Sábado,
09 de Janeiro de 2016
Do
Correio da Cidadania
Escrito
por Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação
Com
cara de velho, começa o novo ano, com notícias pra lá de similares a janeiro de
2015: ministro ultraliberal na Fazenda e tarifaços pelo país. Pra não falar do
processo de impeachment e desdobramentos da Operação Lava Jato, que prometem
manter a letargia do país frente à crise geral de seu modelo de
desenvolvimento. Ainda assim, novas janelas sempre se abrem quando as
contradições se agudizam, como demonstra a juventude. Para tratar do que nos
espera em 2016, o Correio da Cidadania entrevistou Ruy Braga.
“Apesar
das ações de mudança na política econômica, com a nomeação de Nelson Barbosa
para o Ministério da Fazenda, é mais provável a continuidade da orientação
geral do segundo governo de Dilma: a de garantir a transição de um regime de
acumulação apoiado fundamentalmente na superexploração do trabalho assalariado
para aquilo que podemos chamar de regime de acumulação apoiado centralmente em
estratégias de espoliação social. Em suma, significa retrocesso nos direitos
trabalhistas e sociais”, apontou o sociólogo do trabalho como “solução da
crise”.
Quanto
à instabilidade político-institucional, prejudicial ao grosso da população
independentemente de quem seja o governante de turno, Ruy Braga prevê uma boa
possibilidade de respiro ao governo, diante de toda a falta de credibilidade do
protagonista do processo de impeachment.
“Mesmo
eu que sempre sustentei uma postura de oposição de esquerda a Dilma e anulei
meu voto no segundo turno das últimas eleições presidenciais devo admitir que
não há a menor comparação entre as duas figuras. Um governo PSDB-PMDB seria um
desastre enorme para os trabalhadores, ainda pior do que o governo de Dilma. E,
como não seria um governo capaz de trazer de volta o clima de pacificação
social da era Lula, não serviria tampouco para muitos setores burgueses que
dependem dos mercados internos. Ou seja, com Cunha não há solução. Por isso,
parece-me que o processo de impeachment, basicamente, está fadado ao fracasso.
O fato de tal processo fracassar fortalece o polo vencedor, que é o do governo
federal”, pontuou.
No
entanto, Ruy Braga é enfático em afirmar que o modelo que consagrou as gestões
petistas acabou e não poderá ser reproduzido, o que põe em xeque o próprio
lulismo e sua estratégia de conciliação virtuosa de interesses opostos.
“Nesses
momentos de contração cíclica, a política e suas decisões tendem a alargar os
espaços para a espoliação social: dos direitos sociais, dos salários, do tempo
de trabalho das pessoas, dos recursos naturais, espoliação de tudo aquilo que é
público e que estava até então à margem, ou relativamente fora, do modelo de
exploração anterior. Minha previsão é que iremos assistir a um aprofundamento
da mercantilização do trabalho, do dinheiro e do meio ambiente em uma escala
ainda maior do que nos últimos 14 anos. Não há dúvida de que precisamos de uma
alternativa radicalmente diferente do que está aí”, disse o sociólogo,
explicando o novo modelo de desenvolvimento, ou acumulação, posto em marcha já
em 2015.
E
já que, em sua visão, não se pode esperar mais nada das “encasteladas” direções
dos movimentos, sindicatos e lideranças de sustentação do consenso recente,
resta apostar naquilo que surge descolado de velhos grupos e aparatos. “Eu
deposito todas as minhas fichas e esperança nos setores jovens, nos filhos da
classe trabalhadora que hoje estão nas escolas, no ensino no médio, naqueles
estudantes que inundaram o mercado de trabalho no último período, nos jovens
que estão à procura do primeiro emprego e nos setores mais atingidos pelo
subemprego. E tais segmentos coincidem com os setores jovens, negros e
femininos da classe trabalhadora brasileira. Uma saída politicamente
progressista para a crise brasileira passa necessariamente pela mobilização
desse jovem precariado urbano”, apontou.
