Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sábado, 5 de maio de 2012

FMI e Banco Mundial não pedem perdão

Domingo, 6 de maio de 2012
De "resistir.info"

por Rubens Ricupero
Capa do último relatório TDR. da UNCTAD. Noventa e quatro foram as vezes que o Papa João Paulo II pediu perdão pelos pecados e crimes praticados pelos cristãos durante dois mil anos de História. Seria demais esperar que algumas organizações económicas multilaterais reconhecessem a sua quota-parte de responsabilidade pela actual crise financeira e pedissem perdão pelos terríveis conselhos que deram aos países nos últimos anos?

Quando a Rainha Isabel II visitou a London School of Economics, em Novembro de 2008, perguntou candidamente o que toda a gente gostaria de perguntar:   "Porque é que ninguém se apercebeu do que estava para acontecer?" Depois de meses de embaraço, um grupo de eminentes economistas britânicos enviou uma carta de desculpas à Rainha. Escreveram: "Majestade, a impossibilidade de prever a altura, a dimensão e a gravidade da crise e como evitá-la (…) foi devida principalmente à falha da imaginação colectiva de muitas pessoas brilhantes (…) para compreender os riscos do sistema como um todo".

E a carta continuava, reconhecendo que os magos, alguns deles laureados com o Prémio Nobel, que acreditavam que os seus planos para proteger o sistema financeiro eram infalíveis, eram os culpados de "ilusões eivadas de arrogância". Os tempos anteriores à crise foram caracterizados como uma "psicologia de negação".

Eu não podia encontrar uma descrição mais precisa quanto à forma como as edições do Trade and Development Report (TDR), uma após outra, foram recebidas pelos economistas tradicionais nalgumas das instituições multilaterais e na imprensa:   uma atitude colectiva de negação. Não tanto pela hostilidade muito activa nem pela censura política, embora também tenhamos tido um cheirinho disso de vez em quando. Foi uma postura estudada de silêncio deliberado, de não querer reconhecer a existência real, para não dizer o possível interesse, de uma opinião diferente.

O TDR de 1996 foi o primeiro a ser publicado sob a minha responsabilidade oficial e sinto-me orgulhoso de, ao arrepio das regras oficiais, ter sido dedicado à memória de Shahen Abrahamian, que morrera uns meses antes e tinha sido um dos exemplos das principais forças intelectuais por detrás do Relatório.

Um ano antes, Abrahamian deve ter-se sentido vingado durante a discussão da crise tequila mexicana. Se alguém quiser saborear um pouco esse passado nem por isso muito nostálgico, há um relato vivo na internet do nosso querido amigo Chakravarthi Raghavan, no âmbito da Third World Network.

Conta como Carlos Fortin, na altura chefe em exercício da UNCTAD [United Nations Conference on Trade and Developmen], reparou que em 1994, quando o Trade and Development Report (TDR) alertou contra os perigos em torno das finanças globais, o Wall Street Journal achincalhara os economistas da organização por serem contemporâneos de Rip Van Winkles , aparecidos dos recantos dum passado longínquo. Um ano depois, o mesmo jornal publicou um artigo de primeira página reconhecendo que esses mesmos economistas há anos que andavam a alertar para a probabilidade do tipo de crise que assolara o México.

Durante os trinta anos da sua existência, o TDR cobriu uma grande variedade de assuntos e tornou-se numa verdadeira enciclopédia do pensamento sobre o desenvolvimento. Não vou tentar um exame abrangente das suas conclusões mais interessantes nas áreas mais próximas da minha experiência, tais como os desequilíbrios e as deficiências do sistema de comércio multilateral, a taxa de valor acrescentado aos produtos exportados como critério definitivo de desenvolvimento, ou a verdadeira natureza das políticas de desenvolvimento bem sucedidas, implementadas pela China e por outros países asiáticos em contraste com o travesti neoliberal das políticas inventadas por algumas organizações.

Nem vou concentrar-me na área que provou ser a previsão mais rigorosa das coisas que estavam para acontecer:   a análise sistemática dos perigos da exagerada liberalização financeira e desregulamentação, feitas demasiado cedo; a proposta iluminada de todo um aconselhamento político para tratar de modo eficaz e humano o endividamento excessivo; e o fomento de políticas sãs para evitar e impedir crises financeiras e monetárias.

