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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Desmonte da Casa de Rui Barbosa é mais uma agressão bolsonarista à inteligência

Sexta, 17 de janeiro de 2020
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Escrevo sobre a mais recente agressão do governo à inteligência: a razia que desmontou a área de pesquisa da Fundação Casa de Rui Barbosa, um dos mais importantes centros de produção de conhecimento do país, que, pelo respeito à sua excelência, até aqui vinha passando incólume pelas turbulências da tragédia política brasileira, sobrevivendo mesmo ao mandarinato militar, à aventura Collor de Mello e ao golpe de Temer e seus cúmplices. 

Nada obstante sua gravidade, o explícito projeto de destruição da FCRB, pelo que ela é e pelo que representa, é, em si, apenas mais um elo em extensíssima corrente de agressões à inteligência brasileira sob o mando da extrema-direita; não é um ponto de partida nem muito menos um ponto de chegada, e por isso mesmo não pode ser recebido com qualquer sorte de surpresa, até porque tudo é admissível sob o bolsonarismo, e nada é fato isolado ou produto do acaso. Ora, esse é o governo que demitiu Ricardo Galvão da direção do INPE e nomeou para o Ministério da Educação, seguidamente, o néscio Ricardo Vélez Rodriguez, e o lamentável Abraham Weintraub, um analfabeto funcional incumbido da demolição do ensino público no país.

Para esse governo, as universidades públicas são “focos de balbúrdia” e centros  de plantação de maconha. Para o capitão Bolsonaro os livros didáticos têm muitas letras e poucas figurinhas, e os concursos públicos selecionam esquerdistas. Trata-se de governo que considera Paulo Freire um energúmeno e Fernanda Montenegro, uma figura desprezível. Dele, que  se pode esperar?

Por que a Fundação Casa de Rui Barbosa, já abatida com a premonitória mudança de presidência, poderia ficar de fora? E por que acaso ficarão outras instituições? O que precisa ser entendido é que  a causa de seus funcionários é a mesma do pessoal da Funarte, da Casa da Moeda, do IPHAN, da Eletrobras, da Petrobras, da área de saneamento, do meio ambiente, da Funai e dos povos indígenas.

É um absurdo inaceitável a demissão dos pesquisadores da Casa de Rui. Charles Gomes, Jöelle Rouchou, Flora Süssekind, José Almino e Antônio Herculano merecem nossa solidariedade e estendamos nosso apoio aos seus colegas de trabalho que, lutando internamente, persistem no propósito de resistir ao arbítrio e salvar a instituição que precisa deles, e que, como tantas outras, carece do apoio da opinião pública para sobreviver sem se abastardar. Ao lado de muitos companheiros da batalha da cultura estive diante dos portões da casa, significativamente fechados ao público pela atual presidente, antiga redatora de programas da TV do notório “bispo” Edir Macedo. E lá voltaremos todos sempre que nossa presença puder significar, pelo menos, que não estamos de braços cruzados diante da audaciosa tentativa de destruir nosso futuro.
Mas é preciso dizer que esta não é a questão fundamental, nem encerra a luta toda. É preciso erguer a cabeça e olhar o campo todo.

Há, em marcha, visível como o Corcovado, claro como a luz do meio-dia, um projeto de desconstrução nacional. Um competente projeto, diga-se de passagem. De um lado, a desmontagem da economia; de outro, mas completando-o, a destruição da alma nacional com a perseguição à memória, à cultura e às artes, à ciência, à tecnologia e à pesquisa. Associam-se o ultraliberalismo da política econômica (baseado em mitos como o da “fada da confiança”) e o paleoconservadorismo político. É preciso combatê-los ambos – o assédio econômico e o cultural –, pois, de fato, constituem uma unidade, isto porque só um governo autoritário pode sustentar uma política econômica que investe no aprofundamento da desigualdade social.
A inteligência e a criação, em suas mais variadas formas de manifestação, estão postas em xeque, por serem incompatíveis com o projeto autoritário que tem o bolsonarismo como o nome de fantasia. O conhecimento, e, portanto, seus centros de formulação, em todo o mundo e em todos os tempos, são os alvos essenciais dos candidatos a autocrata.