A
entrevista completa com Ruy Braga pode ser lida a seguir.
Correio
da Cidadania: Após um ano que parece não ter existido na vida útil do país,
2016 começa sob o mesmo clima de pessimismo de 2015, inclusive no que se refere
à depressão econômica. O que você espera deste ano que recém-começa?
Ruy
Braga: Apesar das ações de mudança na política econômica, com a nomeação de
Nelson Barbosa para o Ministério da Fazenda, é mais provável a continuidade da
orientação geral do segundo governo de Dilma: a de garantir a transição de um
regime de acumulação apoiado fundamentalmente na superexploração do trabalho
assalariado para aquilo que podemos chamar de regime de acumulação apoiado
centralmente em estratégias de espoliação social. Em suma, significa retrocesso
nos direitos trabalhistas e sociais. Fala-se em nova rodada de reforma da
Previdência, mudança na idade de aposentadoria, diminuição de determinados
direitos constitucionais, em especial aqueles vinculados à obrigatoriedade de
investimentos públicos em áreas sociais, aprofundamento da orientação rentista,
estruturada sobretudo no mundo das finanças e suas chantagens etc.
Do
ponto de vista da estrutura social, não vejo até o momento delinear-se uma
alternativa progressista no interior do governo que privilegie os interesses
dos trabalhadores. O mais provável é o aprofundamento dessa estratégia de
espoliação social a fim de garantir os lucros dos capitalistas.
Por
outro lado, a crise política entra num momento de stand by, mas com evidente
distensão, levando-se em conta que a grande chantagem que marcou o ano 2015,
isto é, a ameaça do impeachment, deixou de existir com o início do processo na
Câmara. Aos meus olhos, isso coloca o governo numa posição um pouco melhor,
pois ele irá se reorganizar em torno de uma causa politicamente legítima, isto
é, a reação a uma tentativa de golpe parlamentar “paraguaio” implementada por
um presidente da Câmara que é, notoriamente, um político corrupto.
Significa
que haverá, na minha opinião, uma reorganização das forças governistas em torno
do poder da presidência da República em defesa de seu mandato. Isso tende a
atrair setores que estavam se desgarrando do governo ou em flagrante crise com
o governo. Muitos militantes socialistas serão novamente atraídos para o polo
da legalidade. Assim, a posição governista sairá fortalecida do processo de
impeachment.
Portanto,
diria que 2016 será um ano diferente de 2015. O governo federal deverá retomar
alguma capacidade de iniciativa na cena política. Ou seja, será um governo mais
ativo do que foi ano passado. No entanto, do ponto de vista econômico, a
tendência é que se consolide um regime de acumulação via espoliação, totalmente
deletério do ponto de vista dos trabalhadores.
Correio
da Cidadania: Quanto ao processo de impeachment de Dilma, vimos que continua o
vai e vem, isto é, altas tensões em revezamento com aparentes apaziguamentos.
Além disso, a possível queda de Eduardo Cunha foi empurrada para fevereiro, o
que talvez sugira uma dinâmica parecida de alianças e rupturas entre os grupos políticos
dominantes. O que espera de todo esse tabuleiro de peças em movimento? Acredita
num grande acordo nacional em prol da estabilidade, nos moldes propostos pelo
cientista político André Singer, conforme artigo publicado recentemente?
Ruy
Braga: Diria o mesmo que Florestan Fernandes: o pacto conservador brasileiro é
implacável. Numa conjuntura política marcada especialmente pela polaridade
Dilma-Cunha, temos uma comparação grotesca. Eduardo Cunha não se configura como
alternativa de absolutamente nada. A tendência é vermos a presidência sair
fortalecida.