O que prefiro realçar no arsenal de ideias do TDR é a perspectiva genérica de desenvolvimento na sua totalidade e complexidade, de um todo maior do que a soma das suas partes, a sua natureza indivisível. O TDR de 1996 foi dedicado precisamente à interacção de todos os factores indispensáveis ao desenvolvimento: finança, taxas de câmbio, investimento, comércio e tecnologia. Representou um esforço lúcido para nunca perder de vista a floresta quando se olha para as árvores individuais. Expunha duas abordagens básicas que vieram a singularizar a especificidade do TDR. A primeira era e é a insistência na importância central do ambiente económico externo como condição propícia ou adversa para o desenvolvimento que por vezes pode ser determinante. De certo modo esta ideia é uma extensão da velha teoria de Raul Prebisch de "centro e periferia", "a sua terminologia espantosa", como a classificou o Professor Jagdish Bhagwati.

A segunda e complementar abordagem é que a qualidade das políticas nacionais é importante quanto se tenta tirar partido de circunstâncias externas favoráveis ou recuperar contextos desfavoráveis. Dadas as particularidades e fases de crescimento muito diferentes dos países em desenvolvimento, estes devem ter direito a um razoável grau de espaço político para adoptar medidas e orientações mais apropriadas às suas necessidades. Para isso, é indispensável um mecanismo de Estado capaz, para instituir o enquadramento político que melhor conduza ao desenvolvimento.

É espantoso como uma construção teórica de tal equilíbrio, clareza e globalidade viesse a ser mal compreendida e mal interpretada tantas vezes. Afinal, o TDR e a UNCTAD nunca tentaram impor condicionalismos nem ditar prescrições aos países, nunca pretendeu definir um consenso supostamente de valor universal para todas as nações.

O oposto é que era verdade, já que as pessoas se queixavam frequentemente que os Relatórios não eram suficientemente prescritivos, que deixavam demasiada liberdade de escolha ao apresentar as alternativas existentes, que convidavam os países a enfrentar as suas próprias responsabilidades.

Se o desenvolvimento fosse abordado duma perspectiva de totalidade, um corolário lógico que se seguia era que a interdependência devia proporcionar a pedra angular para a criação de um ambiente externo favorável. A interdependência e a sua consequência necessária, a cooperação multilateral, seriam então vistas como os únicos caminhos que podiam garantir uma economia mundial saudável e equilibrada.

Ao tratar a economia mundial na sua totalidade como um sistema complexo e inter-relacionado, o TDR foi forçado a analisar o desenvolvimento como um todo indivisível. Pelo seu lado, esta abordagem forçou a vir à superfície a necessidade de coerência entre o sistema monetário e o financeiro, por um lado, e o sistema comercial, por outro. Como todos sabemos, esta é uma questão crucial que jaz no próprio centro dos principais desequilíbrios macroeconómicos entre economias cronicamente excedentes e economias deficitárias.

A crise destrutiva que estamos actualmente a sofrer é o resultado directo desses desequilíbrios fenomenais. Ou, melhor dizendo, a crise foi o produto da crença ideológica de que os mercados corrigem por si mesmos os desequilíbrios que criaram e o álibi fatal que a ideologia forneceu para a falta de cooperação multilateral na sua gestão.

CRISIOLOGIA, A NOVA CIÊNCIA

Entre todos os empreendimentos do TDR, o que sobressai como uma lição de utilidade imediata e urgente é a sua contribuição para a recente ciência da "crisiologia", o ramo da economia que trata das crises.

Actualmente, este tem sido um campo académico florescente e as livrarias tiveram que dedicar secções inteiras à prolífica produção nesta área. Como nota de rodapé para esta tendência, permitam-me que refira apenas que mesmo os melhores nesta seara não são imunes a algumas conclusões estranhas. O interessante e exaustivo estudo de Rogoff e Reinhardt, por exemplo, tem um quadro onde, com base em diversos critérios históricos, lista os países que estão em vias de se libertar da probabilidade de incumprimento. Bem, entre os poucos eleitos, ficarão agradavelmente surpreendidos por encontrar a Grécia, para cúmulo, e Portugal, o que demonstra como as percepções podem mudar radicalmente numa questão de meses ou de semanas!

Não voltei a ler todas as páginas que o TDR escreveu sobre as crises mas espero que nunca se tenha aventurado em exercícios tão perigosos! Os livros e os relatórios sobre crises financeiras tornaram-se hoje tão frequentes que já não atraem muita atenção. Mas no início dos anos 90, após a queda do Muro de Berlim, o fim do comunismo e o fim da História de la pensée unique, e a triunfante globalização como ideologia, prever crises financeiras era considerado um absurdo e merecedor duma grande ensaboadela do Wall Street Journal.

Quando cheguei a Genebra em Setembro de 1995, era um desporto da moda fazer troça da UNCTAD. Alguns dias depois de tomar posse, a coluna Observer no Financial Times deu-me as boas vindas com uma nota traduzindo a nossa sigla como significando Under No Condition Take Any Decision! [Não tomar decisões seja como for]. Nessa altura, quem sonharia que 15 anos depois a recém-nascida instituição, anunciada como o fim da UNCTAD, se encontraria numa situação difícil não muito diferente!

