Sexta, 16 de setembro de 2016
Do Blog do Sombra
“O político, por mais ladrão que seja, todo ano tem que enfrentar o povo, sair na rua e pedir voto. O funcionário público não. Ele faz concurso e fica lá, com o cargo garantido, tranquilo”
Por Juiz Edu Perez - TJGO
Eu fiquei em dúvida se era verdade, já que tem tanta mentira por aí
sendo espalhada. Chegaram a inventar, vejam só, que os procuradores
tinham dito não possuir provas contra o Sr. Luis Inácio, somente
convicção, o que é uma tremenda inverdade. Não se pode mesmo acreditar
em tudo na internet.
Verdade ou mentira, fiquei aqui pensando se essa frase faz sentido.
Eu estou Juiz de Direito, aprovado em concurso público, também em
outros cargos antes de lograr esta graça. Como a memória da gente é
falha, eu me esforcei para lembrar como foi o processo.
Conferi, cuidadosamente, se eu não tinha sido financiado por alguma
empreiteira. Também verifiquei se eu não tinha obtido meu cargo
desviando dinheiro de alguma empresa pública, fazendo aí um caixa 2 para
me apoiar. Pode ser a idade, mas não me veio à memória disso ter
acontecido.
O que me recordo é do esforço dos meus avós, dos meus pais e dos meus
familiares, mas muito esforço mesmo, para garantir educação, sem luxos.
Também não me é familiar ter participado de esquemas ou ajustes
partidários. Não dava tempo, saindo de casa para trabalhar às sete da
manhã e voltando às nove, dez horas da noite, só com o horário do almoço
para abrir os livros e enfrentar o escárnio.
Eu lembro de ter estudado muito, da frustração em razão do pouco tempo,
das dúvidas se algum dia eu chegaria lá. Eu me recordo bem do dia da
minha prova oral, num estado onde não conhecia ninguém, tremendo diante
dos examinadores de uma banca absolutamente imparcial presidida pelo
Desembargador Leandro Crispim.
Quem sabe estaria mais calmo se eu tivesse feito coligação, se uma mão
lavasse a outra, se algum ajuste, talvez aquele esquema... Mas não daria
certo. Veja você que eu estava prestando um concurso público e até a
fase oral eu não tinha rosto, e a banca (que injustiça!) também era
formada quase que absolutamente por gente concursada, magistrados
aprovados em um concurso semelhante.
Não iria adiantar caixa 2, apoio parlamentar, conversa de bastidor. Eu
estava ali para ser examinado imparcialmente pelos meus conhecimentos.
Era só Deus e eu.
Vai ver, pensei, que meu caso é um daqueles fora da curva, uma das tais
histórias malucas. Quem sabe a regra não fosse a interferência política
e econômica nos concursos?
Conversei com vários colegas juízes e, fato estranho, todos confirmaram
que não fizeram caixa dois, nem coligação, nem tiveram conversas de
bastidores. Estudaram, com muito esforço, alguns com privação, e foram
aprovados em um concurso impessoal e imparcial.
Para não dizer que é coisa de juiz, essa tal elite, falei com meus
amigos procuradores, promotores, escreventes, oficiais de justiça,
policiais civis e militares, delegados, professores, médicos,
enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos e tantos outros aprovados em
concurso público de provas e títulos.
Todos deram a mesma resposta: lograram êxito após muito estudo, de forma limpa e transparente.
"Mas nenhuma empreiterazinha?", insisti. "Quem sabe alguma verba de emporesa pública?". Não. Foi estudo mesmo.
O mais curioso é que todos tiveram que apresentar certidão de
antecedentes criminais, logo, nenhum podia ser ladrão. Nem ladrão, nem
outra coisa. Algumas carreiras fazem sindicância de vida pregressa. Ai
do candidato que não possui um passado ético, com certeza não entraria
pela estreita porta do concurso público.
Aproveitei e, ainda meditando sobre a frase, me peguei pensando se todo
ano, ou melhor, a cada quatro anos (alguns, oito), eu precisava
enfrentar o povo.
Realmente, se o Sr. Luis Inácio disse isso, ele está certo. Eu não
enfrento o povo anualmente. Aliás, eu não enfrento o povo. Não tenho
medo da minha gente, nem litígio com ela. Eu sou povo também. Pode
parecer surpresa, mas concursado faz parte da nação.