Mesmo
eu que sempre sustentei uma postura de oposição de esquerda a Dilma e anulei
meu voto no segundo turno das últimas eleições presidenciais devo admitir que
não há a menor comparação entre as duas figuras. Um governo PSDB-PMDB seria um
desastre enorme para os trabalhadores, ainda pior do que o governo de Dilma. E,
como não seria um governo capaz de trazer de volta o clima de pacificação
social da era Lula, não serviria tampouco para muitos setores burgueses que
dependem dos mercados internos. Ou seja, com Cunha não há solução. Por isso,
parece-me que o processo de impeachment, basicamente, está fadado ao fracasso.
O fato de tal processo fracassar, fortalece o polo vencedor, que é o do governo
federal.
Nesse
sentido, 2016, provavelmente, será um ano marcado pela retomada de uma certa
capacidade de ação política do governo. Esse é meu principal prognóstico. Será
um ano marcado pela tentativa do governo de retomar alguma margem de ação
política. E provavelmente Cunha cairá nos próximos meses, pela situação
absolutamente grotesca de se ter um comprovado corrupto à frente da Câmara
federal.
Correio
da Cidadania: O ministro Joaquim Levy, após o desgastante ajuste fiscal, acaba
de deixar o governo, sendo substituído por Nelson Barbosa. Porém, pelo que você
disse no início, não se pode esperar uma orientação macroeconômica
relevantemente distinta para 2016.
Ruy
Braga: Não, porque basicamente não foi construído projeto alternativo. O que
temos hoje é o esgotamento cabal do modelo de desenvolvimento apoiado em um
certo ritmo de acumulação dos motores
tradicionais da economia brasileira, como a produção de commodities, os
investimentos da construção pesada, a expansão do agronegócio, os investimentos
na área de energia e petróleo, e principalmente, o consumo popular, com acesso
de uma massa crescente da população ao crédito, o que provocou um aumento
exponencial no endividamento das famílias, agora em índices recordes no país.
Essa
fórmula não vai se repetir nos próximos 10 anos. Não há, adiante, no cenário
internacional, uma perspectiva de retomada na China, na Índia, mesmo em países
da Europa. Ao contrário, a desaceleração chinesa é ainda pior do que se
imaginava ano passado. A retomada norte-americana é importante, mas ainda muito
modesta. Além disso, o desempenho econômico dos Estados Unidos está muito
ligado ao crescimento chinês... Isso tudo faz com que, muito provavelmente, o
mercado mundial no próximo período cresça a taxas muito moderadas, diferentemente
dos últimos 14 anos.
Naturalmente,
a economia brasileira, que se especializou em exportar commodities, fica numa
situação delicada. Por outro lado, a estrutura social brasileira está marcada
por uma enorme sobre-capacidade produtiva. Os principais setores da economia
têm muito estoque e muita capacidade ociosa. Os empresários olham para suas
empresas e perguntam: “por que vou investir se dentro da minha própria fábrica
tenho uma enorme capacidade ociosa que não é efetivamente absorvida pela demanda?”
Trata-se de uma questão clássica para o marxismo: o problema da contração
cíclica.
As
famílias estão endividadas, precisam se preocupar em primeiro lugar com a
realidade mais incerta do mercado de trabalho e o aumento do desemprego e do
subemprego, que significa fundamentalmente a compressão de sua renda. As
famílias quando estão muito endividadas adotam outras estratégias. Não estão
consumindo, estão pagando suas dívidas como podem. Ou seja, elas estão vivendo
da mão pra boca. Os únicos setores que de fato não foram, até o momento, ao
menos atingidos pela queda de consumo são os bens de subsistência mais
elementares. Isso tudo faz com que o modelo lulista – o regime de acumulação do
último período – tenha se esgotado. E não há nada no lugar, nada esboçado, não
há uma alternativa crível ao colapso do atual modelo.
É
importante entender que o capitalismo funciona assim: quando se tem momentos da
economia marcados por expansão, tem-se alguma margem de manobra em termos de
concessões, em especial, concessões trabalhistas, direitos sociais...
Normalmente, tais períodos de expansão são apoiados – não exclusivamente, mas
principalmente – sobre os setores assalariados da classe trabalhadora, isto é,
sobre a exploração do trabalho assalariado. No caso de uma estrutura social
semiperiférica e tardia como a brasileira, sobre a exploração do trabalho
assalariado barato, eu acrescentaria.
