Fernanda Cruz - Repórter da Agência Brasil
Moradores se revezam na limpeza de áreas comuns: banheiros
e lavanderias são compartilhados
Até o fim deste ano, 50 reintegrações de posse devem ser
cumpridas, no centro de São Paulo, com o despejo de 22 mil pessoas, segundo levantamento
do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos - organização não
governamental (ONG) voltada ao direito à moradia. A entidade trabalha por meio
de convênios com a Defensoria Pública e disponibiliza advogados para ajudar,
gratuitamente, os moradores de ocupações.
Advogado da ONG, Thiago Santos do Nascimento explica que
no pedido de reintegração de posse para imóveis ocupados há menos de um ano, o
juiz pode conceder liminar em 15 dias, apenas com a petição inicial. Thiago
critica o fato de que, muitas vezes, os ocupantes não são ouvidos e não podem
dizer, por exemplo, que utilizam o imóvel há mais de um ano – situação que
geraria um processo longo com audiências, sentença e apelação.
“O nosso Judiciário ainda trabalha com parâmetros muito
contratualistas. Eles ignoram a Constituição Federal, ignoram o Estatuto da
Cidade, ignoram todo o avanço legislativo que o mundo elogia que nós temos. Se
você vir as nossas leis fundiárias, elas são muito avançadas. Mas o Judiciário,
principalmente o paulista, tende a pegar só a questão do contrato, o Código
Civil e ignora todos os outros diplomas, a função social [do imóvel], que está
na Constituição Federal”, diz.
Além da falta de diálogo com o Judiciário, as famílias
ainda precisam enfrentar a força policial durante as reintegrações de posse.
A Agência Brasil
noticiou alguns casos recentes como o de Osasco,
quando moradores protestaram ateando fogo nas entradas da ocupação e em um
carro e fizeram barricadas. No Conjunto
Residencial Caraguatatuba, a Tropa de Choque da Polícia Militar lançou gás
de pimenta e bombas de efeito moral contra os moradores. Na desocupação de um
prédio na Rua
Coronel Xavier de Toledo, moradores foram levados para a delegacia, após a
intervenção da Tropa da Choque. Na ação mais violenta do ano passado, em um
edifício da Avenida
São João, os policiais usaram bombas de efeito moral e balas de borracha.
Mascarados se juntaram ao protesto e atiraram pedras contra os policiais. Houve
tumulto, saque a lojas e incêndio a ônibus.
Líder do Movimento de Moradia da Luta por Justiça, Ivanete
de Araújo critica as ações das forças policiais. “Os policiais não olham quem
está dentro do prédio, simplesmente nos tiram de forma agressiva, jogam bomba,
batem, jogam gás, bala de borracha. É dessa forma que eles agem contra as
famílias sem-teto. Eu me sinto bastante revoltada, até pelo fato de o próprio
governo tratar as famílias como lixo, como se fossem marginais”, relata.
Ivanete participa de movimentos por direito à moradia desde 1996 e diz que
perdeu as contas de quantas reintegrações violentas já enfrentou.
O advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos
também faz ressalvas às operações de reintegração e critica, principalmente, os
valores gastos pelo Estado.
“Quando você olha para os números, você vê que é algo
esquizofrênico, porque vai se gastar tranquilamente R$ 1 milhão numa operação
dessas. A PM vai com helicóptero, vai com cavalos, a Tropa de Choque, vai
deslocar o efetivo, granadas de gás, todo aquele aparato. Gasta nosso tempo e o
do Judiciário para reintegrar a posse de um proprietário que está devendo
milhões de reais de IPTU [Imposto Predial e Territorial Urbano] para a
prefeitura. Por que se faz isso? Não tem justificativa”, diz Nascimento.
A reportagem entrou em contato com a Polícia Militar, mas
não obteve resposta sobre as críticas às ações violentas.
A Agência Brasil
conversou com moradores de duas grandes ocupações urbanas na capital paulista.
Uma delas sujeita ao cumprimento de reintegração de posse ainda este mês. A
outra, com reintegração marcada para amanhã (9), obteve na Justiça o adiamento
da determinação. Dificuldades financeiras e a possibilidade de estar perto do
centro da cidade são alguns dos motivos que levam essas famílias a morarem em
ocupações. Elas não escondem, entretanto, a tensão e o medo de serem despejadas
a qualquer momento.
Um contraponto, na terceira parte da reportagem, mostra a
história de sucesso de um edifício que nasceu como ocupação e se transformou em
um caso raro de usucapião (o direito à posse de um imóvel pelo uso prolongado)
coletivo.