Sexta, 18 de outubro de 2019
Por Juan Ricthelly
Há basicamente dois
simbolismos que valem ser mencionados em relação à palavra Equador, antes de
adentramos no mérito desse texto.
O primeiro remete à
condição geográfica e política da nação que leva esse nome, em razão de estar
na metade do mundo, dividindo-se em dois hemisférios, sul e norte, e transitar
entre o tensionamento social histórico de dois rumos a serem seguidos, sendo um
deles, um projeto político de submissão econômica ao Norte (EUA e Europa), e o
outro, a materialização de um Estado Plurinacional com um projeto de
desenvolvimento alternativo e autônomo enraizado no Sul Global, na América
Latina e no Sumak Kawsay (Bem Viver)
dos povos originários.
O segundo
simbolismo é de origem etimológica, já que o seu nome vem do latim, aequator,
que significa “o que iguala” ou “igualador”, sendo a igualdade social um dos
principais ingredientes da luta política nesse país, territorialmente pequeno,
mas gigante em aspirações, anseios e sonhos coletivos, capazes de pautar os
horizontes da humanidade.
Coincidentemente, a
República do Equador, ex-colônia espanhola, leva o nome desse divisor
artificial, sendo o lar de 17,3 milhões pessoas[1],
que coexistem em seu território por meio de 13 nacionalidades e 14 povos
indígenas, que perfazem 7% de sua população.
A Linha do Equador
divide o mundo, mas hoje iremos tentar compreender um pouco sobre a Linha que
divide o Equador, e sua relação com o levante popular vitorioso que tomou ruas,
estradas e praças dessa nação irmã, numa insurreição que rechaça duramente a
cartilha neoliberal como solução para os seus problemas.
UMA BREVE HISTÓRIA DO EQUADOR
Muitos se recusam a
acreditar e tantos outros ignoram, que antes de 1492 havia algo desse lado de
cá do mundo, até então desconhecido pelos europeus, estima-se que aqui viviam
algo em torno de 57 e 90 milhões de pessoas, em diversas nações, com culturas,
idiomas e cosmovisões distintas e únicas.
Que antes da América, esse lugar era
chamado de outros nomes pelas pessoas que aqui viviam, sendo nome Abya Yala[2] o
que tem gerado mais consenso nesse resgate histórico ancestral, mas havendo
outros como Tawantinsuyu para os incas, Anahuac para os astecas e Pindorama
para o povo tupi.
O atual Equador não
foge a essa regra, e era habitado há séculos por populações originárias, que em
determinado momento histórico formaram a Confederação
de Quito, que foi anexada ao Império Inca pouco antes da invasão europeia.
Francisco Pizarro[3],
desembarca no Equador em 1531 no cenário de uma guerra civil no Império Inca, protagonizada pelos
irmãos Atahualpa e Huascar, que brigavam pelo direito de suceder o seu falecido
pai no trono, tendo se aproveitado das fragilidades e rivalidades internas,
para consolidar o seu intento de dominação, sendo exitoso, e iniciando um
processo doloroso para os povos originários.
Com o respaldo da
Igreja Católica, que dividiu o mundo entre Espanha e Portugal, se inaugurou uma
série de mecanismos que atribuíram à propriedade do Novo Mundo às potências
ibéricas e a alma dos povos conquistados à deus.
Sendo inicialmente
a encomienda, a
exigência da coroa espanhola que cada colono “salvasse” as almas de algum grupo
de selvagens das terras que exploravam, em troca de um pagamento pelo catecismo
por meio do trabalho.
A encomienda,
chega ao fim no século XVII, entrando no seu lugar a mita, que instituía o trabalho compulsório dos povos
originários nas obras públicas e privadas realizadas na colônia. Houve
substituição pelo huasipungo,
que estabelecia o uso da terra pelo camponês indígena desde que ele e sua
família, trabalhassem na terra do latifundiário, três, quatro e até sete dias
por semana, podendo cultivar sua própria gleba nas horas vagas, vendendo ou
trocando o que produzia com outros camponeses. Mesmo com toda a luta para o fim
dessa forma vergonhosa de exploração, ela somente chegou ao fim em meados da
década de 60 do século XX.
