Terça, 8 de setembro de 2015
08/09/15 Por Lumi Zúnica, especial para a Ponte
Horário da chegada dos PMs da Rota ao local onde vítimas foram torturadas diverge de informação passada ao Disque Denúncia. Um dos torturados foi trancado em geladeira; outro recebeu choques no pênis
Na manhã de 24 de outubro de 2013, por volta das 9h, três policiais
militares da Rota invadiram um endereço no Jd. Bartira, periferia da
zona leste de São Paulo, a procura dos possíveis assassinos de um
delegado de polícia.
O caso ficou conhecido pela tortura praticada por militares da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) que aplicaram choques elétricos no pênis de um dos investigados, fato comprovado mediante laudo do IML (Instituto Médico Legal) e denunciado pela Ponte Jornalismo, em 28/07.
Agora, outro documento inédito compromete mais a legalidade da ação praticada pelos PMs da Rota.
Em depoimento prestado ao DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), da Polícia Civil,
os PMs da Rota relataram que a informação sobre os suspeitos e o local
onde eles estavam teria partido de uma denúncia anônima originada no
Disque Denúncia (181) e transmitida para a equipe policial, que chegou
ao local por volta das 9h.
A Ponte Jornalismo teve acesso ao documento da
Secretaria de Segurança Pública com o registro da denúncia anônima,
transmitindo a informação às 11h04 do dia 24, com uma observação da
Polícia Militar tomando ciência sobre a denúncia às 12:01:34.
Porém, segundo André Luiz Loureiro da Silva, proprietário do imóvel,
os policiais invadiram sua residência às 9h, permanecendo
aproximadamente até as 16h. William Silva Santiago, outra vítima da
ação, chegou na casa ao meio dia e os policiais já estava dentro do
imóvel.
Se foi a denúncia anônima a que levou os PMs da Rota até o endereço, surgem dúvidas ainda sem respostas:
Como os PMs da Rota chegaram à casa de André Luiz Loureiro da Silva
duas horas antes da Secretaria de Segurança Pública divulgar a denúncia
anônima e três horas antes da Polícia Militar tomar ciência da mesma?
E se não foi através da comunicação oficial, o que levou os policiais a invadir a residência?
As questões sem respostas abrira a possibilidade de a própria
“denúncia anônima” ter sido efetuada no intuito de dar cobertura legal a
ação dos policiais da Rota.
Questionada pela reportagem sobre a divergência sobre como a Rota
chegou ao local onde as vítimas foram torturadas, segundo a polícia, a
Secretaria de Segurança Pública limitou-se a informar, por meio de nota
oficial, que o caso é investigado tanto pelo DHPP quanto pela própria
PM.
Entenda o caso
Três homens torturados por policiais militares da Rota (Rondas
Ostensivas Tobias Aguiar) estão desaparecidos desde o ano passado. Um deles recebeu choques elétricos na coxa e no pênis e outro foi mantido preso dentro de uma geladeira. A sessão de tortura durou cerca de sete horas.
Antes do desaparecimento, os três chegaram a prestar depoimento à
Polícia Civil denunciando os militares. Laudo do IML (Instituto Médico
Legal), ao qual a reportagem teve acesso, comprovou a tortura.
O caso teve início manhã de 24 de outubro de 2013. Por volta das 9h,
três policiais militares da Rota foram ao Jardim Bartira, periferia da
zona leste de São Paulo, a procura dos assassinos de um delegado de
polícia.
Em uma casa do bairro, os policiais detiveram três pessoas: André Luis Loureiro da Silva, dono da residência, Marcos Vinicius dos Santos da Silva, amigo de André que estava hospedado havia alguns dias na casa, e William Silva Santiago, vizinho de André e portador de necessidades especiais.
Na sede do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa),
para onde os detidos foram levados na tarde daquele dia, a Polícia Civil
os confrontou com testemunhas do assassinato. Nenhum deles foi
reconhecido.
Antes de liberá-los, o delegado Charlie Wei Ming Wang, encarregado do
caso na época, suspeitou das escoriações e coloração avermelhada da
pele de Marcos. Wang requisitou, então, exame de corpo de delito.
No laudo, o legista escreveu: “Sim quanto a tortura”.
O médico Rodrigo Reis Donnangelo ainda descreveu as escoriações,
edemas e equimoses sofridas por Marcos, além das lesões decorrentes de
choque elétrico na região posterior da perna e no pênis.
