquer operação de risco, envolvendo inclusive arranjos cambiais e de
hedge, até mesmo em operações prévias denominadas “Pre-funding” [xxvi],
e a Grécia teria que arcar com todos os custos, tendo ou não expedido
autorização formal para a realização tais operações. Por meio desses
mecanismos, a dívida assumiu um curso automático[xxvii]
decorrente de sucessivas operações de rolagem, refinanciamento,
renovações e reciclagem de outras operações anteriores, transformando-se
em um grande negócio financeiro, sem benefício algum ao País.
Privatizações
Assumir a propriedade de patrimônio público estratégico e de
lucrativas empresas estatais sempre foi o objetivo primordial de setor
da elite privada. Tal objetivo tem sido satisfeito pelo Sistema da
Dívida na Grécia, pois os acordos e respectivos memorandos expressam
textualmente a necessidade de vender os bens estatais para pagar dívida
financeira. Os acordos MFAFA de 2012 chegaram a autorizar a emissão de
SECURITISATION NOTES, um papel que pode ser produzido por companhias de
propósito especial ou fundos para acelerar o processo de privatização do
patrimônio estatal. As SECURITISATION NOTES são estruturadas sobre
ações de empresas estatais, terras, edificações, reservas de gás
natural, direitos econômicos e de voto ou qualquer outro ativo ou
direito que poderia ser privatizado. Para operar, esse mecanismo
utilizou o fundo privado Hellenic Republic Asset Development Fund
(HRADF), criado por imposição dos memorandos. As SECURITISATION NOTES
têm sido acatadas para quitar dívidas com a EFSF, o que representa a
utilização de patrimônio público diretamente como meio de pagamento de
dívidas à EFSF, geradas de forma totalmente ilegítima.
Conclusão
Após a elucidação dos mecanismos inseridos nos acordos analisados,
restou evidenciado que os acordos celebrados desde 2010 serviram
unicamente ao setor financeiro privado nacional e internacional, ao
mesmo tempo em que geraram, até maio de 2015, uma dívida de EUR 183.9
bilhões para com a EFSF e credores bilaterais, além de outras obrigações
paralelas e acelerar a entrega de patrimônio público por meio de
privatizações.
Adicionalmente, tais acordos submeteram o País a cláusulas abusivas,
às leis inglesas e à Corte Inglesa, onde a Constituição Grega não é
levada em conta, representando uma grande humilhação e total desrespeito
à soberania de um País que tem um significado tão importante para a
História da Humanidade.
A Grécia contou com um assessor privado para tais desastrosas negociações – Cleary, Gottlieb Steen & Hamilton
– cuja contratação constou expressamente dos acordos MFAFA de 2012.
Tal firma é conhecida na América Latina, por sua assessoria a diversos
países, na transformação de dívidas externas prescritas em títulos, no
denominado “Plano Brady”. Tal negociação representou um desastre para
diversos países latino-americanos, como restou comprovado durante os
trabalhos da Comissão de Auditoria Oficial da Dívida Equatoriana (CAIC [xxviii]) e da Comissão Parlamentar sobre a Dívida Pública no Brasil (CPI [xxix]).
É necessário denunciar esses mecanismos já desvendados, pois além de
gerar dívida pública, têm possibilitado a imposição de rigorosos planos
de ajuste fiscal, provocando a paralisação de setores vitais da
economia, a corrosão da Democracia, a ofensa aos Direitos Humanos, ao
mesmo tempo em que os recursos são transferidos para os bancos privados
nacionais e internacionais.
O conhecimento de tais mecanismos constituem pistas que podem servir
para indicar o caminho a ser percorrido para virar o perverso jogo do
Sistema da Dívida e estabelecer a justiça social para o povo grego, a
quem dedico todo o esforço empenhado para a realização dos trabalhos de
auditoria da dívida daquele belo País.
[i] Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida www.auditoriacidada.org.br e https://www.facebook.com/auditoriacidada.pagina.
Membro da Comissão de Auditoria Oficial da dívida Equatoriana, nomeada
pelo Presidente Rafael Correa (2007/2008). Assessora da CPI da Dívida
Pública na Câmara dos Deputados Federais no Brasil (2009/2010).
Convidada pela Presidente do parlamento Helênico, deputada Zoe
Konstantopoulou para integrar a Comissão de Auditoria da Dívida da
Grécia a partir de abril/2015.
[ii] Zoe Konstantopulou, presidente do Parlamento Grego, criou o Comité da Verdade sobre a Dívida Pública “The Truth Committee on Public Debt”
, lançado em 4 de abril de 2015, para auditar a dívida grega, entre
outras funções. O coordenador científico do comité é Eric Toussaint,
presidente do CADTM, e conta com a participação de outros membros
estrangeiros e gregos.
[iii]
Logo após o fim da paridade dólar-ouro em 1971 e excessivo aumento da
liquidez internacional, os bancos privados internacionais incrementaram a
oferta de créditos a taxas de juros aparentemente baixas, de cerca de
5% ao ano, porem vinculadas à variação da Prime estabelecida pelo FED,
que era dirigido pelos principais bancos privados credores. A partir de
1979, o FED passou a elevar a Prime, que chegou a 20.5% ao ano,
provocando crise financeira em todos os países que caíram na armadilha
do crédito aparentemente barato.
[iv] Disponível em:
http://www.telegraph.co.uk/finance/financialcrisis/4590512/European-banks-may-need-16.3-trillion-bail-out-EC-dcoument-warns.html
[v] COUNCIL OF THE EUROPEAN UNION (2010) Statement by the Heads of State or Government of the European Union. http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cms_data/docs/pressdata/en/ec/112856.pdf
[vi] Securities Markets Programme (SMP) – EUROPEAN CENTRAL BANK. Monetary policy glossary.
