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(Millôr Fernandes)

sábado, 12 de setembro de 2020

Ricardo Galvão, ex-diretor do Inpe, em entrevista à Revista Chico nº 7

  • Sábado, 12 de setembro de 2020
  • Do Portal Gama Cidadão
  • Com informações do CBHSF*
Revista Chico nº 7: Ricardo Galvão

Em julho de 2019, o mineiro Ricardo Galvão, então presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), virou notícia. Após divulgar que o desmatamento na floresta Amazônia teve um aumento de 40% em um ano, viu-se questionado publicamente pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Em vez de recuar, levantou a cabeça, reafirmou a veracidade das informações e seguiu firme, protagonizando um duro embate com o governo que lhe custou o cargo. Menos de seis meses depois, no começo de dezembro, ele estava de novo nos jornais, desta vez como um dos dez cientistas do ano da prestigiada revista Nature.

Aos 71 anos, do isolamento em que se encontrava desde o início da pandemia do Covid-19, o professor do Instituto de Física da USP falou à CHICO.

Muito se tem debatido sobre o futuro da humanidade pós-pandemia. O senhor acredita que esta tragédia pode alterar positivamente nossa relação com o meio ambiente?

Falando como cidadão, e não como cientista, acredito que essa pandemia naturalmente vai trazer uma mudança muito grande ao mundo. A primeira coisa que nós temos que nos conscientizar: estamos todos conectados. Vamos todos para o mesmo lugar. Espero que as pessoas, assim, tenham um pouco mais de consciência de que são frágeis e de que todo o planeta é frágil. Essa pandemia mostra também que esse desenvolvimento dos últimos cem anos – baseado numa disponibilidade muito grande de combustíveis fósseis baratos e num capitalismo que não se preocupa com o meio ambiente – não é mais sustentável. Nossa visão desse desenvolvimento capitalista tradicional tem que ser alterada. Outro aspecto importante que virá é a percepção de que a ciência é essencial. Todas as soluções que estamos buscando precisam ser baseadas em ciência.

O senhor deixou a presidência do INPE justamente por defender a soberania da ciência. Como avalia sua passagem pelo órgão e as atuais políticas públicas para o meio ambiente?

Ainda durante a campanha, o então candidato Jair Bolsonaro deixou muito claro que não se preocupava com a questão ambiental. Essa postura está sendo confirmada dia a dia pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. O governo considera a preservação da Amazônia e o controle do desmatamento ortogonais ao desenvolvimento econômico da região.

Sua saída do INPE causou grande ruído. O senhor já esperava que fosse assim?

Nós já esperávamos problemas, mas não com a grandeza que se deu. Foi terrível. O INPE sempre se responsabilizou pelo monitoramento do desmatamento da Amazônia e, a partir de dezembro de 2017, de todos os oito biomas brasileiros, dos pampas e do pantanal até o cerrado. Nós tínhamos, até final de 2018, um acordo de cooperação técnica com o Ibama. A responsabilidade do INPE era prover os dados para o Ibama fazer as autuações cabíveis. Esse acordo de cooperação técnica acabou, e nós acreditávamos que o novo governo iria renová-lo. Mas isso não aconteceu. Então as minhas preocupações começaram a crescer.

O descompasso entre os dados do INPE e a atuação do governo diante das evidências é algo novo?

Não, já houve no passado casos também complicados de confronto entre o INPE e o governo com relação aos dados na Amazônia. Ocorreu no governo Lula, em 2008. O INPE detectou um desmatamento enorme naquele ano, e 53% do desmatamento era no Mato Grosso. E o governador do estado na época, Blairo Maggi, acusou o INPE, aliás, usando quase as mesmas palavras do Bolsonaro, ao dizer que os dados não eram verdadeiros e que o INPE estava trabalhando a serviço de ONGs. Infelizmente, o presidente Lula escutou o governador e colocou em dúvida os dados, mas, à época, nós tínhamos Marina Silva como ministra do Meio Ambiente. E ela teve uma ação completamente oposta à que teve Ricardo Salles no meu caso e convocou uma reunião com o presidente, o governador e os diretores do INPE e do Ibama, para discutir o assunto em Brasília. Foi uma reunião muito difícil, de três horas, e, por fim, o presidente Lula decidiu seguir a sugestão da ministra Marina Silva de fazer um sobrevoo sobre as áreas que o INPE dizia que estavam sendo desmatadas e que o governador, por sua vez, negava. Foi feito o sobrevoo e caiu por terra tudo o que Blairo Maggi falava. Usando os dados do INPE, então, a ministra atuou fortemente no controle do desmatamento, não só autuando os desmatadores e mineradores ilegais, mas também confiscando equipamentos, com ações muito fortes.

Houve um pico de desmatamento nessa época? As ações do governo conseguiram reverter o quadro?