Momentos
de contração cíclica, como o que vivemos hoje, impõem uma série de desafios que
tendem a fazer com que as empresas dependam cada dia mais daquilo que eu, nas
trilhas de Rosa Luxemburgo, chamaria de “acumulação política de capital”. Ou
seja, dependem da violência política dos governos. Inclusive dependem de que
ele desloque suas estratégias de acumulação para aquilo que é, exatamente, a
espoliação das concessões feitas no momento anterior, isto é, durante a
expansão do ciclo econômico. Se no período anterior houve aumento da massa
salarial, agora teremos um ataque à massa salarial. Se no período anterior
observou-se algum avanço, mesmo moderado, em termos de direitos, na sequência
eles serão atacados etc.
Nesses
momentos de contração cíclica, a política e suas decisões tendem a alargar os
espaços para a espoliação social: dos direitos sociais, dos salários, do tempo
de trabalho das pessoas, dos recursos naturais, espoliação de tudo aquilo que é
público e que estava até então à margem, ou relativamente fora, do modelo de
exploração anterior.
Minha
previsão é que iremos assistir a um aprofundamento da mercantilização do trabalho,
do dinheiro e do meio ambiente em uma escala ainda maior do que nos últimos 14
anos. Em suma, teremos pela frente, ainda que sob diferentes roupagens, uma
intensificação dos ataques aos interesses dos trabalhadores. Do ponto de vista
dos direitos, do assalariamento ou do emprego. A tendência é que se aprofunde a
degradação das condições de trabalho, com a diminuição do emprego, aumento do
subemprego, diminuição dos salários...
Não
podemos esquecer que o último período foi marcado, apesar de todas as
dificuldades, por um aumento real da massa salarial. Ela cresceu, o que
significa que há mais renda nas famílias trabalhadoras. Isso já está sendo
atacado. O aumento do desemprego é o jeito mais típico de disciplinar a classe
trabalhadora e aprofundar as condições de exploração. Não há dúvida.
E
não há plano B. Não existe uma guinada generalizada na direção de outra
alternativa econômica, com investimento massificado em setores
capital-intensivos etc. No máximo, vamos exportar mais carros por conta do novo
patamar do dólar. Mas, como algo alternativo, não há nada inovador no
horizonte. A única coisa que está no horizonte é atacar os pequenos e moderados
ganhos da classe trabalhadora no período anterior para se tentar um processo
mais acentuado de acumulação.
A
esquerda socialista precisa entender que no capitalismo desenvolvimento
significa acumulação, isto é, aprofundamento da exploração. De novo:
desenvolvimento = acumulação. E acumulação implica bases sociais, implica
práticas econômicas e implica formas de intervenção na vida política. Pra
garantir a acumulação crescente, será preciso atacar os trabalhadores. Não há
alternativa, não há mediação possível na atual situação. Se os setores
governistas esperam por uma reedição da arbitragem lulista entre as classes,
vão ter que esperar sentados.
Correio
da Cidadania: Em entrevista ao Correio concedida em março de 2015, você dizia
que o esfacelamento do modelo econômico poderia paralelamente levar o chamado
“lulismo” junto. Como enxerga esse processo histórico recente diante do novo
ano?
Ruy
Braga: Na minha opinião, acabou o lulismo porque acabou o consenso. O lulismo
foi basicamente uma estratégia de política de pacificação social, apoiada em
dois tipos de consentimento, distintos, porém, complementares: um mais passivo,
das massas, que aderem ao governo seduzidas pela relativa desconcentração de
renda entre os segmentos do mundo do trabalho, aumento da formalização no
mercado de trabalho, o crédito popular e políticas públicas importantes que
tiraram milhões de trabalhadores da miséria. Houve uma pequena margem de
concessão aos trabalhadores, e agora ela está sendo atacada. Por outro lado,
houve um consentimento ativo das direções dos movimentos sociais do país
formados desde a redemocratização, época que marcou o surgimento de dois
grandes movimentos, o sindical, hegemonizado pela CUT, e o MST. As lideranças
dos anos 1980 e 1990 foram seduzidas pelos milhares de cargos no aparelho de
Estado e pela possibilidade de enriquecimento proporcionadas pelas posições nos
conselhos gestores dos fundos de pensão.
