Segunda, 4 de janeiro de 2015
Do El País Brasil
Por Eliane Brum
Um menino de dois anos foi assassinado.
Um homem afagou seu rosto. E enfiou uma lâmina no seu pescoço. O bebê
era um índio do povo Kaingang. Seu nome era Vitor Pinto. Sua família,
como outras da aldeia onde ele vivia, havia chegado à cidade para vender
artesanato pouco antes do Natal. Ficariam até o Carnaval. Abrigavam-se
na estação rodoviária de Imbituba, no litoral de Santa Catarina. Era lá
que sua mãe o alimentava quando um homem perfurou sua garganta. Era
meio-dia de 30 de dezembro. O ano de 2015 estava bem perto do fim.
E o Brasil não parou para chorar o assassinato de uma criança de dois anos. Os sinos não dobraram por Vitor.
Sua morte sequer virou destaque na imprensa nacional.
Se fosse meu filho, ou de qualquer mulher branca de classe média,
assassinado nessas circunstâncias, haveria manchetes, haveria
especialistas analisando a violência, haveria choro e haveria
solidariedade. E talvez houvesse até velas e flores no chão da estação
rodoviária, como existiu para as vítimas de terrorismo em Paris. Mas
Vitor era um índio. Um bebê, mas indígena. Pequeno, mas indígena.
Vítima, mas indígena. Assassinado, mas indígena. Perfurado, mas
indígena. Esse “mas” é o assassino oculto. Esse “mas” é serial killer.
A fotografia que ilustrou as poucas notícias sobre a morte do curumim
mostra o chão de cascalho e concreto da estação rodoviária. Um par de
sandálias havaianas azul, com motivos infantis. Uma garrafa pet, uma
estrelinha de brinquedo, daquelas de fazer molde na areia, uma tampa de
plástico do que parece ser um baldinho de criança, uma pequena embalagem
em formato de tubo, um pano florido amontoado junto à parede, talvez um
lençol. É apresentada como “local do crime” ou como “os pertences do
menino”.
Os índios precisam ser falsos porque suas terras são verdadeiras – e ricas
Essa foto é um documento histórico.
Tanto pelo que nela está quanto pelo que nela não está. Nela permanece o
descartável, os objetos de plástico e de pet, os chinelos restados.
Nela não está aquele que foi apagado da vida. A ausência é o elemento
principal do retrato.
Os indígenas só podem existir no Brasil como gravura. Apreciados como
ilustração de um passado superado, os primeiros habitantes dessa terra,
com sua nudez e seus cocares, uma coisa bonita para se pendurar em
algumas paredes ou estampar aqueles livros que decoram mesas de centro.
Os indígenas têm lugar se estiverem empalhados, ainda que em quadros. No
presente, sua persistência em existir é considerada inconveniente, de
mau gosto. Há vários projetos tramitando no Congresso
para escancarar suas terras para a exploração e o “progresso”. Há
muitos territórios indígenas devidamente reconhecidos que o governo de Dilma Rousseff
(PT) não homologa porque neles quer construir grandes obras ou porque
teme ferir os interesses do agronegócio. Há uma Fundação Nacional do
Índio (Funai) em progressivo desmonte, tão fragilizada que com
frequência se revela também indecente. No passado, os índios são. No
presente, não podem ser.
Como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro,
os indígenas são especialistas em fim de mundo, já que o mundo deles
acabou em 1500. Tiveram, porém, o desplante de sobreviver ao apocalipse
promovido pelos deuses europeus. Ainda que centenas de milhares tenham
sido exterminados, sobreviveram à extinção total. E porque sobreviveram
continuam sendo mortos. Quando não se consegue matá-los, a estratégia é
convertê-los em pobres nas periferias das cidades. Quando se tornam
pobres urbanos, chamam-nos de “índios falsos”. Ou “paraguaios”, em mais
um preconceito com o país vizinho. No passado, os índios são alegoria.
“Olha, meu filho, como eram valentes os primeiros habitantes desta
terra.” No presente, são “entraves ao desenvolvimento”. “Olha, meu
filho, como são feios, sujos e preguiçosos esses índios fajutos.” Os
índios precisam ser falsos porque suas terras são verdadeiras – e ricas.
