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A
apuração das bestialidades perpetradas pela ditadura de 1964/1985
contra os que exerceram o direito milenar de resistência à tirania e
punição dos agentes do Estado responsáveis por tais crimes contra a
humanidade vinha sendo negligenciadas desde 1985 pelo Estado brasileiro,
na contramão das recomendações da ONU para países que se
redemocratizam.
No final de agosto de 2007, a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos
do Ministério da Justiça encerrou seu trabalho de apurar as
circunstâncias da morte de militantes durante o regime militar e
indenizar as famílias das vítimas cujas mortes haviam sido oficializadas
e daquelas cujos restos mortais evaporaram, pois, como sabemos, tudo que é sólido desmancha no ar...
Reuniu, então, o que apurara num livro-relatório intitulado Direito à Memória e à Verdade. Aí o Alto Comando do Exército lançou uma nota oficial de protesto contra a iniciativa.
E, ao invés de exonerar imediatamente os responsáveis por insubmissão e
quebra da cadeia de comando, o presidente da República e comandante
supremo das Forças Armadas, Lula, recuou de forma humilhante: ordenou a
seus ministros Tarso Genro (Justiça) e Paulo Vannuchi (Direitos Humanos)
que não tentassem mais levantar o assunto na esfera do Executivo,
apontando aos insatisfeitos com a impunidade dos carrascos o caminho do
Judiciário.
Recomendou que fossem esquecidos os ressentimentos do passado e, isto
sim, homenageados os militantes que haviam lutado contra o estado de
exceção.
Depois, em abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal tomou uma das
decisões mais escabrosas de sua história, ao considerar válida a
auto-anistia que os assassinos e torturadores do regime se outorgaram no
ano de 1979, em plena vigência da ditadura, uma espécie de habeas corpus preventivo,
com a complacência de um Congresso Nacional intimidado e coagido (a
aceitação da barganha tinha como contrapartida a libertação de presos
políticos e a permissão de volta de exilados).
Fechadas as portas do Executivo e do Judiciário, uma última esperança de
ainda vermos os Ustras e Curiós responderem criminalmente por seus
feitos surgiu sete meses depois, com a sentença da Corte Interamericana
de Direitos Humanos, vinculada à OEA:
"Os crimes de desaparecimento forçado, de execução sumária extrajudicial e de tortura perpetrados sistematicamente pelo Estado para reprimir a Guerrilha do Araguaia são exemplos acabados de crime de lesa-humanidade. Como tal merecem tratamento diferenciado, isto é, seu julgamento não pode ser obstado pelo decurso do tempo, como a prescrição, ou por dispositivos normativos de anistia".
Se o Estado brasileiro aceitasse o que é praticamente uma obviedade no
Direito Internacional --a de que leis de anistia não têm força legal
para impedirem o julgamento de assassinatos e torturas perpetrados por
ditaduras--, como poderia sustentar posição diferente com relação aos
demais assassinatos e torturas cometidos pela repressão política do
regime militar?
Logo em seguida houve a troca de governo e, empossada Dilma, as
entidades e os militantes dedicados à defesa dos direitos humanos
passaram a cobrar-lhe, com insistência cada vez maior, o cumprimento da
sentença da Corte Interamericana.
Até que, no final de 2011, ela definiu suas linhas de ação: ignorar
olimpicamente a sentença da OEA e instituir a Comissão Nacional da
Verdade, bem na linha do que Lula pregara: ao invés de mexer em
vespeiros, multiplicar os elogios e homenagens. Me engana que eu gosto.
Percebendo o que estava para vir, ainda tentei salvar algo do incêndio,
propondo meu nome como (anti)candidato a membro da CNV
--alternativamente, indiquei o do companheiro Ivan Seixas, um dos
principais responsáveis pelas investigações das ossadas de Perus. Pois
duvidava de que os habituais e doutos integrantes de comissões desse
tipo fossem suficientemente combativos para arrancar a verdade dos que
ainda redobravam esforços para mantê-la oculta.
Dilma, tendo colocado o trem nos trilhos, estava com pressa em fazer com
que a criação da CNV fosse aprovada pelo Congresso Nacional e cumprisse
sua serventia: a de ser o fato novo que definitivamente ofuscaria a
sentença da Corte Interamericana.
Então, aceitou a chantagem da bancada evangélica na Câmara Federal, que
só admitiu apoiar a iniciativa do governo se este se comprometesse a não
indicar, para membro da CNV, nenhum veterano da luta armada. A alegação
foi a de que seria uma medida de reciprocidade, pois os militares
também não integrariam o colegiado.
Tratou-se de uma estridente bofetada na cara de todos nós. Pois, quando
ficou evidente para os defensores da ditadura militar que eles jamais
conseguiriam convencer a opinião pública de que as atrocidades não
haviam ocorrido, passaram a alegar que nós, os resistentes, também
possuíamos esqueletos no armário, portanto os excessos teriam sido
cometidos pelos dois lados.
Ou seja, pretenderam dar a alguns episódios isolados o mesmo peso da prática generalizada da tortura como uma não admitida mas inequívoca política de Estado durante o regime dos generais (além dos assassinatos,
que viraram norma a partir de 1971 e durante 1972, aumentando em muito
quando as organizações guerrilheiras estavam fragilizadas, nos
estertores, pois a intenção era mesmo não deixar vivos os militantes
mais determinados).
Dilma, uma ex-guerrilheira, na prática coonestou a tese das viúvas da ditadura, igualando-nos aos nossos carrascos. Ficou muito claro para mim que, retórica política à parte, ela já deixara Wanda para trás há muito tempo. Estava noutra.
Levando em conta tudo que pessoas do seu círculo de relacionamentos já
revelaram em entrevistas e escritos sobre o comportamento dela, fiquei
com a impressão de que Dilma ainda não tenha superado os rancores de
1969, o ressentimento contra os militaristas.
Quando de sua primeira campanha presidencial, visitou a cidade onde mora
o Darcy Rodrigues, companheiro de armas e de militância do Lamarca, a
quem não via há quatro décadas. A única coisa que encontrou para lhe
dizer foi: "Puxa, como você está velho e acabado!".
Espirituoso, Darcy rebateu: "É por isto mesmo que estou aqui. Vim pedir o
telefone da esteticista que consegue te manter com aparência de jovem".
Quanto a mim, sofro encarniçada perseguição e abuso de poder por parte
da Advocacia Geral da União, que há quase nove anos usa todo seu arsenal
de filigranas jurídicas para impedir que eu receba uma indenização
retroativa que o ministro da Justiça me concedeu no final de 2005.
A lei respectiva determinava o apagamento desses atrasados no prazo de
dois meses. Depois de um ano sem receber satisfação nenhuma, em
fevereiro de 2007 chegou-me uma mensagem do Ministério do Planejamento
propondo que aderisse voluntariamente a um pagamento parcelado que se
prolongaria até dezembro de 2014.
Já entrara com mandado de segurança para que fosse cumprida a lei e
decidi seguir em frente, pois meu direito não caíra do céu nem dependera
da vontade da Corte: tive sangue derramado, minha vida foi quase
tirada, sofri uma lesão permanente, enfrentei enormes dificuldades na
minha vida pessoal e profissional, vi morrerem os companheiros mais
estimados. Ceder seria desmerecer tudo que sofri.
A AGU, incapaz de encontrar qualquer justificativa para o não
cumprimento de uma lei que o Governo preferiria não tentar revogar, vem
há muito esgrimindo embargos e recursos para retardar seus efeitos. No
Superior Tribnal de Justiça, venci o julgamento do mérito da questão por
8x0 e o de dois embargos de declaração por 7x0 e 8x0. Agora, um recurso
extraordinário encontra-se para ser julgado no STF, com alegações
praticamente idênticas às que o STJ desconsiderou.
Se houvesse me sujeitado a tomar uma decisão financeiramente
desvantajosa e moralmente humilhante, o débito teria sido zerado em
dezembro de 2014. A pendenga agora se evidencia claramente como
retaliação pura e simples, produzindo uma desigualdade inaceitável entre
os anistiados que aceitaram voluntariamente o plano de pagamentos da União e os que ousaram exigir o cumprimento estrito da lei.
Mas, por que conto tudo isto aqui? Porque companheiros já intercederam
por mim junto à Dilma e mesmo eu, em atenção à iniciativa solidária que
tomaram, engoli meu orgulho e mandei uma mensagem à presidente. A
resposta a todos foi de que não lhe cabia intervir num assunto que
estava na alçada do Judiciário.
Respondemos, claro, que o obstáculo era a determinação da AGU em evitar o
cumprimento do que a lei estabeleceu e o julgamento do mérito da
questão confirmou. Bastaria a AGU abrir mão de suas medidas
protelatórias e tudo se resolveria de imediato.
Um porta-voz, em nome de Dilma, praticamente repetiu, palavra por
palavra, a mensagem anterior, como se a afirmação já não tivesse sido
cabalmente desmentida. É o que ela sempre faz quando fica sem argumentos, fingir que não ouviu o que o outro lado declarou.
Sou um militante à moda antiga, mágoas pessoais não interferem em meus posicionamentos políticos.
Mas, também não vejo motivo nenhum para, contrariando avaliações
racionais, conceder tratamento diferenciado a Dilma. Ajo em consonância
com o que ela é hoje, personagem da política oficial. Nada mais. (continua)