Antes do final de 1994, quando o colapso financeiro no México nos recordou que a mortalidade era um destino inevitável não só das civilizações mas também da globalização, espalhou-se a crença de que a Grande Normalização tinha impedido a possibilidade duma crise real, daquelas associadas ao ciclo económico normal. É essa a explicação para a indignada reacção às primeiras profecias do TDR sobre os perigos de influxos de capital a demasiado curto prazo nas economias em desenvolvimento.

Mesmo depois de a crise tequila ter comprovado o rigor do raciocínio, o episódio continuou a ser considerado como não sendo mais do que uma consequência adicional da falta de disciplina e do laxismo descuidado das pessoas do sul, as que posteriormente seriam marcadas com o ferrete de pertencerem à variedade do "Clube Mediterrâneo". Umas semanas antes de o colapso da divisa da Tailândia ter anunciado o início da crise asiática de 1997, um título de primeira página no Financial Times resumia o Relatório da Primavera do FMI daquele ano: " O futuro da economia mundial é cor-de-rosa, diz o FMI".

Isso foi em Fevereiro ou Março. Meses mais tarde, quando a crise estava a chegar a Singapura, durante a reunião de Outono do FMI e do Banco Mundial que se realizou em Hong Kong (China), é espantoso recordar que o FMI ainda estava a tentar vender uma emenda aos Artigos do Acordo, instituindo o carácter obrigatório da total abertura da conta capital da balança de pagamentos e a absoluta interdição de qualquer controlo de capitais!

As crises russa e brasileira de 1998-1999 também não foram suficientes para dissipar a noção de que as crises financeiras e monetárias só podiam acontecer na periferia distante e bárbara do sistema, do mesmo modo que os desafios à democracia e ao capitalismo eram relegados para países muito distantes e irrelevantes como o Afeganistão, no famoso estudo de Fukuyama em The End of History. Todos sabemos como essa história especial terminou e como a crise acabou por acertar em cheio no coração do sistema. Não vou voltar a contar uma história que já foi contada tantas vezes. O meu objectivo é apenas relembrar qual era a atmosfera intelectual e psicológica que predominava durante a maior parte dos anos da minha experiência pessoal com a elaboração do TDR.

DEMISSÃO DA MÁFIA?

Ao preparar estes comentários, leio aqui e ali alguns dos textos do TDR sobre crises financeiras. Fiquei impressionado com a sua frescura, a sua profundidade analítica e a sua validade permanente. Se os tivessem lido, os gregos teriam compreendido o humor negro perfurante do comentário do Professor Bhagwati de que, quando somos apanhados pela armadilha da globalização financeira, libertar-nos dela é como enviar uma carta a demitirmo-nos da Mafia… A Onorata Società não leva este tipo de coisas de ânimo leve como nós meridionali bem sabemos…

Se detectaram nas minhas palavras um toque de ironia e de sarcasmo, provavelmente têm razão. Espero não ter sido culpado do feio pecado de schadenfreude, a que outros podem chamar a alegria do profeta ou a vingança de Cassandra. O TDR foi acusado muitas vezes de ser a voz de Cassandra. Claro que as pessoas não perceberam o principal: com efeito, Cassandra tinha razão e se os troianos lhe tivessem dado ouvidos, os gregos não teriam sido forçados a retirar e a humanidade teria ficado privada de um belo poema. Sabe-se lá, talvez até mesmo o destino subsequente dos gregos os tivesse poupado às actuais provações.

Esta longa recherche du temps perdu deixa-nos um amargo de boca. Se o TDR foi tão rigoroso genericamente, porque é que tão pouca gente prestou atenção àquilo que ele dizia? Teremos que ser forçados a reconhecer que Chesterton afinal tinha razão, quando escreveu que a História nos ensina que a História não nos ensina nada ? Teremos que atribuir esta falta de previsão a uma "falha da imaginação colectiva de muitas pessoas brilhantes (…) à combinação de ilusões com arrogância (…) numa psicologia de negação"?

COINCIDÊNCIA SUSPEITA

Há um poucochinho de veracidade em cada um destes factores, mas suspeito que eles não abrangem toda a verdade. Pelo menos para os indivíduos em posições de poder na política e na finança – e são frequentemente intermutáveis – há qualquer coisa mais. É uma coincidência suspeita entre as suas conclusões intelectuais e os seus interesses financeiros e carreiristas. Por outras palavras, há um elemento de ideologia, na definição de Karl Mannheim como um conjunto de crenças e valores, supostamente científicos e objectivos mas que servem e escondem convenientemente os interesses de classe e de sectores.