Em 1563 a cidade de
Quito se converte em importante centro administrativo, por meio da Audiência Real de Quito, que após as
lutas por independência da América Espanhola protagonizadas por Simón Bolívar,
se une à Grã-Colômbia, emergindo
como uma das três nações resultantes de sua dissolução em 1830, assim como Colômbia
e Venezuela.
O Equador não fugiu
ao padrão latino americano, de ex-colônia que conservou estruturas coloniais e
racistas, com uma elite local de descendência europeia, os criollos, que herdaram o dinheiro, o poder e as terras, dando
continuidade por meio de um Estado Nacional à exploração iniciada pela
metrópole, num sistema fundado no tripé: latifúndio, monocultura e economia
primário-exportadora de commodities como cacau, banana, café, petróleo, camarão
e atum.
Durante o Século
XX, o Equador teve 8 constituições[4] (1906,
1929, 1938, 1945, 1946, 1967, 1978, 1998) que refletiram a correlação de forças
de seus respectivos momentos históricos, oscilando entre conquistas e perdas de
direitos pela população.
Dando um salto
histórico, se faz importante mencionar, que entre 1925 e 1952, o Equador sofreu
26 variações de governantes e
regimes.
Em 1972 ocorreu um golpe militar, ascendendo o
nacionalista Rodríguez Lara, que na
contramão dos outros regimes do Cone Sul, não implantou um plano sistemático de
terror, sendo ambíguo, por um lado fechando o parlamento, decretando estado de
sítio, prendendo opositores e jornalistas e reprimindo protestos, e por outro
sendo acusado de comunista pelas elites, em razão de medidas controversas, como
o início de uma reforma agrária, concessão de crédito a pequenos produtores
rurais, e a estatização de 51% da Texaco, gigante americana do petróleo, tendo
que recuar dessa medida diante da pressão que ela causou.
A ditadura entra
num segundo momento em 1976 com a derrubada de Rodríguez Lara pelas Forças
Armadas, entrando um Triunvirato em
seu lugar, que derrogou todas as suas medidas reformistas, paralisando a
reforma agrária, garantindo aos latifundiários a inviolabilidade da propriedade
privada de suas terras, acentuando a dependência diante das empresas
petroleiras norte americanas, desvalorizando a moeda e congelando salários. Havendo
nesse contexto, um empobrecimento da população, que foi às ruas, sendo
duramente reprimida.
Em 1978 a ditadura
convocou eleições, assumindo em 1979 Jaime
Roldós Aguilera, que propunha a formação de um bloco continental
democrático contra às ditaduras latino americanas e o compromisso do Estado com
a defesa e a promoção dos Direitos Humanos, infelizmente, veio a falecer em
1981 em um acidente de avião, gerando dúvidas que pairam até hoje sobre a
possibilidade de um atentado.
Num espírito de
anseio por mudanças reais nos rumos do país, a população apoiou a Frente de
Reconstrução Nacional, elegendo León
Febres-Cordero, com uma plataforma que prometia pão, teto e emprego. Logo
que chegou ao poder, aplicou medidas neoliberais que empobreciam a população,
iniciando um ciclo vicioso de estelionato eleitoral, onde se elegia alguém com
o apoio popular, com uma plataforma contrária ao neoliberalismo, mas que
chegando ao poder, capitulava ao FMI e suas exigências de privatizações e
austeridade.
