Domingo, 6 de setembro de 2015
Do ESQUERDA.NET
É justo que quem fomenta guerra
e miséria com imperialismo e um comércio abusivo e desigual, enfrente
as consequências demográficas das suas acções. Artigo de Rafael Poch, La
Vanguardia.
6 de Setembro, 2015
“Uma
imagem que deu a volta ao mundo e acorda as consciências”, explica
Bernard Henry Levy sobre a foto do cadáver do menino sírio que deu à
costa numa praia turca. O “diário popular” Bild a mobilizar uma campanha
de acolhimento de refugiados com a ajuda de futebolistas igualmente
populares. A Chanceler Merkel a apelar à humanidade e aos valores, e a
reafirmar a sua “grande liderança europeia” nesta questão, explicam-nos
editorialistas de renome. Três momentos que confirmam que na Europa já
não há nem lugar para a vergonha. É hora do descaramento.
A estrela mediática parisina, agitador de todas as intervenções
militares do humanitarismo euro-atlântico, não relaciona os seus
discursos belicistas com o menino morto fugido da Síria. Também não o
fez com as vagas balcânicas, afegãs, líbias ou iraquianas. Os Estados
cuja destruição e dissolução ajudou a justificar em nome do interesse
supremo da geopolítica e economia ocidentais, produzem êxodos - e
terrorismos - claramente identificáveis. Quanta mais guerra e desolação
se semear nas regiões em crises, maior será o fluxo para a Europa. É uma
consideração bem banal contudo, quem nos vai recordar disso nestes
dias? O “diário popular”, quem sabe?
Bild é o primeiro diário xenófobo do continente e o de maior tiragem.
A sua campanha é genuína: a grande operação de imagem do país do “Nein”
e do “Grexit”, cujo nacionalismo pós reunificação – inscrito nos
tratados europeus, nas regras do Banco Central Europeu e até mesmo na
mesma moeda única - condenou ao fracasso meio século de integração
europeia e de redenção pelo desastre nazi. O establishment alemão
precisava, certamente, de uma campanha de imagem e a crise dos
refugiados tem-lha dado.
A Alemanha receberá este ano 800.000 refugiados, segundo as cifras
inflacionadas do governo federal, pouco mais de 200.000 solicitaram
asilo nos primeiros sete meses do ano. A Alemanha é o “primeiro recetor
europeu” de refugiados, o exemplo para uma França complexada debaixo da
sombra da Frente Nacional. “A hipocrisia francesa e o exemplo alemão”,
titula o portal Mediapart.
Quem se recorda que em território alemão cometeram-se alguns dos
maiores crimes xenófobos do pós-guerra europeia-ocidental, incluindo a
maior conspiração terrorista dos últimos vinte anos (NSU) com manifestas
cumplicidades no aparelho de segurança, que é ali onde as residências
para imigrantes ardem com maior frequência e onde os corredores do metro
são mais perigosos para os mais escuros? Um “exemplo” que passa por
cima do facto de a imensa maioria dos “imigrantes” na Alemanha serem
europeus de tradição cristã. Um passeio comparativo pelas ruas de Berlim
e Paris oferece uma evidência visual esmagadora a este respeito. Uma
cidade com as cores étnicas de Marselha é completamente impensável na
Alemanha, onde o número de casais mistos entre alemães e turcos (a
excepção) é insignificante. A frase atribuída a um assessor de Nicolas
Sarkozy de que na crise actual, “os alemães administram um fluxo,
enquanto nós temos que administrar um stock, pelo muito que
acolhemos nas últimas décadas”, responde a uma realidade que os próprios
franceses ignoram, por mais que o racismo e a xenofobia sejam problemas
verdadeiramente pan-europeus.
Certamente, a Federação da Indústria Alemã (BDI) não nos lembrará de
nada disto, com as suas fantasmagóricas queixas sobre a falta de
mão-de-obra. Estes sírios educados e de classe média que gritam
“Germany, Germany” na estação de Budapeste e que fogem de uma guerra que
a Europa, e a França em particular, fomentaram, são a solução: o
recurso ideal de uma estratégia para manter a política de salários
baixos que arruinou os poucos sócios europeus ainda capazes de produzir
como a França. Vários milhões deles ajudarão a manter as cotações do
geriátrico federal cujos fundos de pensões fundiram-se no casino
bancário, tal como aconteceu em Espanha com os cinco milhões de
estrangeiros que entraram no nosso “mercado laboral” entre 1998 e 2008
para alimentar a caldeira da bolha.
800.000 estrangeiros são de qualquer forma muitos. Sobretudo quando
aparecem num título de imprensa. Mas os estrangeiros não só entram na
Alemanha como também saem. A cada ano à razão de meio milhão. Nos
últimos dez anos 5,4 milhões de estrangeiros abandonaram a Alemanha,
segundo a estatística federal. A simples realidade é que as cifras do
atual fluxo que se estão a fazer passar por críticas, são anedóticas
tanto para a Alemanha como para um conjunto de 500 milhões de habitantes
como a União Europeia.
Vivemos num mundo integrado e é justo que quem fomenta guerra e
miséria com imperialismo e um comércio abusivo e desigual, enfrente as
consequências demográficas das suas ações. O mesmo acontecerá com os
futuros imigrantes do aquecimento global, esse desastre em progressão de
fatura essencialmente ocidental. As estimativas que a ONU avança para o
futuro em matéria de êxodos ambientais ultrapassam largamente a crise
que agora se vive, incluindo o trágico balanço de mortos no
Mediterrâneo.
A experiência demonstra que as barreiras e os arames farpados não
servem para nada. Em 1993, Texas levantou a sua barreira na fronteira
com o México e o fluxo cresceu. Um ano depois, Califórnia e Arizona
seguiram os seus passos. Desde então, a presença de imigrantes mexicanos
nos Estados Unidos tem triplicado. As barreiras não só não servem para
impedir a entrada de ilegais, como impedem a saída dos que querem
regressar aos seus países. Com o que custou a entrar, ninguém se arrisca
a fazer o caminho de regresso. Portanto, o melhor seria ir pensando
numa política de paz ativa, de resolução diplomática de conflitos, de
proibição da exportação de armas (negócio de que Alemanha é líder
europeu e a União Europeia líder mundial), numa ordem económica menos
injusta e desigual, numa maneira de viver menos crematística e mais
sustentável.
4-9-2015 http://blogs.lavanguardia.com/
Tradução de Mariana Carneiro para o Esquerda.net
Tradução de Mariana Carneiro para o Esquerda.net