Em
suma, ambos, e de resto a maior parte dos movimentos, foram seduzidos pelo
governo federal, o que significa uma pacificação do polo de resistência a
certas políticas, inclusive algumas antipopulares, ao longo dos últimos 12
anos. O atual momento significa que o lulismo como estratégia de pacificação
social acabou, porque não há consenso capaz de garantir a reprodução das bases
sociais dessa estratégia de pacificação. Do ponto de vista das massas populares,
há um progressivo afastamento da orientação geral do governo. Do ponto de vista
das lideranças dos movimentos, existe um aprofundamento dessa crise, pois as
direções sentem-se desconfortáveis com os ataques do governo aos trabalhadores.
Há
uma crise de representação apoiada no aumento das tensões entre as direções dos
movimentos e o governo. Isso foi visível no último período, com críticas da CUT
ao Ministério da Fazenda e às políticas adotadas pelo Levy. Isso é normal e
confirma as características do poder sindical, que em algum nível precisa
oferecer contrapartidas às suas bases, já que trabalha sem a estabilidade da
forma de dominação apoiada na propriedade, algo tipicamente capitalista. Assim,
o poder sindical é mais permeável à pressão dos de baixo.
Portanto,
como não há consenso, não há lulismo, por assim dizer. O lulismo, como modo de
regulação do conflito Capital x Trabalho, esfacelou-se. E no seu lugar não
apareceu uma alternativa politicamente estável. Há uma grande confusão, não se
sabe efetivamente qual será o novo modo de regulação e se de fato existirá um
modo de regulação capaz de estabilizar o conflito Capital x Trabalho no país.
Penso que não. Creio que esse modo de regulação vai se nutrir do esfacelamento
do modo anterior.
Quer
dizer, a meu ver, por um lado, as classes populares continuarão bastante
afastadas do governo e, por outro, as bases governistas, principalmente o
movimento sindical, continuarão gravitando em torno do governo e estabelecendo
algum tipo de pressão. Uma parte dessas bases, sem dúvida, será atraída por
qualquer migalha que o governo oferecer, qualquer pequena concessão. E uma
parte, principalmente os setores do movimento social e sindical mais próximos
de suas bases, se sentirá progressivamente mais pressionada pelo ativismo
esporádico dos subalternos.
Parece-me
que hoje em dia não é possível mais falar em regulação no país, porque não se
tem as bases sociais capazes de garantir a estabilidade do modelo de
desenvolvimento e que, no fundamental, passa por concessões às massas. Temos
uma enorme confusão e um horizonte que, muito provavelmente, continuará marcado
por ataques aos direitos dos trabalhadores, que por sua vez tentarão defender
seus direitos.
A
polarização e o retorno da luta de classes ao país produzem a instabilidade. A
priori, não se sabe para onde vai dar o barco. E parece ser essa a grande marca
do momento presente: a incerteza, o aumento dos conflitos, a reprodução difícil
e problemática da legitimidade das direções dos movimentos sociais diante de
suas bases.
Correio
da Cidadania: O que achou das movimentações à esquerda do espectro político
neste 2015 e o que se poderia, ou deveria, esperar de grupos, movimentos e
partidos que ainda pretendem pautar outro projeto de país?
Ruy
Braga: O ano de 2015, do ponto de vista de tais mobilizações, foi marcado por
dois polos. Por um lado, aumento da escala e intensidade da mobilização dos
setores médios tradicionais, o que fez os setores populares viverem relativa
defensiva ao longo de todo o ano. E tal defensiva esteve marcada por uma
desorientação das direções tradicionais dos movimentos populares do Brasil, por
conta da inflexão reacionária e conservadora do governo Dilma, tendo à frente o
ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy. E agora, no último quarto de 2015, nós
vivemos uma relativa reorganização das forças de esquerda em torno da defesa da
legalidade, por conta do processo de impeachment estabelecido pelo presidente
da Câmara, o que garantiu certo fôlego ao governo.
Assim,
ao mesmo tempo, tem-se nas ruas a defesa do governo, dada a ausência de
alternativas críveis capazes de solucionar a crise, e por outro lado os setores
populares, movimentos sociais e sindicais na defensiva, se posicionando
criticamente contra as medidas de austeridade do governo federal e contra o
impeachment. No final do ano, vimos uma reaglutinação dos setores governistas
em defesa da legalidade, que evidentemente atraiu parte importante do movimento
crítico, inclusive da oposição de esquerda, frente à situação grotesca de se ter
um processo de impeachment estabelecido nesses moldes.
Pensando
nos movimentos sociais, foi algo mais pendular. Até setembro, relativa
defensiva com intensificação da crítica ao governo, e no final do ano aumento
da mobilização que desaguou na manifestação do dia 16 de dezembro, com relativo
sucesso, estruturada em torno da legalidade.
No
entanto, destaco que as condições socioeconômicas mais profundas, isto é,
desestruturação dos pilares do último período e o aumento do desemprego, têm
minado a força que a classe trabalhadora vinha acumulando até 2013. O sistema
de acompanhamento de greves do DIEESE acabou de divulgar os dados de 2013, que
são impressionantes: houve mais de 2 mil greves, com flagrante retomada da
atividade grevista em todo o país, principalmente nos setores privados e
empresariais, também com participação dos funcionários públicos e forte
presença de setores-chaves da economia brasileira, como metalúrgicos e
petroleiros. Isso fez com que se acumulasse forças em termos de massa salarial e
poder político.
Mas
a partir de 2014, com a deterioração do mercado de trabalho e aumento
importante do desemprego em 2015, a tendência é a erosão de parte dessa força
acumulada e enfraquecimento de tal capacidade de mobilização. Portanto, me
parece que essa guinada mais à esquerda dos movimentos, em especial sindical,
está relativamente dissociada do processo de erosão da força social da classe
trabalhadora quando se pensa nas condições gerais do poder popular.
O
cenário é bastante contraditório. Penso que teremos um período marcado por
certa defensiva das classes trabalhadoras por conta do aumento do desemprego,
mas uma retomada da capacidade de organização dos setores governistas em torno
da presidência da República. Por outro lado, entendo que, tendo em vista a
deterioração econômica, os setores mais explorados e mais dominados deverão ter
um certo papel protagonista na luta política futura, superior ao momento
anterior. Em suma, acho que os setores da classe trabalhadora sindicalmente
organizados recuarão, comparativamente falando, e os movimentos sociais como o
MTST avançarão relativamente.
Correio
da Cidadania: É possível pautar outro modelo ao lado de setores governistas ou
só o rompimento total com o lulismo e o petismo pode criar credibilidade
suficiente na população para esta finalidade?
Ruy
Braga: Não há dúvida de que precisamos de uma alternativa radicalmente
diferente do que está aí. Isso porque o lulismo como modo de regulação acabou e
como regime de acumulação colapsou, pois não há espaço no horizonte para se
aumentarem as concessões aos trabalhadores, e sim o contrário, um ataque cada
vez mais profundo aos trabalhadores. As forças governistas são incapazes de
imaginar uma alternativa porque estão encasteladas no Estado e farão de tudo para
garantir essa posição privilegiada, inclusive contra os interesses dos
trabalhadores.
Parece
que os setores de oposição à esquerda do governo, a despeito de terem assistido
um relativo fortalecimento no último período, ainda são demasiadamente frágeis
pra apresentar uma proposta crível. No entanto, é a única alternativa possível
no médio prazo: apostar nos setores de esquerda intransigentes ao governo
federal e na conformação de um polo alternativo à dualidade entre PT x PSDB que
se estabeleceu nos últimos 25 anos. É a minha aposta.