Desta categoria de pessoas, que estão de novo no poder, ou melhor, que nunca perderam as suas posições dominantes na direcção dos bancos e dos governos, o único tipo de arrependimento que podemos esperar é o atribuído a um conhecido pianista pop star americano dos anos 60. Depois de uma execução particularmente atroz que lhe rendeu montes de dinheiro, perguntaram-lhe como é que se sentia quanto a um artigo crítico arrasador do New York Times e ele respondeu: "Chorei o tempo todo no caminho para o banco"! Se eles sentem qualquer espécie de dor de consciência, no melhor dos casos dirão: "Desde que começou esta crise financeira, todos os anos temos chorado alto quando embolsamos o dinheiro ou os nossos milionários bónus e opções de compras de acções"!

Não acredito que no TDR ou na UNCTAD as pessoas fossem intrínseca e moralmente superiores a esses senhores da finança ou que fossem intelectualmente mais brilhantes. O que eles tinham era uma coisa muito diferente: uma ética internacional de serviço público, um compromisso de pensamento crítico e independente, o desejo de imitar as lições herdadas de gigantes como Gunnar Myrdal e Raul Prebisch.

Tal como Don Raúl, sentiam um grande respeito pelas teorias do Norte porque essas teorias tinham muito mérito. Mas, tal como ele, examinavam-nas com um espírito crítico para ver até que ponto se adequavam a condições estruturalmente distintas no Sul. Eram movidos por uma procura permanente da emancipação intelectual e sentiam uma paixão pela independência, pela integridade, pela recusa de servir de utensílio aos interesses económicos especiais ou mesmo ao chamado "sagrado egoísmo" dos interesses nacionais. E felizmente, quase sempre encontraram nas Nações Unidas o quadro institucional que lhes proporcionava as condições mínimas para trabalhar sem terem que vender a alma.

Eu tive a sorte de, no fim da minha carreira pública, ter beneficiado da sabedoria, da experiência e do exemplo moral de homens como Carlos Fortin, Roger Lawrence, Yilmaz Akyüz, Professor John Toye, pelo menos, e dos seus colaboradores, Richard Kozul-Wright, Andrew Cornford, Charles Gore, Detlef Kotte, Taffere Tesfachew, e mais tarde Heiner Flassbeck, Alfredo Calcagno e muitas outras pessoas notáveis que trabalhavam noutros sectores da UNCTAD. Gostaria de me referir em especial à contribuição notável do Professor Jan A, Kregel durante muitos anos, quanto a questões financeiras, monetárias e outras questões relevantes cobertas pelo TDR. Fiquei encantado e encorajado ao ver que o secretário-geral, Dr. Supachai, lhes tinha garantido o seu apoio incondicional, orientação e confiança, que o TDR tinha sido capaz de manter as suas promessas mais brilhantes, que os preparativos para a UNCTAD XIII tinham renovado e reforçado as melhores tradições da UNCTAD.

Nunca tive os conhecimentos nem o talento para lhes servir realmente de grande ajuda. Receio que, por causa da minha deformação profissional diplomática, possa por vezes ter-lhes sido um empecilho com a minha tendência para suavizar modos de expressão incisivos ou previsões demasiado arrojadas das coisas que viriam a acontecer. Portanto é apropriado que também lhes peça perdão pelas minhas falhas e omissões.

Como não posso partilhar da glória da equipa do TDR, e dos seus colegas em semelhantes tentativas difíceis, posso pelo menos elogiá-los pelos seus feitos e agradecer-lhes pela valiosa contribuição que me deram e à UNCTAD. E concluo dizendo do fundo do coração: "Viva o Trade and Development Report ! Viva a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento! Vivam as mulheres e homens nas organizações internacionais e em toda a parte que lutam por mais justiça, mais igualdade na economia mundial!" Obrigado a todos!
NT

UNCTAD: – United Nations Conference on Trade and Development. A Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento foi fundada em 1964, em Genebra, na Suíça. É o órgão da ONU que trata de questões de comércio, investimento e desenvolvimento, mas as suas decisões não são obrigatórias. Os seus objectivos são "maximizar as oportunidades de comércio, investimento e desenvolvimento dos países em desenvolvimento e ajudá-los nos seus esforços para se integrarem na economia mundial numa base equitativa". A criação desta conferência teve origem nas preocupações dos países em desenvolvimento quanto ao mercado internacional, às grandes empresas multinacionais e à grande disparidade entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento.

[*] Ex secretário-geral da UNCTAD. A presente declaração consta no relatório TDR 1981-2011, da UNCTAD. Os inter-títulos são da responsabilidade de resistir.info.

O relatório pode ser descarregado em http://unctadxiii.org/en/Pages/news-details.aspx?newsid=104 .
Tradução de Margarida Ferreira.
Esta declaração encontra-se em http://resistir.info/ .