O governo de
Febres-Cordero, eleito democraticamente, instaurou um plano sistemático de repressão digno de uma ditadura, promovendo a
violação de direitos humanos, por meio da tortura, desaparecimentos forçados,
execuções extrajudiciais, e repressão violenta aos protestos populares,
possibilitando o surgimento da guerrilha ¡Alfaro
Vive, Carajo! (AVC), usando a existência da guerrilha no país, para prender
e torturar opositores políticos, havendo o registro de 126 homicídios pelas
forças do Estado, 240 torturados, 200 incomunicados, 500 privações arbitrárias
e 7 desaparecidos.
Ainda durante o
mandato de Febres-Cordero, o Equador se alinhou incondicionalmente aos EUA no
plano internacional, se aproximou das ditaduras de Chile e Guatemala, e se
recusou a assinar uma declaração contra o racismo na África do Sul. O saldo
econômico de sua gestão é uma inflação de 58%, desemprego urbano de 28%,
aumento de 260% da gasolina e baixa de 14,8% nos salários.
Em 1988 a oposição
venceu as eleições com a Esquerda Democrática por meio de Rodrigo Borja, que
seguiu com as medidas neoliberais, iniciadas no Triunvirato.
O LEVANTE INDÍGENA DE 1990
Para compreender o
momento atual, é necessário voltar ao levante de 1990, que marca a entrada dos
povos originários pela primeira vez no jogo político como uma força a ser
considerada.
Os povos
originários são 7% da população
equatoriana, formando um belo mosaico de 14 povos: kíchwa, shuar, achuar,
zápara, andoa, shiwiar, epera, chachi, cofán, secoya, siona, awá, tsáchila e
huaorani.
Nos movimentos
anteriores o protagonismo das ruas estava presente nos movimentos sindical e
estudantil, mas em maio de 1990 os índios haviam tomados às ruas de Quito,
feito barricadas e fechado estradas, após inúmeras tentativas frustradas de
diálogo com o presidente Borja.
A Confederação das Nacionalidades Indígenas
do Equador (CONAIE) estava à frente dos protestos. Criada em 1972, era
fortemente enraizada nos territórios indígenas por meio de um sólido trabalho
de base feito junto às populações locais, e por meio de sua mobilização havia
paralisado toda a região central do país.
O objetivo
principal das manifestações era a busca de uma solução definitiva para os
conflitos fundiários que existiam no país, essa questão era uma demanda que
data desde a colonização, quando os povos originários haviam sido despojados de
suas terras pelos europeus.
Estima-se que mais
de um milhão de indígenas tenham tomado às ruas, e com o avanço dos protestos,
as exigências da CONAIE também avançavam, sendo sintetizadas numa carta chamada
Os 16 Pontos, que denunciavam as
políticas adotadas pelo governo e ao mesmo tempo apresentavam soluções, havia
um nítido viés étnico no levante, que clamava pelo reconhecimento da
plurinacionalidade, o repúdio ao racismo, acesso aos serviços públicos e compensações
sociais ao campesinato.
E apesar da questão
étnica estar em evidência nesse cenário, jamais houve um abandono por parte da
CONAIE das pautas classistas, que perpassavam as demandas dos povos
originários, alcançando questões que afetavam toda população.
Após 9 dias
seguidos de protestos por todo o país, o presidente aceitou sentar para
conversar, após a exigência de distensão por parte do movimento, que acatou na
esperança de assim ver suas exigências serem atendidas, o que não ocorreu.
O maior ganho do Levante Indígena de 1990, foi a
inserção do movimento indígena como um ator político importante que teve
protagonismo na luta política contra a onda neoliberal da década de 90,
conseguindo barrar muitas medidas em alianças com o movimento sindical e
estudantil.
UM MOVIMENTO QUE VIROU UM PARTIDO – O PACHAKUTIK
A CONAIE e os
movimentos sociais, resolvem por ingressar na política institucional criando um
partido em 1996, o Movimento de Unidade
Plurinacional Pachakutik (MUPP), um partido com a cara do movimento
indígena, conseguindo de início 10% das cadeiras do Congresso Nacional,
emplacando também alguns candidatos regionais.
