Segunda, 7 de abril de 2014
Paulo Victor Chagas – Repórteres da Agência Brasil
Edição: Denise Griesinger
Maria José Malheiros nasceu Maria
Neide Araújo Moraes, mas durante muito tempo não pôde contar a ninguém
seu verdadeiro nome nem visitar a família sem ser perseguida pela
ditadura iniciada em 1964. Por vários anos, se esquivou de perguntas
sobre seu passado, escondeu sua falsa identidade até de parentes e fugiu
do regime militar por ser considerada a mais perigosa do seu grupo de
militantes.
“Você tem que falar o menos possível de você, de uma
forma normal, pacata. Mas por dentro, você não vive assim”, confessa.
Após receber nesta semana a notícia de que será indenizada pelo Estado
pela perseguição sofrida, Maria José Malheiros, que durante algum tempo
foi também Maria José Novaes, revelou que sempre teve que viver se
escondendo.
O sobrenome Malheiros foi o último a ser utilizado
para escapar da repressão e é com ele que Maria José vive desde 1975.
“Até mesmo pessoas muito próximas da minha família, eu tinha medo que
descobrissem meu nome”, lembra a militante, que morou em uma casa da
qual ninguém, além do seu companheiro, sabia o endereço.
A fuga
para não ser presa e a estratégia do grupo a que pertencia, a Ação
Popular Marxista-Leninista, fizeram com que Maria José passasse grande
parte do período militar percorrendo cidades brasileiras na mira dos
militares, até que decidiu sair do país.
Em 1982, a ditadura já
passava por período de abertura política, mas a possibilidade de ser
descoberta a qualquer momento fez com que a militante, mesmo assim,
fugisse desse “medo permanente”. Ao se mudar para a França, constituiu
nova família, mas a insegurança sobre a sua identidade e a sua memória
permaneceram.
No país europeu, Maria José só foi contar parte de
sua história a seu primeiro filho quando ele já tinha 17 anos. “Ele
acabou adotando aquele modo de viver de jamais fazer perguntas, porque
sabia que eu não podia responder. Até hoje, é como se houvesse uma
espécie de pudor, como se ainda fosse perigoso falar”.
Desde
1969, quando completou a maioridade, Maria José Malheiros evita lidar
com as memórias de seus diferentes nomes. Essas marcas fizeram com que
ela escondesse até hoje trechos do seu passado de militante política,
mas seu relato começa com a atuação no movimento estudantil aos 16 anos.
Militante, sindicalista e perseguida
Chargista no jornal O Popular, em Goiânia, Maria José Malheiros
ilustrava os editoriais. Nas duas vezes em que suas charges escaparam à
censura, o jornal foi fechado. “A charge era imposta pelo próprio
diretor do jornal, mas a maioria das vezes eu tinha uma relativa
liberdade”, conta. Na segunda vez, os exemplares foram destruídos e ela,
mandada embora.
Maria José foi presa duas vezes, ainda menor de
idade, pelas atividades de militância que desenvolvia. Depois da
maioridade, acabou escapando da detenção e da tortura, o que contribuiu
para que se criasse, perante os órgãos repressores, a imagem de que era
“perigosa”. “Como dizia meu companheiro na época: 'no dia em que eles te
prenderem, eles te matam'”.
Ao se mudar para São Paulo, desta
vez sob o codinome de Mariana, foi destacada pela Ação Popular para
atuar como militante no movimento bancário. Lá, iniciou um trabalho
sindicalista que consistia em debater com os colegas as condições de
trabalho e salário dos bancários, mas principalmente a luta contra a
ditadura. “Havia também um trabalho mais clandestino e amplo, de
panfletagem e de denúncia à situação política do país”, lembra ela.
“Era
um período muito difícil. Qualquer coisa, qualquer palavra poderia nos
levar à prisão”. E realmente levou. Todos os militantes nessa operação
bancária foram presos, menos Maria José. Avisada de que a polícia
chegaria ao banco, ela saiu a tempo. “A partir desse momento foi uma
[vida de] clandestinidade completa, com a polícia me procurando com foto
e tudo”.
