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(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Meio ambiente: MPF acompanha com atenção ADI contra resolução do Conama sobre qualidade do ar; e pede inconstitucionalidade de decreto que alterou composição e funcionamento do Conama, que neutraliza participação da sociedade civil no colegiado

Quarta, 8 de janeiro de 2019
Do MPF

Autores da representação que deu origem à ação proposta em maio realizaram no ano passado audiência pública sobre o tema

Foto mostra emissão de fumaça por indústria
Foto: Pulsar Imagens
Encontra-se em tramitação no STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.148, que pede a declaração de inconstitucionalidade da Resolução Conama 491/2018, norma que fixou novos padrões de qualidade do ar (PQAr’s) para o país, isto é, os níveis de poluição a serem considerados como “toleráveis” à saúde da população. A ação foi proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR) em maio do ano passado, acolhendo a representação feita pelos procuradores regionais José Leonidas Bellem de Lima e Fátima Borghi, em conjunto com duas entidades ambientalistas. O processo tem como relatora a ministra Cármen Lúcia. É sustentado na ação que a Resolução do Conama não trata o assunto de forma eficaz e adequada: prevê valores iniciais muito permissivos, não fixa prazo e apresenta procedimento decisório vago. Outro ponto questionado pela PGR é que a norma não é transparente, uma vez que não garante a disponibilização à população de informações claras e acessíveis sobre a qualidade do ar.
Na representação, que faz parte da documentação anexa à peça inicial, é possível ter um vasto panorama do quanto a poluição do ar afeta a saúde da população. No âmbito mundial, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou estimativas que mostravam que cerca de 7 milhões de pessoas morrem, a cada ano, em decorrência da exposição a micropartículas poluentes em suspensão no ar. Desse total, 4,2 milhões de mortes são causadas por contaminação de ambientes externos (poluição atmosférica) e o restante por queima de combustíveis poluentes dentro das casas. No ano passado, pesquisadores europeus apresentaram estimativas bem mais alarmantes, que apontam a poluição do ar como responsável por 8,8 milhões de mortes por ano – número superior ao estimado pela OMS de mortes atribuídas ao cigarro em todo o mundo.

A poluição do ar sobre os organismos humanos tem efeitos nocivos em todas as fases do ciclo vital, do nascituro ao idoso, impactando inclusive sobre a formação fetal. No Brasil, o quadro não é menos drástico. Estima-se que 50 mil mortes anuais no país sejam decorrentes de poluição atmosférica. Além disso, o custo para o SUS de internações e tratamentos em razão de doenças provocadas pela poluição do ar chega a cifras milionárias.
Omissões da resolução – Apesar de todo esse quadro, a Resolução 491/2018 do Conama é omissa em seu dever de proteger a vida, a saúde, e um ambiente ecologicamente equilibrado. No entanto, para evitar o retorno à norma anterior (Resolução Conama 3/1990), ainda menos protetiva, a PGR pediu que a inconstitucionalidade seja declarada sem que se decrete a nulidade da norma. O pedido é para que o STF obrigue o Conama a elaborar, em até 24 meses, novo regramento com capacidade protetiva suficiente e que corrija as distorções apontadas. Caso o STF não decida dessa forma, a solicitação é para que seja considerado inconstitucional, pelo menos, um trecho específico (art. 4º– §4º), por dar respaldo à perpetuação do padrão de qualidade do ar inicial, extremamente permissivo quando comparado com as guias apresentadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2005.
A ADI traz um quadro comparativo: de um lado estão os Padrões de Qualidade do Ar (PQAs) estabelecidos pelo Conama como teto, e do outro, as diretrizes da OMS. A avaliação é a de que a resolução não regulamenta de forma minimamente eficaz e adequada os padrões de qualidade do ar. “Ao ser vaga e permissiva, a norma não garante o mínimo existencial socioambiental, de vital importância para a sobrevivência da própria humanidade”, aponta a PGR.
