Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Valentia oportuna

Quarta, 10 de julho de 2013
Por Ivan de Carvalho
O governo brasileiro inicialmente não deu um pio sobre a denúncia de Edward Snowden – muito menos em defesa dele, apontado pelo governo dos Estados Unidos como um delator bandido (a palavra delator foi adotada por quase toda a grande mídia brasileira, papagaiando o discurso das autoridades americanas).

Embora seja óbvio que Snowden é, não um delator bandido, mas um denunciante herói, que deixou namorada, vida muito confortável e invejável remuneração como analista de informática de uma empresa que presta serviços à NSA (sigla, em inglês, da Agência Nacional de Segurança, a mais secreta e poderosa das agências de espionagem e segurança norte-americanas, com segredos que até o presidente dos Estados Unidos talvez desconheça, dentro da filosofia de que “ele não precisa saber”. Nem querem que ele saiba, claro).

Pois Snowden denunciou que a NSA (em colaboração com a CIA e certamente, dentro dos Estados Unidos, o FBI) – estava espionando as comunicações, em larga escala, de moradores nos EUA e de pessoas residentes em um número grande de outros países, por meio de dados obtidos (com ordem judicial para moradores nos EUA) ou sem ela, para moradores no exterior, de empresas de telefonia e da Internet, com a participação preponderante da segunda maior empresa de telefonia dos Estados Unidos e do Google, Facebook, Microsoft, Apple e Skype.

Antes de denúncia começar a ser publicada pelos jornais Washington Post, The Guardian e pelo site Wiki Leaks, Snowden, sabedor que passaria a ser perseguido, deixou o território americano. Ontem, estava numa área de trânsito de um aeroporto de Moscou. Pediu asilo político a 27 países. A Rússia disse daria o asilo se Snowden parasse com as denúncias sobre o monitoramente dos Estados Unidos sobre as comunicações internas e mundiais, mas afirmou saber que ele não estava disposto a isso.

O Brasil nem se dignou responder ao pedido de asilo que lhe foi feito pelo denunciante, o que, na “linguagem” diplomática, significa negativa. Mas ontem, o próprio ministro das Relações Exteriores, Antônio Patriota, se encarregou de declarar que o asilo não será concedido. Dos 27 países, somente a Bolívia, a Nicarágua e a Venezuela comunicaram que concederiam o asilo. Ontem, o chefe do Comitê de Relações Exteriores do Parlamento russo, Alexei Pushkov, colocou no Twitter que Snowden aceitou a oferta do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro. Depois, corrigiu, afirmando que ouvira a informação assistindo a televisão estatal russa Vesti 24.

No começo da noite, o caso, no âmbito internacional, estava nesse pé. No âmbito brasileiro, estava provocando – aliás, desde a véspera – o maior remelexo. Quando o jornal inglês The Guardian noticiou que, pelos documentos fornecidos por Snowden, a NSA e a CIA mantiveram em Brasília uma base de monitoramento de comunicações que espionou o conteúdo de bilhões de telefonemas e e-mails no país, um dos principais alvos desse monitoramento no mundo, segundo Edward Snowden.

Os documentos mostravam a existência da “base” – operada por especialistas da NSA e CIA sob o disfarce de diplomatas – somente até o início da década, mas você pode apostar tudo que tiver, sem medo de perder, que com a persistência desta base ou sem ela (a tecnologia evolui, o governo dos EUA tem acesso direto aos cabos de fibra ótica em seu território, dos quais pode, tecnicamente, captar os dados que quiser).

Quando o governo brasileiro “soube” desse segredo de polichinelo (recentemente li dois livros, um sobre o Google, outro, a transcrição de uma conversa gravada com Julian Assange e mais três conhecidos especialistas em Internet e críticos do rumo que a rede vem tomando com a interferência dos governos) todo ele foi assaltado por uma babreza de arrepiar. Arrepiaram a presidente Dilma Rousseff, o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, o da Justiça, José Eduardo Cardoso. A presidente convocou o embaixador americano para pedir explicações e mandou criar um grupo de investigação, pois o tal monitoramento fere, como ela bem disse, a soberania e a cidadania, esta por quebrar a privacidade dos cidadãos. Valentia vi aí. Tanta que é capaz de ser comemorada nas manifestações de amanhã programadas pelas centrais sindicais governistas, o PT e alguns partidos afiliados, tudo sob estímulo oficial.
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Este artigo foi publicado originariamente na Tribuna da Bahia desta quarta.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.
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