Policiais torturam para forçar confissões, agentes penitenciários
torturam para castigar os presos. Há centenas de denúncias todos os anos
mas poucos agentes do Estado são punidos.
“Zero Um” é o mais nervoso dos quatro policiais militares que
revistam a casa de Marlene. Depois de encontrar um cigarro de maconha,
além de um relógio, munição e um computador roubados, os PMs a levam
para o quarto algemada, fazem com que ajoelhe e desferem uma rodada de
tapas no seu rosto, coronhadas na cabeça e chutes pelo corpo. É de “Zero
Um” a ideia de pegar um saco plástico: “Não vai falar, vagabunda?”. Ele
coloca o saco preto ao redor da cabeça de Marlene. Ela desmaia.
O nome da vítima foi trocado, para preservar sua identidade, mas o
apelido “Zero Um” é verídico, escolhido pelos PMs entre os codinomes
usados pelos personagens de Tropa de Elite – filme que retrata a ação do grupo de elite da polícia militar do Rio de Janeiro.
Eram dez horas da noite do primeiro dia de 2012 quando a camareira de
28 anos autorizou a entrada dos policiais em sua casa, que fica em um
bairro pobre de Manaus. Ela estava grávida de 5 meses, perdeu a criança
dois dias depois. A “técnica” do saco no rosto para extrair informação
também aparece nas cenas de Tropa de Elite.
Na vida real, era o início de uma sessão de mais de duas horas de
tortura – relatados por Marlene à reportagem da Pública que a visitou na
Cadeia Pública Feminina “Desembargador Raimundo Vidal Pessoa”, onde
está presa desde então por posse de objetos roubados.
Marlene acordou do desmaio provocado pela falta de ar dentro do saco
preto com um jato de spray de pimenta no rosto e foi arrastada para a
cozinha. Mais uma vez, foi de “Zero Um” a ideia: esquentar objetos
metálicos no fogão. Os policiais usaram suas próprias ferramentas de trabalho para queimá-la:
primeiro, a algema, pressionada em brasa contra sua perna esquerda com a
ajuda de um alicate. Depois, a ponta do cano do revólver, dentro da
pele queimada pela algema – formando dois círculos circunscritos.
As marcas deixadas pela polícia no corpo da camareira são
inconfundíveis. São a prova de que eles não temiam punição. Embora
amplamente conhecida pela população, a tortura cometida por agentes da
lei é um tabu para a Justiça. Raramente condena-se um policial ou um
agente carcerário pelo crime.
Uma enraizada cultura de resistência da própria corporação dificulta o
julgamento, a investigação e produção de provas. Isso quando a vítima
consegue registrar a denúncia, vencendo outra série de obstáculos antes
da abertura do inquérito. O silêncio realimenta o crime ao dar a
segurança da impunidade aos policiais violentos.
Comissão da verdade: tortura ontem e hoje
A recente criação da Comissão da Verdade, em maio desse ano, foi
considerada um passo importante para quebrar o ciclo histórico da
violência praticada por agentes do Estado no país. A cerimônia de
lançamento do grupo, que deve trazer à tona os relatos sobre tortura e
homicídio cometidos pelo regime militar, contou com um discurso
emocionado da presidenta Dilma Rousseff, ela mesmo uma vítima da tortura
em 1970. O mesmo governo que lança luz sobre os crimes do passado,
porém, faz pouco sobre a tortura que acontece no presente.
É isso que diz um duro relatório da Organização das Nações Unidas (ONU),
que o governo manteve sob sigilo por quatro meses. Quando o documento
foi divulgado, em 15 de junho, não foi difícil entender o porquê: o documento aponta diversas brechas e falhas no combate ao crime dentro das instituições brasileiras.
Com base em visitas a presídios e entrevistas no Brasil, o Subcomitê
de Prevenção à Tortura (SPT) faz recomendações concretas sobre como os
governos podem – e devem – combater o crime. E destaca que pouco mudou
desde a última visita do grupo, em 2001. “O SPT recorda que muitas das
recomendações feitas no presente relatório não estão sendo apresentadas
ao Brasil pela primeira vez”, diz o documento. “Infelizmente, o SPT
detectou muitos problemas semelhantes aos identificados nas visitas
anteriores”.
Um dos compromissos mais simples assumidos pelo governo brasileiro
com a ONU era o de criar, até 2008, um mecanismo nacional para combater a
tortura, que teria um comitê responsável por organizar os dados
estatísticos, promover medidas de prevenção ao crime e fazer visitas
sistemáticas a presídios e delegacias.
Nem isso foi feito. O Projeto de Lei que criava o mecanismo só foi
enviado ao Congresso em setembro de 2011, o mesmo mês em que o subcomitê
voltava a visitar o país. Hoje, aguarda votação.