A morte dos curumins não muda nenhuma política, as fotos de sua ausência não comovem milhões
Se Vitor era um entrave, esse entrave foi removido. Por isso essa
foto é um documento histórico. Se houvesse alguma honestidade, é ela que
deveria estar nas paredes.
Parece não bastar que Vitor, um bebê de dois anos, passasse semanas
no chão de uma rodoviária porque a violência contra seu povo foi tanta e
por tantos séculos e ainda hoje continua que seus pais, Sônia e
Arcelino, precisam deixar a aldeia para vender artesanato. A preços
baixos, porque desvalorizados são os artesãos. É importante perceber o
nível de desamparo que leva alguém a considerar rodoviária um lugar
seguro e acolhedor. Terminais rodoviários são locais de passagem, e a
família de Vitor, assim como a de outros indígenas, abriga-se lá porque
há movimento. Rodoviária é lugar de ninguém. E por isso nela costumam
caber os mendigos, os meninos de rua, os bêbados, as putas, os loucos,
os párias. E os índios. Ou cabiam. E já não cabem mais.
Rodoviárias são espaços de circulação de estranhos, e por serem “os outros”, os estrangeiros nativos,
os indígenas acreditam que neste não lugar têm chance de escapar da
expulsão. Mas seguidamente são expulsos. Parte da população dos
municípios em que os indígenas aparecem com seu artesanato acha que a
rodoviária é boa demais pra índio. Ou pra “bugre”, como são chamados em
algumas regiões do sul do país. “A rodoviária é o cartão postal da cidade, período que tem tanta gente viajando, chegando. Que imagem vão levar da cidade?”,
justificou um comerciante de São Miguel do Oeste, também em Santa
Catarina, para justificar a expulsão dos indígenas do local antes do
Natal.
Vitor já não estraga nenhum cartão postal. Dele não há nem mesmo um
rosto. A foto de sua ausência não comoverá milhões pelo planeta como
aconteceu com o menino sírio trazido pelas ondas do mar. A morte dos
curumins não muda nenhuma política.
Antes que me acusem de precipitação, exagero ou injustiça, é preciso
dizer: os “cidadãos de bem” não querem que crianças indígenas tenham
seus pescoços perfurados. De jeito nenhum. Apenas que elas fiquem longe
da vista. Em outro lugar em que não contaminem, sujem ou enfeiem. Mas
também não nas suas terras, se estas forem ricas em minérios, férteis
pra soja ou boa pra gado pastar. Aí também é abuso. Desapareçam, apenas.
Mas matar, não, matar é maldade.
2015 foi o ano em que esse discurso deu ao Brasil o bicampeonato. O
deputado estadual Fernando Furtado, do Partido Comunista do Brasil
(PCdoB), foi reconhecido como “Racista do Ano” pela organização Survival
International por seu pronunciamento antológico, ao se manifestar numa
audiência pública: “Lá em Brasília, o Arnaldo viu os índios tudo de
camisetinha, tudo arrumadinho, com flechinha, tudo um bando de viadinho, que tinha uns três que eram viado, que eu tenho certeza, viado. Eu não sabia que tinha índio viado, fui saber naquele dia em Brasília... Tudo viado. Então é desse jeito que tá, como é que índio já consegue ser viado, boiola, e não consegue trabalhar e produzir? Negativo!”.
Para parte dos moradores de cidades da região sul, os indígenas “sujam” o cartão postal
O parlamentar se referia aos Awá-Guajá, considerados um dos povos
mais vulneráveis do planeta. A conquista de Fernando Furtado, porém, não
é inédita. Outro parlamentar, Luis Carlos Heinze, este deputado federal
pelo Partido Progressista (PP) do Rio Grande do Sul, já tinha subido ao
pódio em 2014, com a seguinte declaração: “O governo... está aninhado
com quilombolas, índios, gays e lésbicas, tudo o que não presta”. Tudo
indica que o Brasil é quase imbatível para o tricampeonato. Fala-se
tanto em país polarizado, mas a premiação prova que os indígenas são um
raro ponto de unanimidade entre certa direita e certa esquerda dessa
grande nação.