Disponível em:
https://www.ecb.europa.eu/home/glossary/html/act4s.en.html#696 [Acessado em 4 de Junho de 2015]
[viii]
Países Membros da zona do Euro ou Sócios da EFSF: Reino da Bélgica,
República Federal da Alemanha, Irlanda, Reino da Espanha, República da
França, República da Itália, República de Chipre, República de
Luxemburgo, República de Malta, Reino da Holanda, República da Áustria,
República de Portugal, República da Eslovênia, República da Eslováquia,
República da Finlândia e República Helênica.
[ix] EUROPEAN COMMISSION (2010) Communication
From the Commission to the European Parliament, the European Council,
the Council, the European Central Bank, the Economic And Social
Committee and the Committee of the Regions – Reinforcing economic policy
coordination.
http://ec.europa.eu/economy_finance/articles/euro/documents/2010-05-12-com(2010)250_final.pdf – Página 10.
[x] IRISH STATUTE BOOK (2011) European Financial Stability Facility and Euro Area Loan Facility (Amendment) Act 2011. Disponível em: http://www.irishstatutebook.ie/2011/en/act/pub/0025/print.html#sec2 [Acessado em 4 Junho de 2015].
[xi]
Depoimento de Dr. Panagiotis Roumeliotis, representante da Grécia junto
ao FMI, para o “Comité da Verdade sobre a Dívida Pública”, no
Parlamento Grego, em 15 de junho de 2015.
[xii] EUROPEAN FINANCIAL STABILITY FACILITY (2010) About EFSF [online] Disponível em:
http://www.efsf.europa.eu/about/index.htm and http://www.efsf.europa.eu/attachments/faq_en.pdf – Question A9 [Acessado em 4 Junho de 2015].
[xiii] EUROPEAN FINANCIAL STABILITY FACILITY (2013) EFSF general questions. Disponível em:
http://www.efsf.europa.eu/attachments/faq_en.pdf – Question A6. [Acessado em 4 Junho de 2015].
Veja também: Germany Debt Management Agency has issued EFSF securities on behalf of EFSF.
EUROPEAN FINANCIAL STABILITY FACILITY (2010) EU and EFSF funding plans to provide financial assistance for Ireland. Disponível em:
http://www.efsf.europa.eu/mediacentre/news/2010/2010-006-eu-and-efsf-funding-plans-to-provide-financial-assistance-for-ireland.htm
[Acessado em 4 Junho de 2015]
[xiv]
Os mecanismos estão resumidos no Capítulo 4 do Relatório Preliminar
apresentado pelo “Comité da Verdade sobre a Dívida Pública” em 17 Junho
2015. Disponível em:
http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2014/06/Report-Greek-Truth-Committee.pdf
[xv]
Um conjunto de 3 Memorandos acompanham a Carta de Intenções que o
governo grego teve que assinar para receber um empréstimo Stand-By do
FMI, nos quais se compromete a realizar as contrarreformas, cortes de
serviços sociais, ao mesmo tempo em que cria fundos privados, com
recursos públicos, para realizar o resgate de bancos privados (HFSF) e
acelerar as privatizações (HRADT).
[xvi] Discurso de Zoe Kontantopoulou na ONU, disponível em http://cadtm.org/Discurso-de-Zoe-Konstantopoulou-na
[xix] MEMORANDUM OF ECONOMIC AND FINANCIAL POLICIES – May 3, 2010 – III, A, 13, 5th paragraph.
[xx] European Financial Stability Facility Act 2010, disponível em
[xxi]
Prof. Zoe Georganta, Professora de Econometria Aplicada e
Produtividade, Ex membro da diretoria da ELSTAT, apresentou sua
contribuição ao “Comité da Verdade sobre a Dívida Pública” em 21 Maio
2015.
[xxii] HF International (2011) Georgantas says 2009 deficit was purposely inflated to put us in code red. Disponível em: http://hellasfrappe.blogspot.gr/2011/09/shocking-report-official-admist-2009.html
[xxiii] BANK OF GREECE, External Debt Statistics. Disponível em:
[xxiv]
MASTER FINANCIAL ASSISTANCE FACILITY AGREEMENT – MFAFA (as amended by
the Amendment Agreement dated 12 December 2012). Disponível em:
[xxv] Co-Financing Agreement, PREAMBLE (A) and Article 1 – Definitions and Interpretation “Bonds”. Disponível em:
http://crisisobs.gr/wp-content/uploads/2012/02/7-co-financing-agreement.pdf [Acessado em 4 Junho de 2015]
Tais títulos são emitidos em forma desmaterializada e
não-certificada. Possuem muitas restrições porque são emitidos
diretamente para um determinado propósito e não oferecidos em mercado,
como exigido pela Lei de Ativos e pelas regras da SEC. Eles são emitidos
com base numa exceção dessas regras que é aplicável somente para
emissões privadas, não para Países.
[xxvi] Authorization for Pre-Funding and Indemnity Agreement, Article 2.
[xxvii] Authorization for Pre-Funding and Indemnity Agreement, Article 2.
[xxviii] ECUADOR (2008). Integral Auditing of the Ecuadorian Debt Final Report. English Version p.41-43 and 62. Disponível em:
[xxix] FATTORELLI, M.L. Citizen Debt Audit: experiences and methods p. 67-70. Disponível em: CADTM