Em 1998 houve a
última Assembleia Constituinte do século XX no Equador, inovando ao reconhecer
uma série de direitos sociais, coletivos e dos povos originários, mas também
possibilitando brechas para a ocorrência de manobras pró mercado.
Entre 1996 e 2007 o
Equador teve 7 presidentes, em meio a crises econômicas e políticas que levaram
à dolarização da moeda em 2000,
fazendo com que o país perdesse a sua capacidade de emitir o próprio dinheiro.
Tadeu Breda
menciona o seguinte sobre a dinâmica política equatoriana:
“O sociólogo León Zamosc escreve que, com o passar dos anos e
dos presidentes, a situação se transformava num círculo vicioso. A conjuntura
econômica e a pressão do FMI faziam com que o governo recorresse às reformas
neoliberais, vistas como única opção para o crescimento. Os custos do ajuste
estrutural recaíam sobre os setores populares e, ao invés de melhorar a situação
dos equatorianos, pioravam a vida das pessoas. A penúria econômica se
acentuava. Os cidadãos, então, perdiam a crença no Estado e nos políticos. A
democracia entrava numa crise de representação e legitimação. O resultado era o
protesto: nas ruas, derrubam-se presidentes; nas urnas, o poder é entregue a
candidatos que traficam com a esperança popular: se elegem prometendo uma coisa
e governam de maneira totalmente diferente. Voltavam, portanto, a tentar
implementar o neoliberalismo no país e tudo começava de novo.”[5]
Ao
compararmos essa análise com o levante mais recente, verificamos que esse ciclo
vicioso, não terminou, e o que vemos é mais um capítulo dessa história que
segue se repetindo.
Nesse
cenário repetitivo, o CONAIE e os movimentos sociais equatorianos, apoiaram a
candidatura de Lúcio Gutierrez em
2002, chegando a ocupar cargos no governo, para logo em seguida cair na mesma
armadilha, rompendo com o presidente, depois de apoiar abertamente algumas
medidas controversas, perdendo assim, parte de seu capital político nessa
aposta equivocada, entrando para o imaginário do povo, como mais um partido
como qualquer outro.
A REVOLUÇÃO CIDADÃ
É
impossível falar da Revolução Cidadã sem mencionar Rafael Correa, que é considerado o seu protagonista.
Rafael
Vicente Correa Delgado, é um economista formado na Universidade Católica de
Guayquil, que presidiu o Equador entre 2007 e 2017, conseguiu conquistar o
eleitorado transmitindo uma imagem de inteligente e honesto, o primeiro por ter
feito mestrado na Bélgica, doutorado nos EUA e dar aula em uma das
universidades privadas mais conceituadas do país, e o segundo por não ser um
político de carreira que se apresentou como um outsider disposto a peitar o
sistema, lançando um novo partido, o Aliança
País (Pátria Altiva e Soberana), sem apresentar nenhuma candidatura para o
Congresso, sua principal proposta era a convocação de uma Assembleia
Constituinte, sendo fortemente apoiado pelos movimentos sociais, indígena e
pela esquerda.
Em
2008 uma nova Carta Magna veio à luz, considera uma das constituições mais
avançadas do mundo, consagrando uma série de valores indígenas, como o respeito
à natureza como sujeito de direitos, o bem viver e o respeito à
plurinacionalidade e a autonomia dos povos originários sobre os seus territórios.
A
lua de mel do movimento indígena com Correa durou pouco, já no segundo ano
iniciaram os desencantos, quando Correa começou a sinalizar que entre preservar
os direitos da natureza e explorar petróleo e minérios, optaria pelo segundo,
desrespeitando a constituição e os princípios do bem viver inscritos nela,
sendo a Lei de Mineração de 2009, o marco dessa divergência irreconciliável.