Na verdade, temos dois grandes picos no desmatamento. O primeiro foi em 1995, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, com 27 mil km2 desmatados. O presidente atuou de uma forma diferente: o que ele fez foi aumentar o número de reservas indígenas e o número de áreas protegidas. Foi uma ação efetiva e caiu o índice do desmatamento durante um tempo, mas já no final da gestão dele, quando o governo estava mais fraco por razões econômicas e quando havia muita demanda internacional por madeira, começou a crescer o desmatamento. Então vem o segundo pico, no governo Lula, com 27.400 km2. Mas aí Marina Silva já era ministra, e ela solicitou ao INPE que não só desse os dados de desmatamento no final do ano, mas que criasse um sistema de alertas diários. Ela e o ministro Carlos Minc conseguiram reduzir o desmatamento para pouco mais de 4 mil km2 em 2012. Isso foi considerado pela revista Nature o maior exemplo de controle de desmatamento em florestas tropicais dos últimos dez anos no mundo.

Mas o país não conseguiu manter esse tipo de ação, certo?

Infelizmente, isso tudo se perdeu neste governo, pela ação do presidente que temos e, principalmente, do ministro Ricardo Salles. Logo que ele entrou no governo, em janeiro, fez a primeira acusação ao INPE, dizendo que o sistema de alertas não era bom, que não era suficientemente preciso, que havia erros e inconsistências, mas nunca apresentando números, atuando da forma como atua este governo, de falar algo na imprensa sem apresentar provas. Eu não respondi a ele, mas ao ministro da Ciência e Tecnologia, que é responsável pelo INPE, mostrando que Salles estava errado. Publicamos vários relatórios e mandamos sempre ao ministério, mas os ataques ao sistema desenvolvido pelo INPE continuavam porque ele tinha interesse em comprar o sistema de uma empresa americana.

O senhor acredita que esse interesse comercial sustenta o negacionismo científico?

Na verdade, o grande interesse é acabar com o monitoramento e as ações fortes contra o desmatamento e a mineração ilegal na Amazônia. Eles acreditam que a Amazônia, para ser desenvolvida economicamente, precisa ser desmatada. No fundo, o grande negacionismo deles tem como centro não acreditar em mudanças climáticas. Eles não acreditam no papel importantíssimo da Amazônia para o sequestro de carbono. O maior mecanismo que a humanidade tem para diminuir gás carbônico na atmosfera são as florestas tropicais que absorvem grande quantidade de carbono. Eles não acreditam nisso.

O que se pode fazer para tentar conter o desmatamento? É possível conciliar desenvolvimento econômico e preservação no território da Amazônia?

Primeiro, temos que investir em controle e, mais que isso, na recuperação das terras, ou seja, plantar novamente. O desenvolvimento da Amazônia tem que ser baseado em ciência e numa exploração inteligente da sua grande biodiversidade. O que nós ganhamos em venda de açaí, por exemplo, é dez vezes mais do que se ganha em exploração de gado, na mesma área. Mas, se fores para o exterior, verás que em muitos lugares, inclusive na Europa, cerca de 20 ou mais produtos de açaí não são produzidos no Brasil, mas na Califórnia. Isso é um exemplo de uma ação que poderia ser feita. O governo teria que investir, até com isenção fiscal, como se fez com a Zona Franca de Manaus, criando várias zonas francas em toda a Amazônia, explorando a biodiversidade local. Isso é bastante possível.

No ano passado, o desmatamento escalonou a partir de junho, mês em que o país perdeu 762,3 km², ou 60% mais do que se desmatou no mesmo período em 2018. Entramos o mês de junho deste ano em quarentena. O senhor acredita que isso pode criar um terreno fértil para a grilagem?

Sem dúvida. A questão é terrível. O próprio Marcello Brito (ruralista, presidente da Associação Brasileira do Agronegócio) deu uma entrevista recentemente reconhecendo que a grilagem está avançando rapidamente no norte do Mato Grosso. E a principal razão do desmatamento é grilagem de terras, principalmente, em terras públicas, preservadas. Por lei, o Brasil tem o compromisso de não desmatar mais do que 3.900 km2 na Amazônia em 2020. Nós não vamos cumprir isso de jeito nenhum. No ano passado, chegamos a quase 10 mil km2 desmatados. Pelas projeções do INPE, nós vamos provavelmente passar de 12 mil km2 neste ano, porque o desmatamento está muito forte agora e ainda não é a época da seca, quando tudo se agrava. Há uma previsão de que, se nós tivermos um período de seca grande na Amazônia, agora no final de maio, as queimadas vão voltar violentamente.

Os fiscais do Ibama estão trabalhando menos in loco, por causa do isolamento? A fiscalização está mais frouxa, de certa forma, por causa do coronavírus?

A fiscalização está mais frouxa, sim, e claro que é também efeito da pandemia, mas isso é usado como desculpa. O afrouxamento começou no ano passado. O ministro Ricardo Salles demitiu praticamente todos os diretores das agências locais do Ibama e renovou poucos. Muita gente foi demitida, pessoas que estavam em cargos importantes, como a própria presidente do Ibama, Suely Araújo, que comandou o órgão no governo Temer e que atuava muito fortemente contra o desmatamento. A primeira coisa que o Ricardo Salles fez quando entrou no ministério foi demiti-la. Em suma, o desmatamento está correndo solto.
*Com informações do CBHSF – 28/08/2020
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Audrey Furlaneto
Fotos: Arquivo pessoal Ricardo Galvão, Shuterctock e Bruno Kelly/Greenpeace