Da Tribuna da Imprensa
Por Igor Mendes
A 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro proibiu-me de
participar de debate que ocorrerá no próximo mês de outubro na Universidade
Federal de Pernambuco, com o tema “Situação política atual e os movimentos
sociais”. Seria no mínimo inusitado pensar que alguém disposto a fugir
requeresse autorização judicial para viajar. Não quero, entretanto, entrar no
aspecto jurídico da decisão, que aliás está fundada em motivos que nada têm a
ver com o Código de Processo Penal. Leiam vocês mesmos:
“Indefiro o requerimento formulado na petição (...) em
virtude do réu IGOR MENDES DA SILVA não ter demonstrado que a palestra que
ministrará na UFPE sobre a ‘situação política atual e as perspectivas dos movimentos
sociais’ seja efetivamente ‘imprescindível à sua evolução acadêmica e
profissional’, (...) urgindo salientar que o referido acusado é ‘estudante do
curso de graduação em Geografia’ e que o tema sequer é afeito à área de
Geografia". (Grifos meus).
O indeferimento funda-se, como se vê, numa análise
“acadêmica” sobre o que é ou não relevante para a minha formação profissional,
e com isso me agride duplamente, como militante e como geógrafo.
Eu sou réu no já (tristemente) famoso processo dos 23, que
acusa de associação criminosa armada um heterogêneo grupo de ativistas
políticos que teve a “audácia” de divulgar e participar de manifestações
públicas durante a Copa da FIFA. Após ter revogada minha primeira ordem de
prisão preventiva, fui proibido, pelo TJRJ, de frequentar manifestações, e o
fato de ter supostamente violado tal medida cautelar ensejou novo decreto
prisional contra mim, me levando a sofrer sete meses de encarceramento numa
penitenciária de segurança máxima em Bangu. Decisão recentemente derrubada pelo
STJ, juntamente com a famigerada restrição, por ser esta notoriamente
inconstitucional. Levo toda a minha vida na militância política, movido pela
necessidade de fazer algo contra as injustiças que castigam nosso País e nosso
Povo, e lá pelos oito ou nove anos de idade já participava do grêmio da minha
escola municipal (com muito orgulho!).
Contudo, ainda que eu não tivesse tal trajetória e os
percalços pelos quais passei, sou um ser humano, intrinsecamente político
portanto, o que já é credencial suficiente para que participe de uma discussão
sobre movimentos populares, expondo e também ouvindo novas experiências. O que
é sim fundamental para a minha formação em todos os sentidos, inclusive
acadêmica. Ademais, o direito de livre-expressão é, ao menos em tese,
assegurado a todos os brasileiros pela Constituição em vigor.
Geografia não tem nada a ver com movimentos sociais?!
A Geografia participa do tronco comum das ciências sociais,
porque claro, o espaço geográfico nada mais é que o grande palco onde as
sociedades humanas travam suas disputas, suas lutas, transformam à natureza e a
si próprias num permanente processo de contradições, construções, rupturas e
revoluções. Livros como “A geografia da fome”, de Josué de Castro, são mesmo indispensáveis
para entendermos o Brasil e sua gente, para não falar na imorredoura obra do
professor Milton Santos, perseguido pelo regime militar fascista, para o qual “a
Geografia brasileira seria outra se todos os brasileiros fossem verdadeiros
cidadãos”. O mestre Ruy Moreira, com quem tive o privilégio de ter aulas no
início da minha graduação na UFF, cunhou a já clássica, e combativa frase, “A
geografia serve para desvendar as máscaras sociais”.
Dizer que a Geografia nada tem a ver com os movimentos
sociais é decretar a sua morte. Ou o retorno aos tempos obscuros em que ela
tinha por função mascarar os conflitos sociais, através da descrição
aparentemente desinteressada da paisagem –uma paisagem homogênea, sem
conflitos, ela própria desinteressada. Essa foi a “Geografia” predominante sob
o regime militar, naturalmente. Não por acaso, com o ascenso do movimento
democrático-popular em finais dos anos de 1970, foi desalojada, abrindo espaço
para a fecunda Geografia crítica brasileira, que é reconhecidamente das
melhores escolas do mundo.
A arbitrariedade está sempre fundada na ignorância, é
inimiga declarada do conhecimento e da ciência, porque afinal o arbítrio não
precisa da discussão e do convencimento –as suas armas são outras. Felizmente
não pode uma disciplina sofrer mandados de prisão preventiva...