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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

A TFP-TRADIÇÃO, FAMÍLIA E PROPRIEDADE

Sexta, 3 de janeiro de 2020
Por
Salin Siddartha 

A TFP-TRADIÇÃO, FAMÍLIA E PROPRIEDADE
Salin Siddartha
A Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade-TFP é uma organização civil de inspiração católica tradicional fundada em 1960 pelo jornalista católico Plínio Corrêa de Oliveira. Formou-se a partir da Ação Católica, de São Paulo, e do grupo que editava o jornal “O Legionário”, da Arquidiocese de São Paulo. É um movimento político e religioso que diz defender a “civilização cristã”. A TFP é um dos grupos ultradireitistas que mais atuaram no sentido de promover a instauração do Golpe Militar de 1964.
Presente até os dias atuais, a organização ressalta, a partir da filosofia de São Tomás de Aquino e das encíclicas, os tradicionais valores da família e da propriedade como pertencentes à ordem natural das coisas. A TFP inspira-se no “integrismo”, ideologia católica cujo princípio básico mais importante é a defesa do catolicismo tradicional, em oposição ao catolicismo com engajamento social. É um movimento existente dentro da Igreja Católica, o qual concilia o sectarismo, internamente, com o ultramontanismo, externamente.
Para ela, a época ideal da História é a Idade Média, à qual, segundo sua opinião, a humanidade precisa retornar; a Idade Média é o seu modelo, pelo motivo de que havia então classes sociais bem definidas: a nobreza e o povo (não se buscava liberdade nem igualdade, mas se almejava um fim mais elevado – o Reino de Deus). Defende a ideia de que a eclosão do Humanismo, da Renascença, do Protestantismo, da Revolução Francesa de 1789, Revolução Soviética de 1917, revolta estudantil da Sorbonne em 1968 e as mudanças pelas quais o Ocidente e o resto do mundo vêm passando são etapas de uma única revolução, de cunho gnóstico e igualitário, que há cinco séculos vem, paulatinamente, desfigurando e demolindo a Civilização Cristã, assim como a influência da Igreja Católica sobre as nações.
Para a TFP, a Revolução Francesa implicou um golpe mortal no Reino de Deus e a vitória do demônio, ao apregoar o lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” ou a destruição dos privilégios da nobreza e do clero; ela é de opinião que a instituição da república, que toma o lugar da monarquia, é outro golpe desferido pela Revolução Francesa contra a civilização cristã. Para ela, a Revolução Soviética, em 1917, foi o destronamento de Deus, porque, ao pregar a igualdade de todos os homens numa sociedade sem classes sociais, o bolchevismo sufocou os valores civilizacionais cristãos.
A TFP combate as ideias maçônicas, socialistas e comunistas; no caso do comunismo, a Sociedade declara-o uma seita que conclama as massas para o confisco, o morticínio e a impiedade. Ela ficou famosa pelas manifestações contra o divórcio, pela defesa de posições políticas à direita e por colocar-se avessa a transformações; para a organização, a reforma agrária é um pecado contra o 7º e o 10º Mandamentos da Lei de Deus (respectivamente, “Não roubarás” e “Não cobiçarás as coisas alheias”). Advoga que é da índole das esquerdas tomar de assalto as iniciativas particulares que funcionam bem e que a Organização das Nações Unidas-ONU representa os interesses dos monopólios estatais.
A TFP considera antinatural manter os indígenas em reservas e reivindica transformá-los em pequenos pecuaristas, pondera que os ecologistas e defensores do meio ambiente atuam com base em uma ideologia sectária para paralisar o desenvolvimento brasileiro. Acha que a reclamação de áreas territoriais que teriam pertencido a ancestrais de negros para retirá-las dos atuais proprietários e transformá-las em terrenos coletivos de quilombolas, controlados pelo INCRA, é um novo foco de tensão e balbúrdia no Brasil, seja no campo seja nas cidades. A TFP não aceita que o ensino seja acessível a todos devido a destruir a hierarquia.
Embora seja extremamente católica, a Tradição, Família e Propriedade muitas vezes demonstra-se discrepante entre suas ideias e as práticas e as pregações da Igreja. Ignora o Concílio do Vaticano II, assim como critica as teses defendidas pelos Papas João XXIII e Paulo VI; sua oposição àquele Concílio deve-se ao silêncio que aparentou a respeito do comunismo – diz que o Concílio não teve alcance dogmático e passou para a História como apenas pastoral.
A TFP, na década de 60, não possuía mulheres militantes, todavia apenas homens, e proíbe, até hoje,que seus membros solteiros se relacionem sexualmente com uma mulher.
Apela para que o Congresso Nacional mantenha a Nação sem fazer concessões ao socialismo e ao estatismo, pois acha que cada concessão socialista fará com que, no futuro, brotem, em abundância, novas concessões. Opina que o socialismo é confiscatório, e o estatismo, dirigista tirânico. Brasília é cidade abominada pela TFP, em razão de sua padronização arquitetônica.
O principal livro seguido pela TFP intitula-se “Revolução e Contrarrevolução”, de autoria do seu fundador, Plínio Corrêa de Oliveira, que pretendia ter origem nobre e, por isso, declarava que a nobreza é a obra prima da criação. “Revolução e Contrarrevolução” propõe uma reação (contrarrevolução) com base no apego à ordem cristã e na aversão à desordem social (revolução).
Dom Bertrand Maria José Pio Januário Miguel Rafael Gonzaga de Orleans e Bragança, segundo na linha sucessória da realeza brasileira, e um dos líderes do Movimento de Restauração da Monarquia, é grande referência da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade. Na Igreja Católica, os principais filiados foram Dom Geraldo de Proença Sigaud (ex-Arcebispo de Diamantina) e Dom Antônio da Castro Mayer (ex-Bispo de Campos dos Goytacazes).
A TFP se dedica primordialmente à ação ideológica de combate ao comunismo, vendendo, em logradouros públicos, as obras editadas por ela à sombra do seu característico estandarte rubro com o leão rompante; então, em campanha, os militantes postam-se nas ruas mais movimentadas ou na frente das igrejas, envergando capas púrpuras sobre ternos escuros e empunham estandartes com o emblema da organização. Fazendo uso abusivo de megafones, procuram convencer os passantes a assinar seus manifestos.
Os sócios da entidade formam, em cada Estado, uma secção, tendo à frente um diretório seccional que se dividem em subsecções constituídas pelos sócios residentes em uma cidade e dirigidas por um diretório subseccional; as seções são dirigidas por dois órgãos de jurisdição em todo o País: o Conselho Nacional, com o encargo das atividades sociais nos aspectos culturais e cívicos, e a Diretoria Administrativa e Financeira. A TFP mantém-se por meio das mensalidades dos sócios e dos donativos. Estima-se que ela possua cerca de 1.500 associados; seus membros podem ser identificados pelo uso da Cruz de Santiago em seus trajes, usados por várias TFPs em todo mundo. Após um período preparatório, os militantes podem habitar uma das casas pertencentes à Sociedade, onde discutem sua doutrina e se preparam para as campanhas públicas, assistem a cursos cívico-culturais e participam obrigatoriamente de aulas de defesa pessoal, aprendendo judô, jiu-jitsu e caratê.
No prédio do Ermo de São Bento, em São Paulo, um dos principais redutos da Sociedade, vivem dezenas de homens, de várias idades, sob regime claustral severo, em celibato, obedecendo a uma Regra de Vida.
A TFP possuía antigamente uma seita secreta chamada Sempre Viva, cujos membros, parodiando a devoção ensinada por São Luís de Montfort para com Nossa Senhora, se consagravam como escravos ao fundador e líder Plínio Corrêa de Oliveira, de modo que o presidente da Sociedade substituía Nossa Senhora como objeto de devoção; os doze primeiros escravos foram considerados preferidos, autênticos e fervorosos discípulos do “Profeta” Plínio Corrêa de Oliveira – estavam para ele como os doze apóstolos estavam para Jesus Cristo. Eles acreditavam que a presença divina era maior em Plínio Corrêa que na sarça ardente que Moisés viu no alto do Monte Sinai; esse era o nível de fanatismo na Sempre Viva.
