Terça, 12 de janeiro de 2016
Por Luiz
Arnaldo Campos
Em Santa Elena de Uairén, cidade venezuelana fronteiriça com
a brasileira Pacaraima, no estado de Roraima, é possível fazer câmbio negro
abertamente. Em média um real vale 150 bolívares e um dólar entre 700 a 800
bolívares. Como a cédula venezuelana de maior valor é a de 100 bolívares o
resultado são pacotes de notas a serem transportados por quem compra o dinheiro
venezuelano.
Se esta é uma cena emblemática da crise econômica atravessada
pela República Bolivariana a outra, sem dúvida, são as filas de gente pobre nas
primeiras horas da manhã esperando para comprar gêneros e artigos de primeira
necessidade com preços subsidiados. Em Caracas, num supermercado privado, um
cartaz informa a quantidade de produtos “sensíveis” (entre eles farinha, leite
in natura, arroz, azeite, papel higiênico etc.) que podem ser comprados
semanalmente por cada consumidor mediante a apresentação da carteira de
identidade no caixa. Como uma espécie de rodízio, na segunda-feira podem
comprar os produtos racionados os portadores de carteiras terminadas no número
1 e 2 e assim sucessivamente pelos dias da semana. O quadro se completa com os
reclamos da inflação galopante e da criação de uma espécie de sobrevivência através
da especulação. Muita gente desempregada na fila dos armazéns estatais vai
comprar a preço baixo produtos que logo estará vendendo no mercado negro com
valores majorados em mais de 100%.
A crise econômica está instalada na Venezuela e o presidente
Maduro até agora não conseguiu convencer a maioria do povo trabalhador da culpa
da grande burguesia por este desastre. Para o senso comum é incompreensível que
um governo que controla a compra e venda de dólares e dirige plenamente a PDVSA
(a companhia estatal de petróleo) responsável por mais de 90% das receitas
econômicas do país, não seja responsabilizado pela carestia e a piora das
condições de vida da maior parte da população. Claro que tudo é mais complexo.
Grandes importadoras compram dólar barato no câmbio oficial sob a desculpa de
importar alimentos e desviam parte do dinheiro para o câmbio paralelo onde
obtêm lucros espetaculares e a desaparição de produtos das prateleiras – como o
sumiço dos refrigerantes na época natalina – parece claramente uma manobra de
grandes distribuidoras para indispor a população contra o governo.
Porém, por debaixo das aparências se esconde o fato
inconteste: o país está sem divisas e com o petróleo a quarenta dólares o
barril não existe muita perspectiva para recompô-las. Até mesmo setores do
chavismo admitem que a corrupção na máquina governamental responde pela
desaparição de milhões de dólares que afetaram a reserva nacional, porém para
além dos chamamentos a retificações devidas no processo revolucionário fica a
pergunta: existe uma saída possível e imediata para a crise econômica?
A oposição martela todos os dias que com o chavismo no poder
a situação vai transitar do ruim para o pior e nisto aposta as suas fichas,
muita embora esteja dividida entre aqueles que querem fazer o chavismo sangrar
e decorridos três anos (metade) do governo Maduro tentar reunir as assinaturas
de cidadãos suficientes para convocar o revocatório (uma eleição prevista pela
Constituição Bolivariana, onde a população pode revogar o mandato do presidente
e convocar novas eleições) e outros setores que, entrincheirados na Assembleia
Nacional, buscam choques frontais com a presidência.
O governo por sua vez só aponta para alternativas de médio e
longo prazo, como um maior controle da moeda, combate à corrupção e construção
de uma base produtiva mais ampla do que a extração do petróleo. Parece pouco,
até mesmo porque como optou por não reduzir os investimentos sociais – a Missão
Vivenda acabou de entregar sua milionésima casa de, no mínimo, 82 metros quadrados
e completamente mobiliada, o metrô de Caracas continua com sua passagem
custando incríveis quatro bolívares (para efeito de comparação um cafezinho
custa cinquenta bolívares) e modernos ônibus chineses, confortáveis, com
ar-condicionado e preço subsidiado, se incorporaram à paisagem urbana de todas
as cidades – a inflação não dá tréguas. Como não tem recursos para sustentar os
gastos sociais o governo imprime dinheiro e com isso a inflação dispara.
No fundo a questão é política. No Chile de Allende, mesmo
com o desabastecimento bem mais cruel do que o vivido pelos venezuelanos, a
Unidade Popular venceu as últimas eleições parlamentares que disputou
aumentando sua presença no Parlamento, fato decisivo para a direita optar pelo
golpe. Na Venezuela, o resultado do último pleito foi muito duro para os
bolivarianos. A oposição elegeu 2/3 das cadeiras e conquistou maioria absoluta.
Porém, estes dados precisam ser esmiuçados. Na prática, a direita ampliou em
apenas 300 mil votos a sua votação histórica. Na abstenção e no voto nulo –
visto como o chamado “voto de castigo” de chavistas desiludidos ou apreensivos
– construiu sua maioria acachapante. A batalha pelos corações e mentes dos
venezuelanos está a pleno vapor. No último dia 05 de janeiro, com a posse dos
deputados eleitos foi dada a largada da etapa atual. Nem mesmo tinham
esquentado suas cadeiras, a Mesa Diretora da Assembleia Nacional ordenou a
retirada do prédio dos retratos de Chávez e dos quadros de Bolívar feitos
durante o período chavista, empossou três deputados do estado de Amazonas, cuja
eleição está sob judice pelo Tribunal Superior Eleitoral, e apresentou o
projeto de uma Lei de Anistia com o objetivo de libertar os opositores presos
acusados de incitação e participação em atos violentos destinados a questionar
a vitória de Maduro quando se elegeu presidente do país.
O contra-ataque veio rápido. Maduro solicitou a Justiça a
não validação dos atos da Assembleia, por causa da incorporação dos três
deputados questionados judicialmente, as Forças Armadas realizaram atos de
desagravo à figura de Bolívar e o ex-presidente da Assembleia Nacional,
Diosdado Cabello aventou a possibilidade de mesmo que seja aprovada a chamada
Lei de Anistia, ela não seja cumprida.
Na televisão, Maduro convocou o povo chavista a ir buscar
aqueles que ficaram em casa nas últimas eleições e chamou para este mês de
janeiro a realização de um Congresso da Pátria destinado a retificar o processo
revolucionário, ouvindo todas as vozes de todos os lutadores sociais. E nisto
parece residir o “X” da questão. Nenhum país da América Latina onde se elegeram
presidentes na onda antineoliberal avançou tanto no empoderamento popular
quanto a Venezuela. A instalação do poder comunal em diversas administrações
locais, rádios e TVs comunitárias, círculos bolivarianos, centenas de
iniciativas de formação, organização e participação foram estimuladas e
desenvolvidas em dezessete anos de revolução bolivariana, porém, não são poucas
as críticas ao verticalismo do Partido Socialista Unificado da Venezuela
(criado por Chávez para unificar e institucionalizar a ação revolucionária), ao
mandonismo e à demonização de críticos no interior do partido. Não é à toa que
“retificação” é uma palavra que surge em todas as bocas.
Da profundidade deste processo renovador, de sua capacidade
de combater a corrupção interna e corrigir a autossuficiência do governo (que
continua a cometer erros graves no terreno da luta política, como demonstram os
enormes murais exaltando a “Venezuela Potência” por cima das longas filas por
alimentos) e, principalmente, de sua capacidade de animar e mobilizar o povo
chavista – ainda saudoso do seu Comandante – a sair às ruas para convencer a
maior parte da população de que os problemas econômicos possuem uma raiz
política e que podem ser superados no interior da via democrática e popular,
reside a possibilidade do governo ganhar um fôlego para seguir adiante travando
a batalha. No entanto, a grande questão – e em última instância, a mais
decisiva – é a do horizonte da revolução.
Dezessete anos depois da primeira eleição de Chávez, a
revolução bolivariana precisa ser relançada, necessita de um programa que
atualize seus objetivos, apresente claramente como será alcançada a diversidade
produtiva, libertando o país da dependência absoluta do petróleo e como a
reforma agrária será capaz de alcançar a tão sonhada soberania alimentar. Estes
dois objetivos foram apontados por Chávez ao definir o Socialismo do século XXI
como o porto de chegada da Revolução Bolivariana. A partir daí foram realizadas
estatizações, se investiu em infraestrutura e foi lançada uma reforma agrária
que enfrentou grande resistência dos latifundiários tendo até agora custado a
vida de duzentos camponeses, segundo dados oficiais. Nas cidades e nas estradas
abundam painéis exaltando a “construção da pátria socialista” e nas lojas e
supermercados produtos fabricados por empresas estatais trazem um selo com os
dizeres “ feito no socialismo”. Apesar de todo esforço, a Venezuela continua
escrava do petróleo, não consegue produzir alimentos suficientes para alimentar
seu povo e o socialismo é uma vaga e difusa ideia à espera de sua
concretização. Apresentar um programa que seja capaz de mostrar para a
população como os objetivos estratégicos serão alcançados, o caminho a ser percorrido,
as dificuldades que serão encontradas, preparando o povo para os inevitáveis
enfrentamentos, parece ser uma necessidade inadiável.
De agora em diante os desdobramentos da conjuntura política
da Venezuela terão que ser acompanhados diariamente por todos aqueles que
reconhecem, valoram e se solidarizam com um processo que em muito ajudou
colocar a luta dos povos latino-americanos num patamar superior. Ainda que o
Alto Comando da Força Armada Nacional Bolivariana tenha dados provas de coesão
e fidelidade ao ideário chavista, setores da direita venezuelana possuem um DNA
golpista e sonham com uma intervenção imperialista. A disputa entre os poderes
executivo e legislativo assume agora o centro da luta política. A sorte está
lançada.
*Luiz Arnaldo Campos é cineasta, membro
da Fundação Lauro Campos e esteve recentemente na Venezuela.