Com a fuga para a Bahia, deixou mais uma vez de trabalhar, fato hoje reconhecido pelo Estado.
Maria José vai receber mensalmente R$ 1.584 como reparação econômica,
além de parcela única de R$ 153.424 como dívida retroativa pela perda de
seus vínculos com o trabalho.
Ao morar em Vitória da Conquista e
participar do movimento campesino, a então Maria Neide passou a se
chamar Maria José Novaes, pois foi registrada como filha do dirigente da
Ação Popular e do PCdoB, José Gomes Novaes.
Quando se mudou para
Salvador, Maria José teve nova certidão de nascimento, agora com o
sobrenome Malheiros, graças à “coragem” de sua mãe. “Ela teve que
subornar uma pessoa para fazer a identidade para mim, sem que eu
estivesse presente na segurança pública e sem colocar meus dados no
arquivo”, revela Maria José Malheiros.
A Lei da Anistia de 1979 foi a primeira oportunidade de conseguir
regularizar sua situação. Maria José conta que não solicitou os
documentos por decisão do partido. Após se mudar do Brasil, ela voltou
em 1984 para tentar ter seu verdadeiro nome reconhecido, porém mais uma
vez sem sucesso.
Quase duas décadas depois, não foi uma decisão
fácil para Maria José entrar com pedido de anistia, em 2011, numa das
mais de 80 Caravanas da Anistia promovidas pelo governo federal nos
últimos anos. O presidente da Comissão da Anistia, Paulo Abrão, explica
que demorou a convencê-la a confiar na resposta que o Estado daria a
ela.
“Ela me procurou antes de ingressar com o processo de
anistia, ainda quando tinha dúvidas se deveria ou não sair da
clandestinidade”, conta. Segundo o presidente, este caso é exemplo para
que outras pessoas “possam ter a convicção de que democracia é diferente
de ditadura e que a ditadura foi derrotada”.
A aceitação da
própria identidade foi também um obstáculo para Maria José, que nunca se
sentia segura quanto a alguém descobrir que ainda está viva “com um
nome que é falso”. “Eu vivia na contradição de estar sempre vivendo com
outro nome, era como se eu não fosse eu mesma, se não fosse uma pessoa
completa”.
Diante disso, uma solução inédita da Comissão de
Anistia deu o direito a Maria José de ter seu atual nome reconhecido
legalmente. “Viver com o nome falso trazia a ela consequências até os
dias de hoje, com receios e traumas que a impediam de ter uma vida
plena”, explica Paulo Abrão.
Maria José Malheiros retornou
diversas vezes ao Brasil, mas sempre ficava receosa de desembarcar em
São Paulo e no Rio de Janeiro. “Eu passei anos e anos sem caminhar na
rua. Eu descia em Brasília, e meus pais iam me buscar de carro para
evitar que eu fosse vista em Goiânia”, rememora.
Como entrou com o
pedido de anistia política, ela chegou a passar alguns meses no Brasil,
mas conta que só começou a armazenar fotos, por exemplo, depois de 24
de outubro do ano passado, quando seu caso foi julgado na 76ª Caravana
de Anistia. “Todas as fotos da família foram destruídas. Clandestino não
tem imagem”.
Trabalhando na prefeitura de Paris, Maria José
Malheiros ainda não sabe quando retornará ao Brasil para regularizar
seus nomes de nascimento e de vida, mas disse que, se pudesse, voltaria
imediatamente ao cartório onde foi registrada, no interior da Bahia. “O
pedido de anistia me dava essa segurança. Se encontro alguém que olha
meus documentos e vê que eu não tenho o nome com o qual ela me conheceu,
não tem problema. Eu posso falar disso abertamente. Isso era importante
para mim”.
Confira o especial da Agência Brasil sobre o golpe de 1964 Democracia Interrompida