A resolução do Conama estabelece ainda o critério de altíssimas concentrações de poluentes para a declaração de episódios críticos. O entendimento é o de que a norma não apenas deixa de tomar providências contra a poluição, mas passa principalmente uma sensação de falsa segurança, permitindo que a saúde da população siga sendo silenciosamente prejudicada. Outro problema é que o regramento é vago quanto à forma e ao conteúdo exigíveis para a informação que os estados devem transmitir ao público em episódios críticos de poluição do ar. “Relegam-se todas essas questões ao dito Plano para Episódios Críticos de Poluição do Ar (art. 10), documento a ser elaborado pelo próprio estado, e sobre cujos contornos e conteúdo mínimo nada prevê a resolução do Conama”, aponta a ação. Além disso, o regramento estabelece dever genérico de divulgação de dados pelos órgãos ambientais, sem prever qualquer requisito técnico ou procedimental a respeito da informação em si.
Em audiência pública promovida pelos autores da representação em maio de 2018, quando a minuta da resolução não havia ainda sido aprovada, especialistas de diversas áreas já chamavam atenção para esses e outros pontos problemáticos da norma e do procedimento de sua formulação nas câmaras técnicas do Conama. Esses aportes integraram um relatório conclusivo que foi levado ao conhecimento do colegiado ambiental meses antes de a matéria ir a Plenário.
PQAr’s – Na ADI, a PGR explica que os Padrões de Qualidade do Ar devem ser respeitados e levados em conta pelos entes estatais no desenvolvimento de suas políticas, programas e ações de gestão ambiental. Esclarece ainda que, a depender dos valores adotados, os PQArs assumem a função de meta a ser atingida, estimulando gestores públicos, setor produtivo e a sociedade civil organizada a pautarem suas agendas em conformidade com esse limite, mesmo que as autoridades ambientais estaduais possam estabelecer suas próprias metas, desde que mais restritivas (mais rigorosas e mais seguras) que os PQArs nacionais. “Esses índices são peças centrais e decisivas para o sucesso das políticas públicas de promoção da melhoria da qualidade do ar, devem sempre refletir objetivamente os níveis mais protetivos à saúde da população segundo a ciência médica atual, ou ao menos conduzir a uma progressiva convergência com esses referenciais”, reforça a PGR.
Deficit democrático – Ao reconstruir o longo processo de formulação da Resolução nº 491/2018, a representação feita pelos procuradores regionais da República da 3ª Região acaba por demonstrar que a composição do Conama sofria, já à época, de um deficit democrático. Constatava-se então o desequilíbrio existente entre a esmagadora representação de interesses político-governamentais, econômicos e classistas, de um lado, e, de outro, uma diminuta participação da sociedade civil organizada, ali representada por entidades ambientalistas comprometidas com o dever constitucional de proteção ao meio ambiente. Nessas condições, a resolução acabou sendo concluída com normas ainda menos protetivas do que inicialmente propostas pelo próprio governo, por meio do Ministério do Meio Ambiente. Num primeiro momento, a minuta apresentada pelo ministério havia estabelecido prazo para o atingimento de um padrão final de qualidade do ar para 2030, mas acabou voltando atrás sem qualquer fundamentação, resultando na inócua resolução aprovada no ano passado.
Vale ressaltar que a situação no Conselho, hoje, ainda é muito pior, após a publicação do Decreto 9.806/2019, que promoveu reforma na composição, reduzindo ou eliminando na máxima extensão possível a participação da sociedade. O decreto foi alvo de uma representação à PGR feita pelos mesmos procuradores regionais da República, o que resultou na ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 623, também em tramitação no Supremo.
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MPF pede inconstitucionalidade de decreto que alterou composição e funcionamento do Conama

