Quarta, 18
de junho de 2014
Do IHU
Instituto Humanitas Unisinos
O Ministério Público do Trabalho (MPT) denunciou o grupo empresarial
Odebrecht por,
segundo o órgão, manter 500 trabalhadores brasileiros em condições análogas à
escravidão na construção de uma usina em Angola.
A reportagem é de
João Fellet, publicada pela BBC Brasil, 18-06-2014.
De acordo com a ação, iniciada após uma reportagem da BBC Brasil revelar denúncias de maus
tratos na obra, a construtora teria praticado ainda tráfico de pessoas no
transporte de operários até a usina Biocom, na província de Malanje.
A denúncia, entregue na sexta-feira à Justiça do Trabalho
de Araraquara (SP) pelo procurador Rafael
de Araújo Gomes, pede que a Odebrecht pague uma indenização de R$ 500 milhões por
danos coletivos aos trabalhadores. O procurador notificou a Polícia Federal e o
Ministério Público Federal para que dirigentes da empresa e de suas
subcontratadas respondam criminalmente.
A Odebrecht
disse à BBC Brasil que só
pronunciaria sobre o caso após ser notificada judicialmente. Normalmente, a
notificação judicial ocorre alguns dias úteis após o Ministério Público
protocolar a ação. Mas, com as interrupções de serviços públicos ocorridas por
conta dos jogos da Copa do Mundo, esse prazo pode vir a ser ampliado.
Três empresas do grupo Odebrecht são rés na ação, que tem 178 páginas e
envolveu extensa investigação: a Construtora
Norberto Odebrecht (CNO), a Olex Importação e Exportação e a Odebrecht Agroindustrial (antiga
ETH Bioenergia).
Passaportes retidos
Em dezembro de 2013, a BBC
Brasil publicou uma reportagem em que operários diziam ter sido
submetidos a maus tratos na construção da usina Biocom, entre 2011 e 2012. Dezenas de fotos e vídeos
cedidos à reportagem mostravam o que seriam péssimas condições de higiene no
alojamento e refeitório usados pelos trabalhadores.
Os trabalhadores afirmaram ainda que funcionários que
trabalhavam na segurança da empresa impediam que eles deixassem o alojamento e
que tinham seus passaportes retidos por superiores após o desembarque em
Angola. De acordo com os operários, muitos adoeciam – alguns gravemente – em
consequência das más condições, e pediam para voltar ao Brasil. Alguns dizem
ter esperado semanas até conseguir embarcar.
Segundo a ação do Ministério Público do Trabalho, braço do
Ministério Público da União, "os trabalhadores, centenas deles, foram
submetidos a condições degradantes de trabalho, incompatíveis com a dignidade
humana, e tiveram sua liberdade cerceada, sendo podados em seu direito de ir e
vir".
Os funcionários, diz a denúncia, "foram tratados como
escravos modernos, com o agravante de tal violência ter sido cometida enquanto
se encontravam isolados em país estrangeiro distante, sem qualquer capacidade
de resistência".
Após voltar ao Brasil, dezenas de operários entraram na
Justiça contra a Odebrecht
e suas subcontratadas na obra. A Justiça tem reconhecido que eles foram
submetidos a condições degradantes e ordenado que sejam indenizados.
O MPT
diz que, embora os trabalhadores não fossem empregados da Odebrecht, mas de empresas
subcontratadas pela construtora – entre as quais a Planusi, a W Líder e a
Pirâmide –, a responsabilidade pelas condições na obra era inteiramente da Odebrecht, conforme definido nos
contratos entre as companhias.
Tráfico de pessoas
A denúncia lista uma série de ilegalidades que, segundo o MPT, teriam sido cometidas pela Odebrecht no envio dos
trabalhadores a Angola. De acordo com o órgão, as empresas subordinadas à
companhia recorreram a agenciadores ilegais ("gatos") para recrutar
operários em diferentes regiões do país, especialmente no Nordeste. A prática,
diz a denúncia, constitui crime de aliciamento.
Após o recrutamento, segundo a denúncia, ocorria outra
irregularidade: em vez de solicitar à embaixada de Angola vistos de trabalho
aos operários, a Odebrecht
pedia vistos ordinários, que não dão o direito de trabalhar.
Para obter os vistos, segundo o MPT, a Odebrecht "desavergonhadamente
mentiu à embaixada de Angola", dizendo que os operários viajariam ao país
para "tratar de negócios" e permaneceriam ali menos de 30 dias
(limite de estadia do visto ordinário). No entanto, diz a Procuradoria, as
passagens aéreas compradas pela Odebrecht
previam a volta dos trabalhadores em prazos bem superiores a 30 dias.
Segundo o MPT,
a empresa recorreu ao esquema para "contar com trabalhadores precários e
inteiramente submetidos a seu jugo, incapazes de reagir ou de reclamar das
condições suportadas, impossibilitados de procurar outro emprego, e que sequer
pudessem sair do canteiro de obras". A prática, segundo o MPT, sujeitou os trabalhadores a
graves riscos em Angola, inclusive o de prisão, e violou tratados
internacionais contra o tráfico humano.
Ratificado pelo Brasil em 2004, o Protocolo de Palermo engloba, entre
as definições para a atividade de tráfico, o recrutamento e transporte de
pessoas mediante fraude ou engano para fins de exploração em "práticas
similares à escravatura".
Dinheiro público
Segundo a investigação do MPT, contratos celebrados entre
a Odebrecht e suas
subordinadas na obra mencionam que haveria empréstimos do BNDES (Banco Nacional do
Desenvolvimento Econômico e Social) à construção. O BNDES, porém, disse à BBC Brasil
que jamais financiou a obra.
Em junho de 2012, o Ministério do Desenvolvimento e
Comércio Exterior decretou sigilo sobre todas as operações de crédito do BNDES
a Angola e Cuba. Entre 2006 e 2012, quando os dados ainda eram públicos, o BNDES destinou US$ 3,2 bilhões (R$
7,2 bilhões) a obras de empresas brasileiras em Angola. A Odebrecht, maior
construtora brasileira e maior empregadora privada de Angola, onde opera desde
1984, abocanhou a metade desses financiamentos.
'Círculo íntimo'
Primeira indústria de açúcar, eletricidade e etanol de
Angola, a Biocom é
uma sociedade entre a Odebrecht,
a estatal angolana Sonangol
e a empresa Cochan.
Segundo o jornal português Público, o dono da Cochan é o general angolano Leopoldino Fragoso do Nascimento,
um dos homens mais próximos do presidente angolano, José Eduardo dos Santos, no poder
desde 1979.
A usina, que custou cerca de R$ 1 bilhão, deve ser
inaugurada até o fim deste ano. Embora a Biocom tenha sócios angolanos, o MPT diz que, desde 2012, a Odebrecht tornou-se sócia
majoritária da usina e "passou a administrá-la como dona". Segundo o
órgão, ao se associar à Cochan, a Odebrecht
buscou contemplar o "círculo íntimo" do presidente angolano no
empreendimento e mascarar que a usina, anunciada à população local como
angolana, é na verdade brasileira.
Como punição pelos atos, a Procuradoria pede que a Odebrecht seja multada caso
mantenha práticas ilícitas, indenize os trabalhadores afetados em R$ 500
milhões e deixe de receber empréstimos de bancos públicos. A ação pede ainda
que a companhia pague multa no valor de 0,1% a 20% do seu faturamento anual.
Segundo o MPT,
o caso requer "uma punição absolutamente exemplar", para que a
companhia não se sinta encorajada "a repetir as mesmas condutas no
futuro".