Vitor, o bebê assassinado, vivia na aldeia Condá, no município de
Chapecó, no oeste de Santa Catarina. Os crimes cometidos pelo Estado
contra o povo Kaingang da região sul do Brasil estão registrados no Relatório Figueiredo,
um documento histórico que se acreditava perdido e que foi descoberto
no final de 2012. O relatório, datado de 1968, documentou o tratamento
dado aos povos indígenas pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios
(SPI). No total, o procurador Jáder Figueiredo Correia dedicou 7.000
páginas para contar o que sua equipe viu e ouviu. Quem quiser
compreender por que Vitor se abrigava no chão da rodoviária de Imbituba
em vez de passar os meses de verão seguro, saudável e feliz na sua
aldeia, tem uma rica fonte de informações no documento disponível na
internet. Vai descobrir, entre outras atrocidades, como antepassados de
Vitor chegaram a ser torturados e a viver em condições análogas à
escravidão para que suas terras fossem desmatadas e exploradas pelos não
índios, em pleno século 20. É possível que alguns destes
“empreendedores” sejam avós daqueles que hoje acham que indígenas como
Vitor sujam o cartão postal de suas cidades.
Começamos 2016 como acabamos 2015: obscenos. Os fogos do Ano-Novo já fracassam no artifício
Depois do assassinato do bebê, a Polícia Militar prendeu o suspeito
de sempre. Um rapaz pobre, em liberdade provisória, com “uma pequena
quantidade de maconha e cocaína na mochila”. Como não havia nenhum
indício contra ele, foi liberado. Em seguida, foi preso outro jovem,
hoje considerado o principal suspeito. A polícia procurava alguém
bastante genérico: com mochila e boné e tipo físico semelhante ao que
aparece num vídeo gravado por uma câmera de segurança. A suspeita de policiais militares é de que o assassino estaria “incomodado com a presença dos indígenas no local”. A Polícia Civil mencionou como possíveis motivações “preconceito”, “surto” e “problemas psicológicos”. Em nota, o CIMI afirmou:
“O Conselho Indigenista Missionário manifesta preocupação com o clima
de intolerância que se propaga, na região sul do país, contra os povos
indígenas. Um racismo – às vezes velado, às vezes explícito – é
difundido através de meios de comunicação de massa e em redes sociais”.
Quem de fato assassinou Vitor talvez seja investigado, julgado,
condenado e punido, o que já é uma raridade em mortes de indígenas no
Brasil, marcadas pela impunidade. Mas é preciso fazer perguntas mais
complicadas. Quem armou essa mão? Que encruzilhada histórica permitiu
que Vitor fosse o bebê escolhido pelo assassino, independentemente de
sua sanidade ou insanidade – e não o meu filho ou o seu? Onde estamos
nós nesta foto em que estamos sem estar?
Tem se dito que 2015, um ano de crise no Brasil e horror em todas as
partes, é o ano que não terminou. 2016 seria apenas um looping. Faz
sentido. Na véspera deste Natal, Antônio Isídio Pereira da Silva, líder
rural e ambientalista no Maranhão, foi encontrado morto. Era mais um
assassinato anunciado. Há um ano foi arquivado o pedido de inclusão do agricultor no programa federal de proteção aos defensores de direitos humanos. Ele se preparava para denunciar mais um desmatamento ilegal numa região com graves conflitos de terra quando foi assassinado. Também no Natal, cinco jovens denunciaram policiais militares do Rio por tortura e roubo.
Segundo seu relato, eles voltavam em três motos de uma festa quando
foram detidos por PMs da Unidade de Polícia Pacificadora de Coroa,
Fallet e Fogueteiro. Além de torturas com faca quente, isqueiro e socos,
um deles teria sido obrigado a fazer sexo oral no amigo. Em São Paulo, levou apenas dois dias para ocorrer a primeira chacina de 2016, com quatro mortos na periferia de Guarulhos. Suspeita-se de vingança pela morte de um PM dias antes na região.
Começamos como acabamos. Nada, portanto, nem começou nem acabou. Quem
continua morrendo de assassinato no Brasil, em sua maioria, são os
negros, os pobres e os índios. O genocídio segue diante da indiferença,
quando não aplauso, do que se chama de sociedade brasileira. Começamos
2016 como acabamos 2015. Obscenos. Os fogos do Ano-Novo já fracassam no
artifício. Estamos nus. E nossa imagem é horrenda. Ela suja de sangue o
pequeno corpo de Vitor por quem tão poucos choraram.
Dizem que 2015 é o ano que não acaba. Ou que 2013 é que não chega ao fim.
Para os indígenas é muito mais brutal: o ano de 1500 ainda não terminou.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com