A crise que nos trouxe à tragédia do bolsonarismo, que se aprofunda com o “AI-5 econômico”, também nos pode levar à reorganização das forças populares
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O pacotaço de novembro, materialização da Agenda Guedes, é um verdadeiro ato institucional, pois altera o caráter do Estado brasileiro, impõe a ditadura do capital sobre o trabalho e, na continuidade dos atentados à nossa Carta, revoga dois dos fundamentos da República (art. 1º da Constituição), quais sejam, a promoção da dignidade da pessoa humana e a relevância do valor social do trabalho. Neste sentido aprofunda ainda mais o viés ideológico que presidiu as reformas trabalhista e previdenciária. O regressivismo neoliberal tem um só mote, a regulação das contas públicas (o tal do “ajuste fiscal”), elevado a valor que se sobrepõe ao interesse nacional e ao bem-estar do povo, elemento que não cabe nas planilhas dos tecnocratas.
A proposta de um novo Estado, fundado no fim dos direitos sociais e no império das leis cegas do mercado e do lucro, vai recolher sua matriz no Chile, onde foi implantado por força de uma ditadura luciferina (Pinochet), para a qual Guedes trabalhou como Chicago boy.
A versão brasileira dos sonhos do neoliberalismo, que já nasce social e historicamente contestada, um anacronismo político, ideológico e econômico, põe por terra décadas de construção nacional e desarticula o pacto federativo. Mas, antes mesmo de ser digerido, o pacote foi louvado com entusiasmo pela grande imprensa e pela cúpula do Congresso, o que pode indicar sua breve aprovação, de que resultará, como um de seus primeiros e maléficos efeitos, uma concentração de poder e arbítrio quase absolutos nas mãos do Executivo —algo só visto na ditadura militar— com a qual tanto sonha o capitão, que assim contará com mais espaço para o exercício de seu autoritarismo e seu desapreço à democracia.
O sucesso do projeto do “Posto Ipiranga” será mais um ataque, de difícil reversão, ao Estado desenvolvimentista e ao projeto de bem-estar social que deu o arcabouço do pacto de 1988. O propósito anunciado é o encolhimento do Estado indutor do desenvolvimento como objetivo nacional e como contraponto às desigualdades sociais inerentes ao capitalismo, em quaisquer de suas versões, mas de especial em sua versão selvagem, esta em que vivemos e que o bolsonarismo aprofunda. No pacote, nenhuma ação que vise a aumentar a taxa de investimento, condição necessária para a ativação econômica; antes, trata-se de ignorar que dela depende toda política de desenvolvimento. Sai o Estado social e entra em cena o “Estado dos mercados”, exatamente aquele que está explodindo nas ruas do Chile, que explodiu no Equador, e foi rejeitado pelos argentinos. Levado a cabo, será mais uma vitória do capital rentista sobre o trabalho, com suas consequências agravadas com a precarização da malha de proteção social que caracteriza o Estado moderno. É o caminho mais curto para a agudização da tensão social alimentada pela concentração de renda e o desemprego, elementos dissolventes do pacto social.
Aparentemente, o pacote restabelece o concerto da santa aliança de sustentação do atual bloco de poder, constituído essencialmente (mas não exclusivamente) pelo dito “mercado”, com suas relações com o capital internacional, e o aval das forças armadas – que, assim, se oferecem ao julgamento da História. Essas são as bases fundamentais do bloco no poder, mas que a elas não se cingem, pois é sempre oportuno lembrar o papel do Congresso (agora dito “reformista”), como homologador dos projetos da dupla capitão-ministro. Ao Congresso colaborador soma-se a conivência ativa do poder judiciário, e, por óbvio, o papel da grande imprensa, aparelho ideológico a serviço da classe dominante. A tais bases agregam-se outras forças mobilizadas pela liderança popular que o capitão conserva e açula contra a democracia. Isto leva o presidente e seu ministro da Fazenda a se sentirem suficientemente fortes para anunciar o fim dos fundos públicos – fontes de desenvolvimento e proteção social –, transferindo seus recursos para o setor financeiro, a título de amortização da dívida pública, e assim capitalizando os bancos, os grandes beneficiários da atual política econômica. O governo ainda quer a privatização da Eletrobrás e de um sem número de empresas a serem listadas pelos tecnocratas da Fazenda, mas o seu ministro fiador quer ainda mais, quer a privatização da Petrobras e do Banco do Brasil – projeto que, conformado, diz (em entrevista à Folha de S. Paulo) haver sido adiado para o “segundo mandato” do capitão.
O BNDES, no pacote, perde os recursos do Fundo de Amparo do Trabalhador-FAT, fonte de investimento de longo prazo, o que é muito grave, pois indica o abandono de sua capacidade de agir estrategicamente. O teto de gastos da reforma Temer passa a valer também para os Estados e municípios, reduzindo ainda mais a possibilidade de investimentos. Nos três planos federativos impõe-se a política de restrição a melhorias salariais. Deprimindo a economia, reduzindo a renda, não haverá consumo, e sem consumo não haverá crescimento. Fica só a estéril austeridade neoliberal, enquanto o FMI, preocupado com a crise da zona do euro, sugere à Europa que faça “planos de emergência” (via expansão fiscal) para reaquecer a economia.
Segundo a revista Forbes, os 200 bilionários do Brasil, os verdadeiros donos do poder (e aos quais serve o atual governo), são donos de bancos, de holdings, acionistas e especuladores, donos de fundos de investimento aos quais se somam empresários da saúde e do ensino. Não se encontram entre eles capitalistas investindo na produção.
A balança comercial, com a queda das exportações (lembremos: retornamos aos anos 1930, somos exportadores de minérios e carne in natura e grãos) apresentou em outubro o menor saldo em cinco anos, um volume 79% inferior ao registrado em outubro do ano passado.
A economia patina, as exportações caem, a indústria anda para trás, o desemprego grassa, o desânimo abate a população, mas os bancos vivem seu ano dourado. O lucro do Bradesco no último trimestre cresceu 16,5% sobre o trimestre anterior; no ano, o banco acumulou um lucro de R$ 17,7 bilhões, uma alta de 26,4% na comparação com 2018. O lucro líquido do Itaú, neste mesmo trimestre, somou R$ 7,15 bilhões, uma alta de 10,9% sobre o trimestre passado. Por sua vez, o Santander teve, neste último trimestre, um lucro de R$ 3,6 bilhões, 5,8% acima do lucro obtido nos três meses anteriores.
Este é o país de Guedes e Bolsonaro. Nele, os pobres financiam a riqueza dos super-ricos. Levantamento da FGV cobrindo o período entre o 4º trimestre de 2014 e o 2º deste ano mostra que enquanto a metade mais pobre de nossa população teve uma queda de 17,1% em sua renda, os 10% mais ricos tiveram ganhos de 2,55% e o 1% mais rico – os donos do poder real – obteve ganhos de 10,11%.
Segundo números divulgados pelo IBGE (O Estado de SP, 7/11/2019), o Brasil registrou, em 2018, o recorde de 15, 537 milhões de pessoas vivendo em pobreza extrema, ou seja, com menos de R$ 145 mensais. O contingente de brasileiros miseráveis supera a população de países como Portugal, Bélgica ou Grécia.
Para fazer face ao poderoso aglomerado de poder que hoje dá sustentação ao bolsonarismo, e à aventura neoliberal, somente uma extraordinária mobilização popular, que pede, antes, a formação de uma Frente Ampla democrática.
A crise que nos trouxe à tragédia do bolsonarismo, que se aprofunda com o “AI-5 econômico”, também nos pode levar à reorganização das forças populares.
A proposta de um novo Estado, fundado no fim dos direitos sociais e no império das leis cegas do mercado e do lucro, vai recolher sua matriz no Chile, onde foi implantado por força de uma ditadura luciferina (Pinochet), para a qual Guedes trabalhou como Chicago boy.
A versão brasileira dos sonhos do neoliberalismo, que já nasce social e historicamente contestada, um anacronismo político, ideológico e econômico, põe por terra décadas de construção nacional e desarticula o pacto federativo. Mas, antes mesmo de ser digerido, o pacote foi louvado com entusiasmo pela grande imprensa e pela cúpula do Congresso, o que pode indicar sua breve aprovação, de que resultará, como um de seus primeiros e maléficos efeitos, uma concentração de poder e arbítrio quase absolutos nas mãos do Executivo —algo só visto na ditadura militar— com a qual tanto sonha o capitão, que assim contará com mais espaço para o exercício de seu autoritarismo e seu desapreço à democracia.
O sucesso do projeto do “Posto Ipiranga” será mais um ataque, de difícil reversão, ao Estado desenvolvimentista e ao projeto de bem-estar social que deu o arcabouço do pacto de 1988. O propósito anunciado é o encolhimento do Estado indutor do desenvolvimento como objetivo nacional e como contraponto às desigualdades sociais inerentes ao capitalismo, em quaisquer de suas versões, mas de especial em sua versão selvagem, esta em que vivemos e que o bolsonarismo aprofunda. No pacote, nenhuma ação que vise a aumentar a taxa de investimento, condição necessária para a ativação econômica; antes, trata-se de ignorar que dela depende toda política de desenvolvimento. Sai o Estado social e entra em cena o “Estado dos mercados”, exatamente aquele que está explodindo nas ruas do Chile, que explodiu no Equador, e foi rejeitado pelos argentinos. Levado a cabo, será mais uma vitória do capital rentista sobre o trabalho, com suas consequências agravadas com a precarização da malha de proteção social que caracteriza o Estado moderno. É o caminho mais curto para a agudização da tensão social alimentada pela concentração de renda e o desemprego, elementos dissolventes do pacto social.