O
Parque Nacional Yasuní ITT é um símbolo das contradições da revolução cidadã,
se trata de uma área com mais de 1 milhão de hectares, sendo um dos locais com
maior biodiversidade no planeta, com o título de patrimônio da biosfera da
UNESCO. Só há um pequeno problema, na verdade um problema enorme, estima-se que
no solo desse parque existam 850 milhões de barris de petróleo, que dariam uma
sobrevida ao extrativismo, aumentando às reservas petrolíferas em 20%, mas para
que toda essa “riqueza” seja explorada, a riqueza que existe no parque teria
que ser destruída.
Ciente
do que essa escolha significa, diante das experiências anteriores com a
exploração de petróleo no Equador, tendo a localidade de Shushufindi como
exemplo material dos danos ambientais e sociais causados pela exploração
petrolífera, se apresentou como alternativa o pagamento de 3 bilhões de dólares
por parte da comunidade internacional ao Equador no prazo de 10 anos, como uma
compensação ao país para que o parque permanecesse intocado, infelizmente nem
10% desse valor foi levantado, e contrariando a constituição e os preceitos do
Sumak Kawsay expressos nela, Correia tencionou para a aprovação da Lei de
Mineração, perdendo o apoio do movimento indígena e de Alberto Acosta, seu
ex-ministro de Minas e Energia e Presidente da Assembleia Constituinte.
O
pensamento de Correia sobre essa questão pode ser resumido na sua seguinte
fala:
“A riqueza mineral neste país é
imensa, supera os 200 bilhões de dólares. Vamos deixar tudo isso intocado em
nome de que não se derrube uma árvore ou um pássaro? – perguntou-se o
presidente numa de suas defesas à mineração. – Destruir a selva pode ser
imoral, mas ainda mais imoral é renunciar aos recursos que podem tirar o país
do subdesenvolvimento, que podem eliminar a miséria e a pobreza de nossa
pátria.”[6]
É
um fato inegável que a chegada de Correia ao poder foi um marco histórico
inédito na política equatoriana, que trouxe muitos avanços e conquistas
sociais, principalmente por ele não ter dado um giro neoliberal como boa parte
de seus antecessores, proporcionando um momento raro de estabilidade política,
num país que teve 11 presidentes desde 1979 e uma sequência de embates
políticos de resistência ao neoliberalismo.
Mas
nem tudo são rosas... Segundo o Karla Calapaqui em seu livro Criminalización de la protesta, 2007-2015
: las víctimas del correismo, houve mais de 90 casos de criminalização de
protestos, com mais de 800 pessoas envolvidas e ao menos três pessoas mortas
pelas mãos de agentes do Estado. Assim como mudanças constitucionais no final
de 2015, que restringiam os mecanismos de consulta popular, atribuíam tarefas
de segurança interna às Forças Armadas; definiam a comunicação como um serviço
público, a fim de que o Estado pudesse controlá-la; retirada de direitos dos
servidores públicos; reeleição indefinida; repasse de competências dos governos
municipais ao governo central (centralização); e redução da função
fiscalizadora da Controladoria, entre outras mudanças.
Imerso
em contradições, Correa conseguiu eleger o seu sucessor em 2017, numa eleição
polarizada, Lenín Moreno venceu com 51,16%[7]
dos votos com a promessa de continuar com os avanços da Revolução Cidadã
iniciada dez anos antes, mas apenas três meses depois de eleito, Moreno começou
a dar sinais de que as coisas não seriam bem assim, havendo um rompimento entre
ele o seu antecessor e padrinho político, que se converteu em inimigo.
Moreno
iniciou uma aproximação com os EUA, se distanciou da Venezuela e recentemente
entregou Julian Assange, que estava asilado na Embaixada do Equador em Londres
desde 2012.
O LEVANTE INDÍGENA DE 2019
Embora
respeitado e considerado um ator importante da política equatoriana, o
movimento indígena havia perdido parte de seu capital político e capacidade de
mobilização desde o apoio equivocado ao governo de Lucio Gutierrez, que caiu no
ciclo vicioso do giro neoliberal que tem sido tão característico na história
política do país.
