Do
MPD
Movimento do Ministério Público
Democrático
Por Roberto Livianu e Julio Marcelo de
Oliveira
Em 2010, o Brasil
parecia se alinhar ao grupo de nações do mundo que sinalizava ao menos
pretender cumprir os compromissos assumidos em 9 de dezembro de 2003 em Mérida.
Encaminhou ao Congresso um projeto de Lei Anticorrupção empresarial.
Em 2013, quando
apenas Argentina, Irlanda do Norte e Brasil ainda não tinham suas leis, logo
após os movimentos de rua de junho, a Lei 12.846 foi aprovada, incluindo-se,
aos 45 minutos do segundo tempo, sem ampla discussão como era necessário, o
acordo de leniência que seria celebrado entre órgão de controle interno e
empresa suspeita de corrupção, sem Ministério Público e ninguém fiscalizando.
Estes novos acordos
poderiam permitir acesso a financiamentos do BNDES, atestado de idoneidade
garantidor de participação em licitações e redução de multas, com as bênçãos do
governo para a empresa (que inclusive poderia ter sido doadora de campanha para
este mesmo governo).
Diante da temeridade,
insegurança jurídica e carência de legitimidade destes acordos, negociados e
estabelecidos sem sequer se saber o alcance dos objetos das investigações
promovidas pelo MP, muitos controladores de todo o país, mesmo sem imposição
legal, começaram logo a convidar o MP para intervir nas negociações.
Visando sanar a falha
grave de arquitetura jurídica, o senador Ricardo Ferraço em fevereiro do ano
passado, apresentou o PLS 105 com uma única proposição: exigir a homologação
dos acordos de leniência pelo MP para terem validade.
No entanto, o que
estava ruim, piorou. E muito. O Senado desfigurou a proposta original e criou
cenário grave, que desrespeita os tratados internacionais anticorrupção dos
quais o Brasil é signatário, criando impunidade ainda maior para a corrupção.
E isto tem sido
justificado com o argumento de que é necessário proteger a economia, o que
afronta o artigo 5º da Convenção da OCDE que expressamente prevê a
impossibilidade do uso deste tipo de argumento para não punir a corrupção
empresarial.
Sob o pretexto de
supostamente legitimar o MP, o Senado ampliou o rol daqueles legitimados a
celebrar os acordos de leniência, incluindo Advocacia-Geral da União (AGU) e o
próprio MP. No entanto, mantém a possibilidade de Controladoria-Geral da União
(CGU) e AGU celebrarem os acordos sem qualquer fiscalização.
É sempre bom lembrar
que a CGU e a AGU são órgão de governo, e não de Estado. Que seus chefes são de
confiança do presidente da República e demissíveis a qualquer tempo, não obstante
haja servidores gabaritados nos quadros destes órgãos. E o mesmo se pode dizer
dos controladores e corregedores estaduais e municipais.
Além disso, nenhum
destes órgãos tem a necessária expertise em aquilatar estes danos ao patrimônio
público, pois tal dinâmica não faz parte do rol de papéis que lhes cabe exercer
no âmbito da Administração Pública.
Como se não bastasse,
o Senado passou a admitir a não aplicação das punições da Lei 8.429/92 (Lei de
Improbidade Administrativa) em hipóteses de acordo de leniência, registrando
que a Lei 8.429 é o mais importante e mais utilizado instrumento jurídico de
proteção ao patrimônio público pelo MP hoje no Brasil.
O Senado ainda
enfraqueceu o Tribunal de Contas da União, aniquilando os efeitos de controle
externo decorrentes de sua atuação, nas hipóteses de acordos de leniência.
Ou seja, o que o
Senado aprovou piora de forma substancial a Lei Anticorrupção, em vigor desde
29 de janeiro de 2014, expondo o país a riscos gravíssimos, deturpando a
essência da Lei 12.846, oriunda dos pactos globais anticorrupção. Na Câmara o
PL tramita sob o número 3636 em Comissão Especial.
Mas o que era
péssimo, atingiu as raias do absurdo. Pois, em afronta brutal ao democrático
processo legislativo de discussão de um projeto de lei, o Governo Federal
editou em 18 de dezembro, no apagar das luzes de 2015, a Medida Provisória 703,
tendo praticamente a mesma redação do PL 3636.
A Medida Provisória
invadiu matéria vedada a essa via legislativa, pois, ao promover alterações na
Lei de Improbidade Administrativa, adentrou na seara do direito processual
civil, violando expressamente a proibição constante do artigo 62, parágrafo 1º,
inciso I, alínea ‘b’ da CF.
A matéria processual
civil e penal, nos termos das Constituição Federal, é de competência
legislativa federal, do Congresso Nacional, caracterizando-se desrespeito ao
princípio basilar da separação dos poderes a edição desta Medida Provisória
pela Presidência da República.
A Medida Provisória
703 estabelece que a celebração de acordos de leniência implicará a extinção de
processos de improbidade administrativa em curso e a impossibilidade de futuras
ações de improbidade, a par de revogar o parágrafo 1º do artigo 17 da referida
lei, que vedava transação ou acordo em sede de ação de improbidade, tornando,
em tese, possíveis tais transações, alterando pois a legislação processual.
Outra grave
inconstitucionalidade reside na pretensão contida na norma de limitar a atuação
dos Tribunais de Contas apenas ao momento posterior à celebração dos acordos,
como se o Poder Executivo pudesse estabelecer a forma como o controle externo
pode exercer suas competências, como se não cumprisse ao próprio controle
externo decidir o melhor momento para atuar na defesa do erário.
Bem de ver que o Supremo
Tribunal Federal reconhece ao Tribunal de Contas da União o poder geral de
cautela, que lhe permite coarctar qualquer ilegalidade ainda em curso, inaudita
altera parte.
Por fim, o novel
artigo 17-A pretende determinar a suspensão de qualquer processo administrativo
em curso em qualquer órgão que tenha como objeto as licitações e contratos
envolvidos no acordo de leniência, o que alcançaria também os tribunais de
contas do país.
Não cabe a edição por
Medida Provisória de qualquer norma limitativa das competências do controle
externo, outorgadas ao Tribunal de Contas da União diretamente pela
Constituição Federal e regulamentadas em sua Lei Orgânica, que não pode ser
alterada por Medida Provisória.
Em conclusão, as
pretendidas repercussões processuais cíveis e na esfera do controle externo,
decorrentes de acordos de leniência e previstas em dispositivos dessa Medida
Provisória 703, afiguram-se flagrantemente inconstitucionais.
Como se já não fossem
bastantes os argumentos já mencionados, a justificativa de apresentação da
Medida Provisória 703 para destravar a economia, permitindo que empresas
suspeitas de corrupção tenham acesso a financiamentos públicos e fiquem impunes
com anulação da multa prevista na Lei 12.846 danifica o princípio da livre concorrência
e nega princípios universais esculpidos no pactos internacionais anticorrupção
— especialmente da OCDE (1997) e Mérida (2003).
Além disso, não há a
urgência exigida no artigo 62 da Constituição Federal, cujo sentido não pode
ser banalizado nem vulgarizado, razões que levaram o Instituto Não Aceito
Corrupção e Associação Nacional do Ministério Público de Contas (AMPCON) a
oficiar ao PGR para que propusesse com estes fundamentos Ação Direta de
Inconstitucionalidade.
Punir as empresas e
combater a corrupção melhora a economia, permitindo que novos empreendedores se
estabeleçam por sua competência, empresas reduzam seus custos, o país possa ter
mais e melhor infraestrutura, mais empregos e renda sejam gerados. Salvar as
empresas envolvidas não só é ilegal e imoral, como mantém o país na vanguarda
do atraso.
Estas situações
relembram o coronelismo, de triste memória no Brasil, e têm sido rechaçadas e
devem continuar sendo em nome da prevalência do bem comum, dos princípios
republicanos, da democracia e do princípio da isonomia.
Não se pode permitir
que alguns empreendedores desonestos comprem, protegidos pelo manto legal, a
impunidade pelos acordos de leniência. É inadmissível levá-los à conclusão que
vale a pena violar a lei para depois se acertar com o governo e se livrar de
sanções graves.
Roberto
Livianu é promotor de Justiça em São Paulo e doutor em Direito pela USP. Atua
na Procuradoria de Justiça de Direitos Difusos e Coletivos, é membro do MPD e
presidente do Instituto Não Aceito Corrupção.
Julio
Marcelo de Oliveira é procurador de contas, atua perante o TCU, é membro do MPD
e vice-presidente da Associação do Ministério Público de Contas (AMPCON).