Após o delegado tomar ciência do resultado, convocou os três a prestar novo depoimento em janeiro de 2014.
Polícia emite alerta geral para achar torturados por PMs da Rota
Invasão da residência
André, Marcos e William afirmaram ter mentido nas primeiras
declarações — em que relataram uma abordagem corriqueira da PM — por
medo de represálias dos militares.
Segundo André, os policiais forçaram a entrada na sua casa, o
abordaram na cozinha e levaram até o banheiro, obrigando-o a sentar no
vaso sanitário sobre as mãos. Marcos Vinicius estava no quarto e logo
foi rendido. Minutos mais tarde William, o portador de necessidades
especiais, chegou e também foi detido e conduzido até a cozinha.
André disse que, nas horas seguintes, os policiais se revezaram interrogando separadamente cada um dos três.
Relatou que os PMs queriam saber se o apelido de Marcos era Banzá e se ele teria participado do assassinato do delegado de polícia Antônio Cardoso de Sá, ocorrido dois dias antes durante o assalto a um bar na Vila Císper, zona leste de São Paulo. André negou.
Na cozinha, William também negou conhecer informações sobre a morte do policial.
Trancado na geladeira
Em depoimento, William disse que os PMs gritaram, mandando-o
confessar o crime contra o delegado. Em dado momento, um dos militares
teria berrado: “Vocês tem sorte que quem morreu foi civil, porque, se fosse um de nós, uns trinta iam morrer também!”
William afirmou ainda que os policiais mandaram retirar as bandejas
da geladeira e o trancaram dentro do equipamento doméstico, virando a
porta contra a parede para evitar que ele pudesse sair. O aparelho
permaneceu ligado.
André, que estava o banheiro, e William, na cozinha, afirmaram ter
ouvido gritos de dor de Marcos e as gargalhadas dos policiais ao mesmo
tempo em que percebiam oscilações na energia da casa. Até que houve um
estouro e a luz apagou.
Choque elétrico no pênis
Marcos afirmou, em depoimento, ter gritado por ter sido espancado. Os
militares, ainda segundo relato de Marcos, o deixaram de cueca e, após
arrancarem o fio elétrico de um aparelho de TV, colocaram uma
extremidade na tomada e passaram a aplicar choques elétricos na sua
genitália e nas coxas. Até o momento em que a energia da casa caiu.
Mais tarde, André verificaria que um dos disjuntores havia derretido
por causa da força das descargas, provocando a interrupção da
transmissão de eletricidade.
A tortura que começou por volta das 9h só terminou por volta das 16h.
PM promove suspeito de tortura
Após instaurar inquérito, a Polícia Civil procurou as vítimas por
diversas vezes para que elas pudessem ser ouvidas novamente, mas nenhuma
delas foi encontrada.
Em maio de 2014, o tenente que chefiou a operação foi promovido a capitão.
Laudo pioneiro
Arles Gonçalves Junior, presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil)-SP, acompanhou os depoimentos e disse ser esta a primeira vez que vê um laudo do IML registrar expressamente o termo “tortura”. Ele faz elogios ao legista.
“Atitudes como essa ajudam a combater esse tipo de crime”.
Ele ainda disse que, mesmo com as vítimas desaparecidas, foram
produzidas provas suficientes de tortura para que o Ministério Público
ofereça denúncia contra os PMs da Rota.
“A OAB-SP vai acompanhar o caso até o final para que situações como esta não fiquem impunes”, disse Gonçalves Junior.
Preocupado com a segurança das vítimas, Gonçalves Júnior afirmou as ter procurado pessoalmente — sem sucesso.
Dois PMs indiciados
A Secretaria da Segurança Pública informou, por meio de nota oficial,
que o caso esta sendo investigado nas esferas civil e militar.
Segundo o órgão, dois policiais foram indiciados, inclusive o tenente
que chefiou a operação. A Rota confirma a promoção do tenente para
capitão e esclarece que a promoção se deu por tempo de serviço. A nota
confirma que a Polícia Civil está a procura do paradeiro das vítimas.
A reportagem preservou o nome dos militares acusados porque o inquérito da polícia civil ainda não foi concluído.
Morte do delegado
O delegado da Polícia Civil António Cardoso de Sá, do 67º DP (Jardim
Robru), foi morto na noite de 22 de outubro de 2013, durante um assalto a
um bar. O assassinato foi esclarecido e o autor, Wallace de Paula
Silva, foi preso.