Com
ascensão de Correa e os logros da Revolução Cidadã, parte dos movimentos
sociais, da sociedade e até mesmo uma minoria do movimento indígena foi
convertida ao correísmo, que não foi tímido em usar o poder do Estado para
reprimir dissidentes e o lastro político conquistado para tomar medidas que iam
na contramão da própria constituição oriunda desse processo.
Se
por um lado Correa não deu o tradicional giro neoliberal enquanto esteve no
poder, indicou um sucessor que o fez sem nenhum pudor ou compromisso com o fato
de ter sido vice de Correa.
O
Decreto 883 foi a medida mais escancarada da tentativa de retorno do Equador ao
Consenso de Washington, sendo mais um capítulo dessa longa história que vem se
repetindo ao longo das décadas.
Com
ele veio um conjunto de medidas, chamadas de “paquetazo”, com intuito de
atender às exigências do Fundo Monetário Internacional (FMI), para obter um
empréstimo na ordem dos 4,2 bilhões de dólares.
Dentre
às medidas propostas, estavam corte de até 20% nos salários de servidores com
contrato temporário, redução das férias de 30 para 15 dias, o pagamento de um
dia de salário mensal por parte dos funcionários públicos para o Estado, mas a
medida mais polêmica foi o fim dos subsídios aos combustíveis fosseis, que
existem há 40 anos, causando um aumento imediato no preço da gasolina e do
diesel, e um efeito cascata no preço de outros produtos.
No
dia 2 de Outubro se iniciaram os protestos, com a paralização do setor de
transportes, que parou o país, sendo logo em seguida acompanhada pelos
movimentos estudantil e pelo poderoso movimento indígena, que logo se tornou o
protagonista dos protestos, por meio de uma marcha de 10 mil pessoas rumo à
Quito.
Lenín
Moreno respondeu de forma violenta, declarando Estado de Exceção por 60 dias,
medida que possibilita a criação de zonas de segurança, mais autonomia na
mobilização das forças de segurança, decretação de toques de recolher e até
mesmo censura à imprensa.
A
imprensa local e internacional tratou inicialmente o ocorrido como algo
irrelevante, apenas como um protesto em razão da retirada do subsídio aos
combustíveis, ignorando todo o histórico de resistência do Equador ao
neoliberalismo. Moreno mudou a sede do governo para Guayaquil, a segunda maior
cidade do país, adotou uma retórica belicosa que somente acirrou os ânimos, acusou
Maduro e Correa de estarem atuando para desestabilizar o seu governo, sendo
apoiado pelo Brasil e mais seis países da América Latina.
Houve
enfrentamento entre às forças do Estado e os manifestantes, ficando um saldo
lamentável de 8 pessoas mortas, 1.192 detidos e 1.340 feridos, segundo a
Defensoria do Povo do Equador, que prepara uma comissão para averiguar às
violações aos Direitos Humanos ocorridas durante os 11 dias de protestos que
tomaram conta do país, e um informe detalhado para ser entregue aos órgãos
equatorianos e internacionais.
A
CONAIE voltou às ruas com a força que tinha nos anos 90, pela primeira vez
desde a Revolução Cidadã, tendo assumido um lugar de destaque nos protestos,
que foram vitoriosos com a capitulação de Moreno, se comprometendo a revogar às
medidas do paquetazo no dia 14 de Outubro.
Nem
mesmo toda violência empregada, o silêncio e a conivência da mídia, o apoio do
FMI, EUA, Brasil e Argentina foram capazes de frear esse recente levante no
Equador, que mais uma vez ao longo de sua história, assume a vanguarda da luta
contra o neoliberalismo na América Latina.
Impressionou
a força e o fôlego do movimento indígena equatoriano e o seu retorno às ruas
como protagonista. Correa que se encontra exilado na Bélgica, sem poder voltar
ao Equador em razão de uma avalanche de processos judiciais que enfrenta, se
manifestou diversas vezes pelas redes sociais em apoio aos protestos e
criticando Moreno e suas medidas, sugerindo inclusive a antecipação das
eleições, como é permitido na constituição equatoriana, no que foi rechaçado
pelo movimento indígena, que o taxou de oportunista por tentar capitalizar em
proveito próprio o levante popular.