Aparentemente, o pacote restabelece o concerto da santa aliança de sustentação do atual bloco de poder, constituído essencialmente (mas não exclusivamente) pelo dito “mercado”, com suas relações com o capital internacional, e o aval das forças armadas – que, assim, se oferecem ao julgamento da História. Essas são as bases fundamentais do bloco no poder, mas que a elas não se cingem, pois é sempre oportuno lembrar o papel do Congresso (agora dito “reformista”), como homologador dos projetos da dupla capitão-ministro. Ao Congresso colaborador soma-se a conivência ativa do poder judiciário, e, por óbvio, o papel da grande imprensa, aparelho ideológico a serviço da classe dominante. A tais bases agregam-se outras forças mobilizadas pela liderança popular que o capitão conserva e açula contra a democracia. Isto leva o presidente e seu ministro da Fazenda a se sentirem suficientemente fortes para anunciar o fim dos fundos públicos – fontes de desenvolvimento e proteção social –, transferindo seus recursos para o setor financeiro, a título de amortização da dívida pública, e assim capitalizando os bancos, os grandes beneficiários da atual política econômica. O governo ainda quer a privatização da Eletrobrás e de um sem número de empresas a serem listadas pelos tecnocratas da Fazenda, mas o seu ministro fiador quer ainda mais, quer a privatização da Petrobras e do Banco do Brasil – projeto que, conformado, diz (em entrevista à Folha de S. Paulo) haver sido adiado para o “segundo mandato” do capitão.
O BNDES, no pacote, perde os recursos do Fundo de Amparo do Trabalhador-FAT, fonte de investimento de longo prazo, o que é muito grave, pois indica o abandono de sua capacidade de agir estrategicamente. O teto de gastos da reforma Temer passa a valer também para os Estados e municípios, reduzindo ainda mais a possibilidade de investimentos. Nos três planos federativos impõe-se a política de restrição a melhorias salariais. Deprimindo a economia, reduzindo a renda, não haverá consumo, e sem consumo não haverá crescimento. Fica só a estéril austeridade neoliberal, enquanto o FMI, preocupado com a crise da zona do euro, sugere à Europa que faça “planos de emergência” (via expansão fiscal) para reaquecer a economia.
Segundo a revista Forbes, os 200 bilionários do Brasil, os verdadeiros donos do poder (e aos quais serve o atual governo), são donos de bancos, de holdings, acionistas e especuladores, donos de fundos de investimento aos quais se somam empresários da saúde e do ensino. Não se encontram entre eles capitalistas investindo na produção.
A balança comercial, com a queda das exportações (lembremos: retornamos aos anos 1930, somos exportadores de minérios e carne in natura e grãos) apresentou em outubro o menor saldo em cinco anos, um volume 79% inferior ao registrado em outubro do ano passado.
A economia patina, as exportações caem, a indústria anda para trás, o desemprego grassa, o desânimo abate a população, mas os bancos vivem seu ano dourado. O lucro do Bradesco no último trimestre cresceu 16,5% sobre o trimestre anterior; no ano, o banco acumulou um lucro de R$ 17,7 bilhões, uma alta de 26,4% na comparação com 2018. O lucro líquido do Itaú, neste mesmo trimestre, somou R$ 7,15 bilhões, uma alta de 10,9% sobre o trimestre passado. Por sua vez, o Santander teve, neste último trimestre, um lucro de R$ 3,6 bilhões, 5,8% acima do lucro obtido nos três meses anteriores.
Este é o país de Guedes e Bolsonaro. Nele, os pobres financiam a riqueza dos super-ricos. Levantamento da FGV cobrindo o período entre o 4º trimestre de 2014 e o 2º deste ano mostra que enquanto a metade mais pobre de nossa população teve uma queda de 17,1% em sua renda, os 10% mais ricos tiveram ganhos de 2,55% e o 1% mais rico – os donos do poder real – obteve ganhos de 10,11%.
Segundo números divulgados pelo IBGE (O Estado de SP, 7/11/2019), o Brasil registrou, em 2018, o recorde de 15, 537 milhões de pessoas vivendo em pobreza extrema, ou seja, com menos de R$ 145 mensais. O contingente de brasileiros miseráveis supera a população de países como Portugal, Bélgica ou Grécia.
Para fazer face ao poderoso aglomerado de poder que hoje dá sustentação ao bolsonarismo, e à aventura neoliberal, somente uma extraordinária mobilização popular, que pede, antes, a formação de uma Frente Ampla democrática.
A crise que nos trouxe à tragédia do bolsonarismo, que se aprofunda com o “AI-5 econômico”, também nos pode levar à reorganização das forças populares.
Roberto Amaral
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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia