Quinta, 2 de maio de 2012
Do MPF em São Paulo
Ré intermediava ida de travestis à Europa, em busca de ganhos com
prostituição; acórdão reconheceu que “vulnerabilidade” das vítimas torna
irrelevante o seu consentimento com a viagem
Um acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região,
em São Paulo, reverteu uma sentença de primeira instância e condenou uma
mulher por tráfico internacional de pessoas. A ré M.L.L.B. intermediou e
promoveu a viagem de pelo menos três travestis para a Europa, em busca
de ganhos com a prostituição.
A sentença de
primeira instância havia absolvido a ré sob o argumento de que as
travestis consentiram com a viagem e que a condenação transformaria o
ordenamento jurídico em “vigia da moralidade sexual das pessoas”. Na
apelação – inteiramente aceita pelo TRF-3 – a procuradora da República
Eugênia Augusta Gonzaga reconheceu que as vitimas não foram enganadas ou
forçadas à viagem, mas apontou a situação de absoluta vulnerabilidade
de travestis e transexuais.
Na peça, o Ministério
Público Federal explica que se tratam de pessoas "cujo psicológico não
se identifica com suas características físicas, o que gera enorme
sofrimento psíquico. Quando decidem assumir o seu sexo e orientações
psicológicas passam a enfrentar imensas barreiras sociais, o que
compromete até mesmo a sua sobrevivência." Por tais motivos, "a situação
destes está entre as mais dramáticas entre os diversos grupos
minoritários que são constantemente discriminados. [...] Na maioria das
vezes acabam por se tornar profissionais do sexo por não lhes restar
outra opção" de trabalho, afirmou a procuradora.
“Se
as vítimas tivessem agido por conta própria não haveria crime e nem
processo pois, de fato, o ordenamento jurídico não pode ser o vigia da
moralidade sexual de ninguém”, disse o MPF no recurso. Mas, como
argumentou a procuradora, não eram as travestis que estavam sendo
julgadas e, sim, a mulher que as agenciava para enviar ao exterior.
Desse modo, “não se pode aceitar como natural e atípica a conduta da ré
de se aproveitar da vulnerabilidade e falta de opção de certos cidadãos e
cidadãs”, escreveu o MPF na apelação.
Na ação
criminal, o MPF apresentou inúmeras provas documentais, depoimentos e
escutas telefônicas que demonstraram a conduta ilegal da ré. Ela,
inclusive, agenciava cirurgias plásticas para melhorar a aparência das
travestis e a compra das passagens.
M.L.L.B. vinha
sendo investigada pela 1ª Delegacia de Proteção à Pessoa e, no dia 22
de abril de 2008, foi presa no Aeroporto Internacional de Guarulhos,
quando intermediava a viagem de duas travestis para a Suíça. Julgada
pela Justiça Federal, ela foi absolvida em primeira instância sob o
argumento de que houve consentimento das vítimas na viagem.
O
desembargador federal Cotrim Guimarães não concordou com a sentença. “O
consentimento das vítimas não afasta a ilicitude das ações da ré”,
decretou. No acórdão, ele afirma que a atitude da ré colocava em
“situação de risco concreto” pessoas que, num país estranho, muitas
vezes sem conhecer a língua e as leis locais, “submetem-se à
prostituição e outras formas de exploração sexual, correndo o risco de
serem detidas e deportadas ou aliciadas e subjugadas por oportunistas a
diferentes formas de escravidão”.
Guimarães também
chegou à conclusão de que “a ré não se importava com os riscos que as
pessoas que 'ajudava' a viajar para o exterior corriam, embora soubesse
que estavam indo para outros países para se prostituirem”. Apesar de não
ter se baseado especificamente no fato de as vítimas serem travestis
para reconhecer a sua vulnerabilidade, o desembargador acolheu os
fundamentos da apelação no sentido que a "extrema fragilidade" delas foi
comprovada no caso.
O desembargador federal
utilizou dados de um relatório publicado em 2011 pelo Escritório das
Nações Unidas sobre Drogas e Crimes para lembrar que 800 mil pessoas são
traficadas através de fronteiras anualmente e que existem cerca de 27
milhões de pessoas no mundo submetidas a alguma forma de escravidão
moderna, rendendo 32 bilhões de dólares ao ano para traficantes e
exploradores.
Condenada a três anos e quatro meses
de reclusão, a ré, que era primária, teve sua pena convertida em
prestação de serviços à comunidade e pagamento de um salário mínimo
mensal a uma entidade social, durante todo o período de condenação.