Não
há alternativa possível dentro do governismo. Terá de ser construída fora do
governismo, naquilo que eu chamaria de terceiro campo, capaz de organizar a
luta de classes no país de maneira progressista para os trabalhadores. Acredito
que o próximo período será marcado por agudas lutas de classes: política,
econômica, cultural e ideologicamente.
Portanto,
não há mais espaço para as mediações construídas pelo lulismo, com seus campos
intermediários e hibridismos políticos. Não há mais tal espaço. O que existe,
na verdade, é a necessidade de uma atitude mais radical. Nesse sentido, os
setores da chamada “extrema esquerda” têm um amplo campo pra trabalhar. Resta
saber se serão capazes de organizar a indignação que cresce no interior das
classes trabalhadoras e subalternas no país.
Correio
da Cidadania: Lava Jato, crise na Petrobrás, tragédia da Samarco, desemprego em
alta, crises hídricas e energéticas cada vez mais à espreita, ataques à
educação pública, um cotidiano barbaramente militarizado... Para onde parece
rumar o Brasil?
Ruy
Braga: Eu deposito todas as minhas fichas e esperança nos setores jovens, nos
filhos da classe trabalhadora que hoje estão nas escolas, no ensino no médio,
naqueles estudantes que inundaram o mercado de trabalho no último período, nos
jovens que estão à procura do primeiro emprego e nos setores mais atingidos
pelo subemprego. Aquilo que tem a ver, basicamente, com setores da classe
trabalhadora que vivem entre esses dois polos: de um lado, o aprofundamento da
exploração econômica e de outro a possibilidade real de exclusão social. E tais
segmentos coincidem com os setores jovens, negros e femininos da classe
trabalhadora brasileira, que têm mostrado uma enorme capacidade de
automobilização. Vimos isso nitidamente em junho de 2013, estamos vendo hoje
com o aumento da mobilização dos estudantes do ensino médio público e a onda de
ocupação de escolas em São Paulo, em Goiás etc.
O
grande desafio para uma saída progressista da crise brasileira passa
necessariamente pela construção de pontes entre esses setores jovens e
automobilizados, que têm muita vitalidade combativa, e também foram melhor
formados, pois têm mais escolaridade que a geração anterior. E, ao mesmo tempo,
se veem imersos em condições muito ruins de contratação, renda, trabalho,
experimentando na pele as contradições do modelo de desenvolvimento brasileiro,
cuja capacidade expansiva se esgotou. Uma saída politicamente progressista para
a crise brasileira passa necessariamente pela mobilização desse jovem
precariado urbano.
O
desafio é esse: articular os setores combativos que encarnam a agenda da defesa
dos direitos sociais, da saúde, da educação, do transporte público de
qualidade, da renda, do mercado de trabalho formal, dos direitos
previdenciários. Essa geração é quem encarna tais condições, ao lado de setores
mais desorganizados da classe trabalhadora. O grande desafio é como politizar a
luta toda, que evidentemente é política, como toda luta social, mas também no
sentido de se construírem projetos alternativos ao que, fundamentalmente, vimos
até hoje. Ou seja, um projeto alternativo ao lulismo.
Nesse
sentido, a despeito de 2015 ter sido péssimo em termos econômicos, de
desemprego, de crise hídrica, com essa enorme tragédia da mineradora (que
mostra o significado da acumulação por espoliação do meio ambiente), e que
terminou simbolicamente com o incêndio no Museu da Língua Portuguesa, enfim, um
ano completamente terrível para as classes populares brasileiras, também
assistimos a emergência política de uma geração que vai dar o que falar. E
aposto minhas fichas exatamente nessa nova geração.
Valéria
Nader é economista e editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é
jornalista
A publicação deste
texto é livre, desde que citada a fonte e o endereço eletrônico da página do
Correio da Cidadania