Sábado, 5 de setembro de 2015
Do Esquerda.Net
Neste momento há uma tentação
de agradecer a sírios, afegãos, iraquianos, líbios, somalis, e tantos
outros, por nos terem ajudado a perceber a União Europeia que temos.
Pura e simplesmente não existe, a não ser para a grande negociata e bela
vida em Bruxelas e arredores. Artigo de José Manuel Rosendo.
5 de Setembro, 2015
Foto de José Manuel Rosendo, tirada em Gevgelija.
Sem
saber o que fazer, a União Europeia está em crise profunda. É assim
desde há muito tempo, mas conseguia disfarçar. E não é por falta de
avisos e sinais que se deixa chegar a este ponto. Há muitos meses que os
refugiados estão a chegar à Europa; há anos que os europeus andam a
fazer asneira no local de origem da maioria dos refugiados que chegam às
fronteiras europeias; há anos que a União Europeia não tem uma política
externa comum; há anos que, sobretudo os países do Sul da Europa
deixaram-se enredar em interesses de outros Estados europeus para os
quais a vizinhança do Mediterrâneo é algo distante e fora da agenda. Por
fim, uma coisa chamada Frontex (Agência europeia de gestão das
fronteiras externas da União Europeia) mostrou toda a sua falência.
Estamos a pagar a factura. O efeito boomerang nunca falha.
A resposta a esta crise mostra que esta tem sido a União Europeia errada e
toda a gente tem encolhido os ombros, principalmente líderes políticos
deslumbrados com as luzes da ribalta política, com a possibilidade de
passear na Grand Place de Bruxelas e com um lugar à mesa nas grandes
cimeiras, transformadas em passadeiras da vaidade, de onde não saem
políticas nem ideias consistentes que façam deste continente esse lugar
de paz, de verdadeira solidariedade, de desenvolvimento e de farol dos
Direitos Humanos. Tem sido o vazio, onde a especulação financeira é o
grande deus. Apenas isso.
Curiosamente, são pessoas, sim, pessoas, pessoas com problemas, que
destapam o caldeirão dos desentendimentos e põem a nu a verdadeira
natureza dos líderes europeus e a inconsistência das políticas
europeias. É habitual vermos os líderes europeus enxofrados – muitas
vezes apenas fazem de enxofrados para as respectivas opiniões públicas –
com questões econômicas e financeiras, mas desta vez estão em desacordo
por causa de pessoas. O que os líderes europeus já deviam estar a fazer
nesta altura era estar em campo com um discurso pedagógico para que nos
vários países a opinião pública percebesse que todos temos o dever de
auxiliar.
Torna-se óbvio que esta Europa não sabe lidar com problemas das pessoas. Estes líderes apenas estão habituados a relatórios e power points que
tratam de problemas financeiros e econômicos, sempre assessorados por
grandes gabinetes da consultadoria e ouvindo sempre os impérios da
banca. Os problemas reais das pessoas são algo de estranho para eles,
mas desta vez têm pessoas a bater à porta e nenhum deles arrisca apontar
o caminho de regresso ao mar a todos aqueles que já entraram na Europa.
É triste ouvir o líder do PS dizer que os refugiados podem vir
limpar florestas “porque está habituada a trabalho agrícola”. António
Costa está mal-informado: grande parte dos refugiados que estão a chegar
à Europa vindos da Síria e do Iraque são classe média, muitos com
formação universitária e não estão nada habituados a trabalhar na
agricultura. É triste ouvir o Governo português mostrar abertura a
acolher mais refugiados, mas como sempre, apenas depois de a Alemanha
dizer o mesmo. Ainda é mais triste ouvir o Primeiro-Ministro húngaro
dizer que os refugiados põem em risco a cristandade na Europa e ao mesmo
tempo admitir que, depois de construir um muro na fronteira com a
Sérvia, pode agora construir um muro na fronteira com a Croácia.
Continua a ser triste e preocupante saber que a Hungria e a Bulgária
perguntaram a Israel como se constroem os muros nas fronteiras (a
agência Reuters deu a notícia), algo em que Israel tem muita prática. A
Hungria esqueceu rapidamente o Muro de Berlim e a cortina de ferro.
É difícil saber qual é a resposta adequada a esta chegada de milhares
de refugiados? É verdade! Mas para já a questão é humanitária. É
preciso ajudar quem apenas procura sobreviver. Ter uma visão
utilitarista, tentando antever o que a Europa pode ganhar com a chegada
destes refugiados é algo de cínico, mesmo que sirva de argumento para
ajudar a convencer a opinião pública europeia. Um refugiado deve ser
ajudado porque está em fuga e fragilizado. Apenas isso. É o dever de
auxílio a quem está nestas condições.
Neste momento há uma tentação de agradecer a sírios, afegãos,
iraquianos, líbios, somalis, e tantos outros, por nos terem ajudado a
perceber a União Europeia que temos. Pura e simplesmente não existe, a
não ser para a grande negociata e bela vida em Bruxelas e arredores. Não
é possível dizer quando nem como, mas esta União Europeia vai ruir qual
castelo de cartas. Pelo menos aproxima-se a passos largos do abismo.
Pinhal Novo, 4 de Setembro de 2015
Artigo publicado no blogue meu Mundo minha Aldeia.
Artigo publicado no blogue meu Mundo minha Aldeia.
*José Manuel Rosendo é jornalista da Antena 1 e autor do livro "De Istambul a Nassíria, crônicas da Guerra no Iraque"