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(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 24 de julho de 2013

O aborto, o veto, os cálculos

Quarta, 24 de julho de 2013
Por Ivan de Carvalho
A presença do papa Francisco no Brasil abre largo espaço e é um excelente momento para que se questione a presidente Dilma Rousseff se ela vai ou não vetar o Projeto de Lei 03/2013, do qual já tratamos neste espaço – e cuja aprovação se deu graças a malandros truques de linguagem, além de espertezas políticas não menos malandras – que dissimuladamente busca ampliar radicalmente a possibilidade da prática do aborto no Brasil.

         Os parlamentares que, no Congresso, integram a bancada evangélica e as frentes católica e da família estão mobilizadas para obter o veto presidencial. Uma questão a se verificar a partir dos fatos que venham a ocorrer é a intensidade dessa mobilização. Os três agrupamentos citados alcançam um total de 200 deputados, aproximadamente. É um forte grupo de pressão, ainda mais que a presidente está política e popularmente fragilizada.

         A presença do papa Francisco no Brasil pode estimular a Igreja Católica a manifestar reservadamente à presidente e a seu governo, bem como abertamente à população, sua posição contrária ao aborto e a leis que venham a ampliar a matança dos inocentes indefesos, como pretende o PL 03/2013.

         Na campanha eleitoral, em 2010, a então candidata a presidente pelo PT, Dilma Rousseff, deu publicamente sua palavra de que seu governo não tomaria qualquer iniciativa em favor da implantação do aborto no Brasil (admitido nas duas hipóteses já previstas no Código e, não por lei, mas por decisão do STF, nos casos de anencefalia).

         Na linha de seu compromisso, assumido quando buscava os votos para chegar à presidência da República, Dilma Rousseff deveria agora vetar o projeto de lei sorrateira e subrepticiamente aprovado pelo Congresso, com um texto que não contém as palavras “aborto” e “estupro”, exatamente para passar despercebido das frentes evangélica, católica e pró-vida.

         No texto, a palavra aborto, na linguagem sagaz de jurista ou advogado que entende do assunto, é substituída por um jargão médico, “profilaxia da gravidez”, enquanto evita-se a palavra estupro, usando-se, para o atendimento obrigatório e prioritário nos hospitais, a “violência sexual, o que pode ser muita coisa, inclusive estupro”. Os hospitais – o projeto aprovado não faz qualquer distinção entre eles – “devem oferecer atendimento emergencial e integral decorrentes de violência sexual e o encaminhamento, se for o caso, aos serviços sociais”.

         Ora, hoje o aborto legal só pode ser feito com autorização judicial, que há de ser dada somente com base em provas de que houve realmente o estupro, nunca bastando apenas uma declaração da mulher de que foi vítima de violência sexual contra sua vontade. Quem pode garantir que a declaração é verdadeira, que foi contra a vontade da declarante, sem que disso haja prova? Note-se que no outro lado da balança está uma vida humana, o inocente indefeso a ser sacrificado. Trata-se, em tudo, de um projeto de lei autoritário, aprovado graças a alguns truques (uma espécie de prestidigitação vocabular, se esta expressão for permissível), que abriga o desrespeito aos direitos humanos do nascituro, à consciência do médico e às convicções da instituição hospitalar.

         O projeto de lei estava na Câmara dos Deputados desde 1999 – o PL 60/1999. Então o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, do PT, pediu em fevereiro ao presidente da Câmara, o peemedebista Henrique Eduardo Alves, que em homenagem à mulher fosse votado em regime de urgência. Acabou sendo atendido quando Alves viajou e o petista André Vargas assumiu a presidência da Câmara. A urgência e em seguida o projeto – já sob o nome de PL 03/2013 – foram aprovados sem oposição nenhuma, pois a mutreta da linguagem dissimulada, evitando as palavras-chave “aborto” e “estupro”, escondeu da bancada evangélica e das frentes católica e pró-família o veneno mortal (para o ser humano inocente e indefeso no ventre da mãe) que contém.

         Dilma, candidata, deu sua palavra de que seu governo não tomaria qualquer iniciativa para facilitar o aborto. Seu ministro da Saúde, Alexandre Padilha, de seu partido, o PT, deu o ponta-pé inicial para a aprovação do projeto pró-aborto aprovado este mês. À presidente cumpre manter a palavra empenhada: vetar, anulando a iniciativa de seu ministro e o resultado dela. Vetar causará insatisfações e decepção em alguns setores, incluindo o PT. Não vetar implicará em quebra de confiança perante a nação e em repulsa ante os setores decididamente contrários ao aborto. Mas não é esse tipo de cálculo que ela deve fazer – mas os de quantos inocentes indefesos morrerão se ela não vetar.
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Este artigo foi publicado originariamente na Tribuna da Bahia desta quarta.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.