Os escravos da Sempre Viva andavam vestidos com o hábito eremita, no 2º andar do casarão da rua Alagoas, em São Paulo, e, ao falar com Plínio, punham-se de joelhos, colocando-lhe nas mãos a ponta da corrente que envolvia suas cinturas, em sinal de escrava submissão. A Sempre Viva chegou a ter 59 escravos que, todos os dias, deviam rezar em conjunto uma oração oficial da “Sagrada Escravidão”, que foi composta pelo próprio Plínio Corrêa para ser rezada para ele mesmo.
Plínio é tido pela TFP como a encarnação do Coração Imaculado de Nossa Senhora e poderia dispor de seus escravos como míseros objetos sem vontade própria (supunham que eles mesmos não viviam, porém era o Senhor Plínio Corrêa que vivia neles, e dele vinham todas as graças); criam, também, que a grandeza de Plínio Corrêa de Oliveira faria de cada um deles um perfeito Apóstolo dos Últimos Tempos, segundo a oração de São Luís Maria Grignion de Montfort. Os escravos da Sempre Viva bendiziam a contrarrevolução; as reuniões daquela seita interna começavam recitando-se três vezes a Ave-Maria, sendo comum que os escravos de Plínio Corrêa se confessassem com ele e, finda a confissão, se o escravo pedisse, Plínio esbofeteava seu rosto três vezes e, depois, dava-lhe a bênção – “absolvição”.
Assim, há, na TFP, um culto a Plínio Corrêa de Oliveira com teses delirantes patrocinadas, em vida, pelo próprio Plínio. A sociedade secreta Sempre Viva continua a existir, agora escondida sob a capa dos Arautos do Evangelho, e continua a cultuar Plínio Corrêa de Oliveira, a mãe dele (Dona Lucília) e o Padre João Scognamiglio Clá Dias, atual presidente da Sociedade.
Durante as décadas de 60, 70 e 80, a organização tomava as ruas, empunhando megafones e umestandarte, no qual reluzia um leão dourado, em marchas contra a reforma agrária e o aborto; palestras, jornadas, círculos de estudo, caravanas, campanhas públicas e marchas eram os instrumentos da TFP, uma entidade, então, relevante como referência influente na agenda conservadora do País. A TFP apoiou a “Marcha da Família com Deus e pela Liberdade” e defendeu a deposição do Presidente João Goulart, visto por ela como uma “ameaça comunista”.
Em 1966, encabeçou uma campanha, realizando um abaixo-assinado, pedindo que o projeto divorcista não fosse à votação na Câmara dos Deputados. Em 1967, por ocasião do 50º Aniversário da Revolução Bolchevique, a Sociedade soltou um manifesto, denunciando a habilidade com que a “seita marxista” sabia inocular por toda parte o relativismo dialético e propondo que, naquele cinquentenário, seria preciso proclamar que o anticomunismo era uma posição legítima e necessária; ainda em 1967, em um manifesto, ela considerava que o comunismo se encontrava no apogeu, dominando um dos mais extensos impérios da História (desde o Elba até o Pacífico, desde o Polo Norte até o Vietnã, acrescentando-se a ele diversos ‘enclaves’ vermelhos na própria Ásia, África e América).
Em 1968, por ocasião da primeira visita de um Papa à América Latina, a Tradição, Família e Propriedade coletou, em ruas e praças públicas do Brasil, 1.600.368 (um milhão, seiscentas mil, trezentas e sessenta e oito) assinaturas contra a “infiltração comunista na Igreja”; tal abaixo-assinado contou com o apoio de dezenas de arcebispos e bispos, centenas de sacerdotes, ministros de Estado, governadores, parlamentares e homens públicos. Ainda em julho daquele ano, numa carta escrita por Plínio Corrêa de Oliveira a Dom Hélder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife, a TFP denunciava como subversivas as medidas propostas pelo Padre Joseph Comblin, professor do Instituto Teológico do Recife, para solução dos problemas brasileiros.
Durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1986, a TFP manifestou que a aplicação simultânea da reforma agrária, urbana, empresarial, da saúde e do ensino, tanto público quanto privado, equivaleria a empurrar o povo brasileiro para o comunismo, e voltou-se para o Centrão com simpatia.
Em 2004, fez conhecer discordância pública ao Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, bem como a altas personalidades eclesiásticas, pelo apoio dado à aplicação, pelo Governo Lula, do Pano Nacional de Reforma Agrária, o qual a TFP considerou radical e atrevido. Na ocasião, lançou o manifesto intitulado “Bispos encaminham o País para a luta de classes e a revolução social?”, apontando indevida intromissão dos bispos em assunto temporal, salientando a incompatibilidade da doutrina católica com a reforma agrária proposta e alertando para a existência de um pacto agro-reformista entre o Governo Lula e a CNBB.
Desde a fundação da primeira TFP, seguiu-se a institucionalização de várias outras coirmãs no mundo. Dentre elas, destacam-se as da Argentina, do Chile (que denunciava o Presidente Eduardo Frei como sendo um democrata-cristão esquerdista e reformista, responsável por abrir as portas daquele país para o comunismo, bem como também denunciava o Presidente Salvador Allende), Uruguai (que culpava a “crise religiosa-ideológica” uruguaia em função das tensões causadas pelo comunismo e alertava que o período eleitoral seguinte pretendia levar a nação rumo ao socialismo), Peru (que se preocupava com o avanço das ideias esquerdistas, sobretudo dos meios católicos peruanos, e fez campanha, em 1987, contra a estatização dos bancos), da Espanha – a Sociedad Española de Defensa de la Tradición, Familia y Propriedad Covadonga (que fazia campanha contra a implantação do divórcio, do aborto e da atonia do público ante a revolução socialista) –, Venezuela (que, em 1976, auspiciou a visita ao país da imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima que verteu lágrimas e Nova Orleans-EUA; além disso, manifestou, em 1978, que a Venezuela estava sendo gradualmente conduzida em direção ao Estado socialista), dos Estados Unidos (onde foi apoiada, em 1984, pelo Presidente Ronald Reagan, e disse que a SWAPO – South West Africa People’s Organization é um “cavalo de Troia” do comunismo introduzido na Namíbia) e da França (onde, em 1977, abriu uma escola secundária e estabeleceu uma campanha mundial contra o socialismo autogestionário de Mitterrand).
Atualmente, a TFP é liderada pelo Monsenhor João Clá e incubou a militância da entidade em favor da associação religiosa Arautos do Evangelho. Seus atuais dirigentes foram, em grande parte, investidos sacerdotes, inclusiva o atual líder, ordenado com 64 anos de idade. A organização mantém laços estreitos com os grupos católicos Permanência, no Rio de Janeiro, e Hora Presente, em São Paulo.
Os integrantes da Tradição, Família e Propriedade voltaram às ruas, advogando a união das forças conservadoras. Eles têm ido às cidades coletar adesão para um abaixo-assinado contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo e contra a comunhão aos divorciados. O grupo pretende coletar 500 mil assinaturas junto a outras organizações por todo o mundo e enviar para o Papa.
A pauta ultradireitista do atual governo agrada à TFP, que aplaude os compromissos da Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, com a vida desde sua concepção, com a família tradicional e com o direito de os pais educarem seus filhos em casa, em vez de enviá-los à escola; também apoia a luta travada pelo governo contra o que chama de “ecoterrorismo” e o ambientalismo, no qual enxerga  a “insidiosa transformação de vermelhos em verdes”, e completa assinalando que “esse movimento ecológico é infiltrado por ideias panteístas.” Como Jair Bolsonaro, os militantes da sociedade criticam a política indigenistas dos governos anteriores, advogando que a fé cristã seja ensinada às tribos como forma de levar a civilização a esses povos; também compartilham das ressalvas do Presidente da República ao movimento negro, a quem acusam de fomentar o racismo, problema que, na opinião da TFP, nunca houve no Brasil. Além disso, eles se opõem à punição para os fazendeiros que utilizam trabalho escravo.
Com relação à utilização de armas de fogo pelos cidadãos, a organização pontua que o direito à defesa pessoal e à propriedade são direitos naturais dos seres humanos, e não uma concessão do Estado. A entidade concorda com a posse e o porte de armas, ataca a imprensa e a chama de “ditadora do politicamente correto.”
A TFP é favorável ao parlamentarismo como primeira etapa para a restauração da monarquia.
Cruzeiro-DF, 30 de dezembro de 2019
SALIN SIDDARTHA