Esse
momento nos traz importantes reflexões e aprendizados, sobre o caminho a ser
tomado na luta contra o neoliberalismo e as ingerências do capital
internacional na América Latina, o Equador nos demonstrou o caminho a ser
trilhado, o de que não há salvação na institucionalidade estabelecida, e de que
apenas a força das ruas e a fúria incontida das massas populares em toda a sua
diversidade vai ser capaz de parar esse rolo compressor que avança sobre a
humanidade e o planeta, o Estado burguês infelizmente só recua diante do medo
iminente de sua desintegração, e se preciso for, dá o braço para não perder o
controle do corpo, fazendo as concessões imediatas que forem necessárias para
estancar a revolta popular, enquanto se reorganiza na surdina preparando o
próximo ataque.
Curiosamente
Alberto Acosta e John Cajas Guijarro haviam falado de forma quase que profética
sobre a possibilidade de um levante como o ocorrido, ao questionar o aspecto
revolucionário com base na ausência de mudanças estruturais da Revolução
Cidadã:
Além disso, soa paradoxal, mas
é justamente a ausência de uma verdadeira revolução o principal motivo para
que, a médio prazo, o país entre em colapso — caso não haja mudanças
estruturais urgentes.[8]
Podemos
concluir que o dilema equatoriano é o dilema da humanidade e dos rumos que ela
pretende seguir, de modo que, para além do aspecto geográfico, a linha que
divide o Equador é a linha que divide o mundo e o seu futuro, de um lado temos
um projeto sistemático e bem traçado de destruição e espoliação do planeta e das
classes sociais oprimidas, do outro, a construção de outro mundo, enraizado em
outros valores e princípios que necessariamente passa pelo respeito à natureza
como fonte primordial de toda a vida, pela construção de uma sociedade com
forte referencial no sumak kawsay
(Bem Viver), pela regeneração do planeta e o respeito às diferentes formas de
se vivenciar a experiência humana por meio das culturas, cosmovisões e
realidades.
Comemoremos
a vitória do Equador! Mas não esqueçamos jamais, que embora uma batalha tenha
sido vencida, a guerra ainda está em curso e nós nem mesmo começamos a travar a
nossa batalha por aqui.
SUGESTÕES
LIVROS:
O
Equador é Verde
Download gratuito:
O
Eclipse do Progressismo
Download
gratuito:
A
História da Onda Progressista Sul Americana
REDES SOCIAIS:
CONAIE
TeleSur
VÍDEOS:
O
Equador RESISTE e você pode ajudar!
O
que está acontecendo no Equador?
Dictaduras Latinoamericanas: Ecuador
[1]
Contador
Poblacional (https://www.ecuadorencifras.gob.ec/estadisticas/) (em espanhol).
Instituto Nacional de Estadística y Censos (INEC). Consultado em 13 de outubro
de 2019
[2] http://latinoamericana.wiki.br/verbetes/a/abya-yala
[3] Francisco Pizarro foi um conquistador
e explorador espanhol que entrou para a história como "o conquistador do
Peru", tendo submetido o Império Inca ao poderio espanhol.
[4]
https://www.cancilleria.gob.ec/constituciones-del-ecuador-desde-1830-hasta-2008/
[5]BREDA,
Tadeu; O Equador é Verde – Rafael Correa e os paradigmas do desenvolvimentismo,
Editora Elefante, São Paulo. Brasil. Pág 218
[6]
Idem. Pág. 275
[8]Vários
autores. O Eclipse do Progressismo: A esquerda latino-americana em debate,
Editora Elefante, São Paulo. Brasil. 2018. Pág 155.
Juan Ricthelly