Domingo, 23 de outubro de 2016
Do Correio da Cidadania
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Escrito por Pablo Ortellado
O texto reflete mais ou menos o que sei e penso sobre a PEC 241, que vai congelar os gastos do Estado brasileiro por 20 anos.
Pra começar, apresento a maneiro como entendo os argumentos de quem
defende a proposta: para eles, há no Brasil um desequilíbrio fiscal
estrutural (isto é, se gasta estruturalmente mais do que se arrecada),
com aumentos crescentes da dívida pública – movimento que precisa ser
contido e revertido por meio de medidas duras, diluídas num período
longo de tempo (20 anos).
Embora dolorosas, pois reduzirão significativamente os gastos sociais
do Estado, essas medidas serão compensadas pelos seus impactos
positivos imediatos já que, ao resgatar a confiança dos investidores,
elas vão gerar crescimento econômico, diminuição do desemprego e redução
dos juros. Não agir assim, para os defensores da PEC, seria demagogia
perigosa num momento de grave crise e nos levaria ainda mais para o
fundo do poço.
O que me parece errado, tanto no diagnóstico, como nas soluções propostas:
1) ainda que tivéssemos um desequilíbrio fiscal da natureza alegada
pelos defensores da PEC, a solução não poderia ser um corte radical e
horizontal dos gastos do Estado, mas cortar pontualmente gastos que
beneficiam setores mais privilegiados (desonerações e altos salários,
por exemplo) e aumentar a arrecadação, fazendo com que os brasileiros
mais ricos paguem a sua parte no financiamento do Estado.
Poderíamos transformar o vício em virtude, olhando para a nossa
estrutura tributária regressiva – isto é, para o fato de os ricos
pagarem bem menos impostos do que os pobres – como uma oportunidade de
fazer a arrecadação crescer em momento de crise. Isso teria a vantagem
de não mexer no que a imensa maioria paga de impostos;
2) haverá quase seguramente redução significativa dos gastos em saúde
e educação. Atualmente os gastos em saúde e educação são vinculados,
isto é, uma parcela do que o Estado arrecada com impostos é
automaticamente repassada para saúde e educação, de maneira que, à
medida que o país cresce, também crescem os recursos disponíveis para os
serviços públicos. Esse sistema vai ser extinto com a PEC e os gastos
totais do Estado não vão mais poder crescer. Como os outros gastos não
poderão ser cortados (a maior parte deles são gastos com assistência
social e previdência), a tendência é que a distribuição fique mais ou
menos como está e os gastos com saúde e educação se reduzam muito, em
relação ao PIB.
Saber exatamente quanto é um exercício de futurologia, porque não
sabemos quanto o Brasil vai crescer, nem como vai se comportar a
inflação. Mas todas as simulações sérias que eu vi (os estudos do IPEA,
do DIEESE e da minha colega Úrsula Peres), que utilizam expectativas
padrões de mercado ou aplicam a regra da economia brasileira do passado,
mostram redução muito drástica dos recursos necessários à saúde e
educação;
3) existem pelo menos três grandes malandragens na PEC. Ela é uma
obra de gênio. A primeira malandragem é semântica – dizer que não há
cortes de gastos em saúde e educação, mas apenas a suspensão dos novos
aportes. Não se tira recursos, simplesmente se deixa de colocar.
Atualmente, os gastos são vinculados e crescem com a arrecadação. A
partir da nova regra, estariam congelados. No decorrer dos 20 anos, um
verdadeiro abismo separa o que seria gasto com saúde e educação na regra
dos gastos vinculados e o que passaria a ser gasto com os gastos
congelados. Nas simulações, essa diferença é uma redução de 40%;
4) a segunda malandragem é dizer que nada impede que os gastos em saúde e educação continuem crescendo, desde que o teto seja respeitado. Esse argumento só pode ser enunciado com má fé. O próprio governo Temer foi incapaz de distribuir desigualmente o ônus da crise, pesando mais sobre os mais privilegiados – pelo contrário, ele deu aumento para os servidores mais ricos e manteve todas as muito criticadas desonerações às empresas do governo Dilma. Esperar que os gastos em saúde e educação cresçam, vencendo a ação desses poderosos lobbies, se não for má fé, é apenas ingenuidade. E é de uma insensibilidade social sem par esperar que os gastos em saúde e educação cresçam às custas da redução dos gastos em assistência social (como o seguro-desemprego e o Bolsa-Família);
5) a terceira malandragem é diluir essa desconstrução dos serviços públicos em longos 20 anos. Isso tem duas vantagens para os proponentes: a primeira é que praticamente nada acontece sob o governo Temer, que poderá sobreviver ileso, já que nenhum dos cortes serão sentidos até o fim do seu mandato; o segundo é que os efeitos mais terríveis vão ser sentidos aos poucos e a barra pesada só será sentida nos anos 2020, 2030, quando nossa população estiver envelhecida, demandando mais o SUS e os recursos estiverem congelados no estágio atual;
6) como se não bastasse ser equivocada no conteúdo, a medida é um
despropósito na forma. Ela está tramitando de maneira aceleradíssima,
patrocinada por um governo que não submeteu tal programa ao crivo das
urnas. Não foram feitas audiências públicas, os jornais não investiram
no debate público e a maioria dos brasileiros simplesmente não tem ideia
de que está em discussão – e esse desconhecimento não é por acaso: se o
debate fosse realizado, o Brasil jamais aceitaria a medida, porque um
sistema sólido de educação e saúde é um dos poucos consensos deste país
tão dividido;
Foram necessários 30 anos para construir nosso sistema público de
saúde e para ampliar e consolidar nossa educação pública. Tudo, agora,
corre o risco de ser desconstruído com um projeto que está sendo
aprovado sem debate e que deve ter um tempo total de tramitação de
apenas dois meses!
7) por fim, gostaria de enfatizar que embora envolvida em questões
técnicas, essa é uma questão inteiramente política. Se temos mesmo um
desajuste fiscal, temos que fazer um debate público sobre como
resolvê-lo: se aumentamos a arrecadação sobre quem não paga imposto ou
se cortamos gastos e onde cortamos os gastos. O governo Temer faz dois
movimentos antidemocráticos:
a) ele envolve o debate em terminologia técnica, para que seja
literalmente incompreensível pelo público, mesmo pelo público com alta
escolaridade;
b) trata a opção que fez, de reduzir os serviços públicos, como se
fosse uma inevitável reação administrativa à crise, e não uma escolha
política de enfrentar a crise penalizando os usuários do sistema
público, poupando os mais ricos que não pagam impostos e poupando os
credores da dívida pública.
Estou muito persuadido de que a medida é um verdadeiro ataque aos direitos da cidadania e que merece ser enfrentada com uma mobilização no limite das nossas forças.
Essa PEC é de fato uma #PECdoFimDoMundo e, contra ela, só há uma saída: #RuaNeles.
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Pablo Ortellado é filósofo e autor do livro “20 centavos: a luta contra o aumento”.
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