Eu não enfrento, eu atendo. Eu recebo preso. Eu recebo mãe de preso,
pai, vó, filhos, esposa de preso. Recebo conselheiro tutelar. Recebo
advogado. Recebo as partes também. Ouço a vítima do crime, ou, em
situações mais tristes, os que sobreviveram a ela. Eu vejo o agrícola
que vai pedir para aposentar. Vejo o cidadão que não tem medicamento, da
mãe que busca escola pro filho, o neto que busca uma vaga de UTI pro
avô.
Eu cansei de ver o piso do fórum gasto de passar tanto calçado, de
chinelo usado a sapato caro, de gente que vê no Judiciário seu único
porto seguro. Gente que não conseguiu vaga em escola, em creche. Que não
conseguiu remédio. Que se acidentou na estrada esburacada. Que
trabalhou nesse calor inclemente do Centro-Oeste por quarenta anos ou
mais, com a pele curtida de sol, e quando foi pedir aposentadoria
disseram a ele que não tinha prova. Não sou quiromante, mas eu aprendi a
ler a mão e o rosto desse povo. Aprendi a falar a língua deles, não
porque eles vão votar em mim, mas porque é minha obrigação para aplicar a
lei.
Essa mesma gente que os políticos enfrentam (enfrentam, vejam vocês!),
segundo a tal frase, eu atendo todo dia. É meu dever, e com que prazer
eu realizo esse dever!
Eu atendo essa gente que vem acreditando há décadas nesses políticos
que, como um fenômeno natural, aparecem apenas de forma episódica e em
determinadas épocas. Um povo que acreditou que teria saúde, educação,
segurança, lazer, trabalho, aposentadoria, dignidade e tantos direitos
básicos só por serem gente, mas não tem.
Esse mesmo povo que vota, que deposita na urna sua esperança, a recolhe
depois despedaçada, cola o que dá e procura o promotor ou o defensor
público, servidores concursados, quando não um nobre advogado dativo ou
pro bono, para pedir ao juiz esse direito sonegado. São os concursados
que garantem esse direito.
São os juízes que aplicam a lei criada pelos políticos eleitos para o
Legislativo, e nessas horas em que a lei é dura e talvez não tão justa,
quando devemos fazer valer o seu império, só nos resta ouvir e consolar.
Juízes, é preciso dizer, não são máquinas, porque nessas engrenagens
desprovidas de coração que formam o sistema, é a nossa alma que
colocamos entre os dentes do engenho para aplacar seu cruel atrito.
E quando estamos sozinhos, nós sofremos, nós choramos, porque lidamos
também com a desgraça do povo, do nosso povo, do povo do qual fazemos
parte e que não enfrentamos, mas atendemos.
Perguntei aos meus amigos promotores, defensores, escreventes,
analistas, oficiais de justiça, professores, policiais, guardas civis
metropolitanos, agentes carcerários, bombeiros, militares, médicos,
agentes de saúde, enfermeiros e tantos outros, se eles por acaso
enfrentavam o povo, mas me disseram que esse povo eles faziam era
atender.
É também a alma deles que lubrifica essa máquina atroz que é o sistema.
É à custa da alma do concursado que o Estado se humaniza. Que o digam
nossas famílias, nossos amigos... que digamos nós, quando abrimos mão de
tanta coisa para cumprir nossa missão, quando para socorrer um estranho
muitas vezes alguém próximo a nós precisa esperar.
Forçoso que se concorde, nós não enfrentamos o povo a cada dois, quatro
anos. Nós o atendemos dia e noite, nós olhamos seu rosto, tentamos
aplacar sua angústia em um país em que tudo falta, quando um médico e
sua equipe não tem nem gaze no hospital público.
E fazemos isso porque amamos nossa profissão, seja ela qual for, não
porque precisamos de votos. Nós chegamos onde chegamos com dedicação,
não com esquemas, e sem lesar o patrimônio público ou a fé da nação.
São servidores públicos concursados que estão descobrindo as fraudes
que corroem nosso Brasil, do menor município à capital do país, e serão
servidores públicos concursados a julgar tais abusos. São servidores
públicos concursados que patrulham nossas ruas, que atendem em nossos
hospitais, que ensinam nossas crianças.
Nós não precisamos prometer nada para o povo, nós agimos.
Realmente, é preciso temer pessoas que possuem um compromisso com a ética, não com valores espúrios.