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*Escrito por Rubens Glezer e Roberto Dias
A recorrência de protestos e passeatas de grandes proporções é uma
novidade para a população brasileira em geral, que traz problemas
inéditos e complexos, alguns deles jurídicos. O mais recente deles é
saber se a Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP) e a Polícia
Militar (PM) podem controlar ou limitar de alguma maneira os locais de
passeata e sua trajetória. Além disso, há dúvidas razoáveis a respeito
dos deveres de os manifestantes informarem antecipadamente toda a sua
trajetória para a SSP e a PM. Essas dúvidas são sérias, pois a resposta
dada a tais problemas desenha a qualidade dos direitos, da democracia e
da república que temos.
Em 1919, o STF já julgava que o então chefe da Polícia não podia
estabelecer o local de reunião para manifestações. A decisão histórica
do HC 4.781 não foi tomada somente com base em discursos e valores
abstratos, mas levando em conta as peculiaridades do caso, que merecem
atenção: “como é notório, a polícia, por soldados à paisana e desordeiros da pior espécie, dispersou, a tiros de revólver, um comício que, a 25 de março findo, os Drs. Miguel Calmon e Pedro Lago e outros pretendiam realizar, na praça Rio Branco”
(destacamos). Nesse caso, a conduta policial e do Estado foi decisiva
para que o STF se manifestasse de maneira rigorosa sobre o tema, fixando
que a polícia não pode “determinar que só em certos lugares é que eles (os protestos) se podem efetuar, se forem convocados para fins lícitos”.
É claro que o conteúdo do julgamento impressiona por sua atualidade; ou talvez por indicar a falta de atualidade do que vivemos.
Porém, esse julgado foi apenas o início do estabelecimento de
entendimentos que levaram a sério o direito de manifestação e reunião
(durante períodos democráticos, é claro). Em 1999, o STF decidiu que é
parte constitutiva do direito de manifestação incomodar e atrapalhar a
rotina de vida e trabalho daquela comunidade política, mesmo que isso
ocorra na Praça dos Três Poderes. Em 2011, o STF julgou a licitude da
“Marcha da Maconha” e, com isso, ao determinar que os manifestantes não
incorriam no crime de apologia ao uso de drogas, estabeleceu que as
motivações dos manifestantes são democraticamente relevantes. Com isso,
se decidiu que o Estado não pode reprimir o discurso de natureza
política, que busque reformar leis, políticas públicas ou a conduta de
agentes públicos.
Tal conjunto de precedentes não resolve os atuais problemas que as
manifestações recentes – como a do Movimento Passe Livre (MPL) –
enfrentam, mas certamente apontam para uma direção. Atualmente a SSP de
São Paulo considera que a Constituição Federal autoriza a PM a controlar
o trajeto dos manifestantes, em razão de uma ambiguidade semântica no
texto Constitucional. Nos termos da Constituição, “todos podem
reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público,
independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião
anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio
aviso à autoridade competente”. Sob o argumento de que deve ser evitado frustrar outras reuniões, a SSP de São Paulo declarou ter o direito de determinar o trajeto da manifestação do MPL em 21 de janeiro de 2016. Contudo, essa é uma leitura equivocada da Constituição.
Não é possível presumir atualmente que a passagem de uma manifestação
móvel pelo local de outra necessariamente irá frustrá-la. Cabe ao
Estado notificar a organização desses movimentos sobre a coincidência de
trajetos. Porém, apenas se um dos movimentos reivindicar a
exclusividade do espaço é que o Poder Público deve interferir. Em uma
época de fácil comunicação, é possível (por vezes, provável) que
diferentes manifestações se juntem para ganhar sinergia. Além disso,
impedir a passagem por um determinado espaço (quando solicitado por
particulares), não autoriza que disso o Poder Público extrapole sua ação
para determinar todo o trajeto.
Mas, afinal, seria realmente ruim se a SSP e a PM definissem o
trajeto? Será que essa não é uma medida importante para manter uma ordem
urbana razoável? Talvez a resposta poderia ser afirmativa, se o governo
e a PM não tivessem um histórico de repressão, violência, desrespeito aos direitos fundamentais dos cidadãos e ilegalidades ao lidar com tais manifestações. Passando por um cenário de violência excessiva (desde estudantes de escolas públicas até jornalistas), por restrições arbitrárias, chegando a forjar provas falsas para criminalizar manifestantes. Esse histórico importa e explica os motivos de os manifestantes desconfiarem do Estado.
Mas o que a Constituição diz? Ela não dá abertura para a
interpretação da SSP de São Paulo? Em caso de dúvidas sobre como
interpretar uma norma constitucional, é preciso verificar qual é aquela
que melhor se adequa a casos semelhantes, ao histórico de decisões
judiciais e ao ordenamento jurídico como um todo, para apontar qual
sentido da norma dá a melhor concretização para os valores protegidos
pela Constituição.
Todo o histórico de decisões do STF, da teoria jurídica sobre
liberdade de expressão e manifestação, bem como a lógica de direitos
fundamentais da Constituição Federal, aponta para a direção de que
qualquer restrição de direitos fundamentais deve ser realizada no
estrito limite de fortalecer aquela garantia ou liberdade como um todo.
Nesse sentido, qualquer ingerência sobre o direito de manifestação deve
existir para promovê-lo e não para extingui-lo.
Com isso, no caso do confronto entre MPL e o governo de São Paulo, os
manifestantes têm a melhor intepretação de seus direitos. Isso porque há
razões fortes para acreditar que a SSP de São Paulo e a Polícia Militar
apenas querem controlar o trajeto e saber antecipadamente o caminho que
será percorrido para reprimir (violentamente) e coibir a manifestação que ocorre de maneira pacífica, lícita e legítima. Se houver manifestantes violentos, não é preciso dispersar a manifestação, mas deter apenas esses poucos indivíduos que realizam agressões injustificadas.
Para se manifestar, ninguém precisa de autorização. Por outro lado, o
Poder Público não pode definir onde e quando um protesto ocorrerá. E,
enfim, não há motivo para que esse ou qualquer outro movimento pacífico
colabore com a SSP enquanto o Estado e a PM agirem como se ainda
estivéssemos em 1919.
*Rubens Glezer (FGV Direito) e Roberto Dias (PUC-SP) são professores de Direito Constitucional
Originalmente publicado no Jota.
A publicação deste texto é livre, desde que citada a fonte e o endereço eletrônico da página do Correio da Cidadania