Decreto de maio do ano passado encolhe e neutraliza participação da sociedade civil no colegiado, segmento que já era minoritário
arte com fundo verde claro com o desenho vazado de uma árvore ao centro do quadrado e embaixo está escrito meio ambiente. O desenho e as escritas são na cor branca
Arte: Secom/PGR
Instituído em 1981 para atuar na elaboração de políticas públicas de preservação ambiental e dos recursos naturais, o Conama é um órgão federal com função consultiva e deliberativa. Desde sua criação, o colegiado já editou quase cinco centenas de resoluções, normas que, em nível infralegal, regulamentam uma ampla gama de questões afetas ao meio ambiente. Até a publicação do decreto, o Conama era composto por pouco mais de 100 conselheiros, distribuídos em cinco segmentos de representação: governos municipais, governos estaduais, governo federal, entidades empresariais e entidades da sociedade civil, nesta última incluídos representantes de organizações de trabalhadores, das comunidades indígena e científica, entre outros. Com as mudanças, o número de conselheiros com direito a voto foi reduzido a 23.O Ministério Público Federal (MPF) propôs uma ação apontando a inconstitucionalidade do Decreto 9.806/2019, que alterou a composição e o funcionamento do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Entre as mudanças, a norma publicada em maio reduziu o número de vagas destinadas à sociedade civil, enquanto, proporcionalmente, ampliou a presença do governo federal no colegiado. As ONGs ambientalistas tiveram seus mandatos cindidos à metade, e passaram a ser escolhidas por meio de sorteio. A Arguição de Descumprimento por Preceito Fundamental (ADPF) 623 deriva de uma representação feita à Procuradoria-Geral da República (PGR) pelos procuradores regionais da 3ª Região, José Leonidas Bellem de Lima e Fátima Borghi, em conjunto com entidades ambientalistas. Ajuizada em setembro último no Supremo Tribunal Federal (STF), encontra-se sob a relatoria da ministra Rosa Weber. O MPF indica diversos pontos da nova regulamentação que ferem preceitos constitucionais, sobretudo no que diz respeito aos princípios da participação popular direta da sociedade, da igualdade e da vedação do retrocesso socioambiental. Além disso, a norma poderá deixar desprotegidos os direitos fundamentais ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à saúde e à vida.
O decreto, assinado conjuntamente pelo presidente da República e pelo ministro do Meio Ambiente, cortou de 11 para quatro o número de assentos reservados às organizações ambientalistas. Por outro lado, foi ampliada a presença do bloco governamental, que, agora com 17 assentos, passa a deter 74% dos votos no conselho. Além disso, foi excluída a representação de órgãos federais mais afetos à temática do meio ambiente e de outros direitos fundamentais conexos, de que são exemplos a Agência Nacional de Águas (ANA), o Instituto Chico Mendes da Biodiversidade (ICMBio) e o Ministério da Saúde não têm mais vaga no conselho. Ao mesmo tempo, deu-se assento cativo no Conama ao Ministério de Minas e Energia e ao Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa), pastas naturalmente estranhas aos propósitos de proteção e preservação ambientais. Apesar de sucessivas alterações ao longo de sua história, em nenhuma reforma anterior “o Conama sofreu retrocessos tão acentuados em termos de pluralidade e amplitude da participação popular e do controle social”, afirmam os procuradores regionais autores da representação à PGR.
Mandato e escolha por sorteio – A nova regulamentação também determina que a escolha das entidades ambientalistas para compor o Conama, antes feita democraticamente por meio de eleição, seja realizada por sorteio. O MPF argumenta que essa alteração atenta contra o direito de participação direta da sociedade na formulação das políticas públicas ambientais, retirando das ONGs seu poder de auto-organização e impedindo que elas escolham por critérios objetivos os representantes mais aptos para atuar no conselho. Com a mudança, os procuradores alertam que são grandes as chances de que entidades sem condições estruturais para representar o bloco sejam as selecionadas. Eles também observam que ao substituir o sufrágio pela pura aleatoriedade como técnica de seleção, o decreto não violou apenas o direito de autonomia de um segmento, mas acabou por condenar a população ao risco de ver totalmente neutralizada a sua capacidade de participação no Conama.
Outra alteração foi a duração do mandato das ONGs, que passou de dois para apenas um ano, sem direito a recondução. Os procuradores que assinaram a representação, com experiência de atuação naquele colegiado como representantes do Ministério Público Federal junto ao Conama desde 2012, afirmam que o prazo reduzido dificulta o desenvolvimento de um trabalho consistente no Conselho. “Um frenético giro na troca das cadeiras não propiciará em nada o aprimoramento dos trabalhos no Conama; ao contrário, impedirá um mais adequado aprofundamento no conhecimento da matéria”, sustentam. Para o MPF, a reforma do Conama ocorre em um contexto de eliminação na máxima extensão possível das instâncias de participação da sociedade civil na formação de ações do Poder Público e de um desmonte de todo o aparato organizacional do Estado brasileiro para proteção e preservação ambiental. O Conama representa uma interseção de ambas tendências.
Falta de paridade – Os procuradores regionais afirmam sempre ter havido um desequilíbrio de forças no Conama. De um lado, segundo eles, sempre se conferiu uma grande maioria de assentos a órgãos e entidades que ali estão para defender interesses próprios, que apesar de terem naturezas variadas (governamental, econômica e corporativa), tendem a se unir e a se antagonizar aos propósitos de proteção do meio ambiente e de outros bens relacionados. Do outro lado, portanto, restaria uma ínfima minoria de vagas às ONGs ambientalistas, representantes da sociedade civil tidos como os mais legitimados para a defesa exclusiva dos direitos fundamentais ali em jogo, o que as torna incapazes de fazer prevalecer sua posição, limitando até mesmo seu poder de influenciar nos procedimentos e no resultado das decisões colegiadas.
Nesse sentido, sustentam que, por estar o Conama “vinculado constitucional e legalmente ao cumprimento de sua finalidade de proteção ambiental”, deveria, portanto, ser conferida a maioria de assentos justamente a essas ONGs ambientalistas. A disparidade na composição do Conama reflete inclusive na qualidade protetiva das normas que edita. Exemplo disso é a Resolução 491, publicada pelo colegiado em novembro de 2018, e que estabeleceu novos padrões nacionais de qualidade do ar sem prazos de progressão e com valores iniciais muito mais permissivos que aqueles recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Essa norma também está sendo questionada no Supremo, por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6.148), proposta pela Procuradoria-Geral da República, e baseada em representação dos mesmos procuradores regionais, em conjunto com entidades ambientalistas. Naquela ocasião, já haviam apontado para o déficit democrático existente no Conama, com composição ainda anterior à da reforma.
Os autores da representação sustentam, por fim, que a não correção dessas disparidades (existentes também em colegiados participativos estaduais e locais) continuará dando ensejo a desastres ambientais e humanos como os de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais. Afirmam que a supressão da sociedade civil e a prevalência de interesses estranhos, e até mesmo avessos, à proteção ambiental tende a resultar na desconsideração de preceitos básicos do direito ambiental, como os princípios da prevenção e da precaução, que devem reger toda e qualquer decisão nessa área.