Há na causa da Casa de Rui Barbosa, que é uma questão política, um óbvio componente humano, quando se trata da exoneração injustificada de cinco profissionais. É relevante, ainda mais, porque essas exonerações implicam a desmontagem do mais importante núcleo de pesquisa de uma das mais destacadas instituições culturais e científicas do país, e esse caráter precisa ser, sempre, posto de manifesto, como é preciso dizer que ele não encerra toda a gravidade do desafio, que radica na natureza do bolsonarismo, besta fera que corre solta até aqui.
Insisto neste ponto: não estamos diante nem de acaso nem de fato isolado; não se trata de “acidente” de percurso ou “ponto fora da curva”, pois há uma lógica interna perversa costurando a aparente ilogicidade do bolsonarismo, que age de modo pensado, e pensadas e planejadas são levadas à ação suas decisões. Há concerto e muita racionalidade nesse aparente conjunto de absurdos, que alimenta o comentário frívolo, dá mote aos humoristas (que os temos muitos e talentosos) e distrai a opinião pública da gravidade disto: o projeto de desconstrução nacional que tem o capitão e sua súcia como espoletas, e, na retaguarda, além das baionetas  e dos cassetetes, o grande empresariado nativo ou aqui instalado.
Não se trata, porém, tão-só, de ações de governo, pois o bolsonarismo se estende por todo o aparelho do Estado e alcança crescentes setores da sociedade com o avanço da pauta ultraconservadora, e a todos implica, pois há um universo de possibilidades entre a rapinagem econômica do neoliberalismo e o autoritarismo político, um populismo de extrema-direita infenso à ordem democrática.
O poder judiciário – a reforma do poder judiciário visando à sua democratização é mais importante, hoje, do que a reforma agrária – é aquele aparelho do Estado que mais rapidamente responde aos apelos do autoritarismo e de todo oficialismo, ou seja, de todo poder de fato, ou de direito.

A tesoura judicial entrou em cena, mais recentemente, com a decisão de anônimo desembargador do Rio de Janeiro que proibiu a exibição, pela televisão, de uma paródia bíblica de gosto discutível. Atendendo à liminar que pedia a interdição e indenização gorda, o juiz, após informar que a sociedade brasileira é majoritariamente cristã, o que não vem ao caso por não se tratar esta de argumentação jurídica, afirma que “o direito à liberdade de expressão, impressa e artística não é absoluto”. É, sim, senhor juiz, porque é absoluto o veto a qualquer sorte de censura, estampado no inciso IX do Art. 1º da Constituição que todo julgador deveria respeitar: “é livre a manifestação da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura e licença”. Comando reforçado, de modo límpido, no art. 220, § 2º: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.  Ao ofendido, cabe o direito de resposta e indenização. Essa é a regra. E vale para tudo e para todos. Não cabe censura a nada, nem à crítica a qualquer religião, católica ou muçulmana, ou judaica, ou a esta ou aquela etnia ou “raça”, valor ideológico ou opção identitária. Por isso também errou o ministro Dias Toffoli quando, para fulminar a decisão do juiz fluminense, alega a longevidade da fé cristã (que não estava e não está em jogo), fugindo assim da questão crucial, que é o mandamento constitucional.

Para o poder judiciário, o império constitucional parece perigoso, pois pode dificultar as decisões políticas de acomodação. Assim o desembargador-censor, que desta feita entendeu limitada a liberdade de expressão, em julgamento anterior, quando as contingências lhe impunham absolver o capitão Messias, acusado de homofobia e racismo, alegou não ver  “como, em uma democracia, censurar o direito de manifestação de quem quer que seja”. Quando foi faccioso? Nos dois casos.

É trágico pensar que 2019 poderia ter sido pior, difícil dizer o que esperar deste 2020, que chega cercado de maus presságios.    

 Qual o tamanho e a duração da onda reacionária que engolfa o mundo e nos atinge em cheio?

A medida do tamanho e da intensidade do desafio brasileiro está na proporção direta de nossa capacidade de resistência e reação, em prontidão permanente.

A pergunta que não pode calar: quem mandou o vizinho de Bolsonaro assassinar a vereadora Marielle Franco? 
Roberto Amaral
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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia