Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Rollemberg e a Caipora

Quarta, 12 de outubro de 2016
Imagem da internet

Na minha aldeia, bem no sertão da Bahia, área de caatinga, região sisaleira, antiga terra habitada por índios tapuias, e colonizada por jesuítas, sempre pulularam lendárias figuras da cultura indígena.

A Caipora sempre teve papel de destaque na minha pequena Itiúba.

Quando menino ouvia aqui e acolá, especialmente das bocas de moradores mais simples e mais antigos, que a Caipora a todo momento fazia arte com as pessoas.

Com a Caipora não se brinca.

Maria de Benício, uma velha negra, neta de escravos e sábia como todas a simpáticas velhas daquela cidade, sempre repetia-me os conselhos de cuidados redobrados quando fosse andar pelas matas, mesmo que na pura e cinzenta caatinga.

Dizia e repetia a cada vez que eu, ainda garotinho, passava em sua simples mas aconchegante casa de taipa, as histórias “reais” para ela que falavam da Caipora. Criança, passava pela casa da Maria de Benício (Benício era o marido dela) para tomar um cafezinho donzelo, aquele que acaba de ser torrado e logo passado no coador de pano. O mais delicioso café que tomei até hoje. Ela sempre fazia questão de me avisar quando seria o dia e a hora do próximo café donzelo. E eu, claro, não faltava.

Mas o que interessa aqui, se é que interessa a alguém, é a história dessa personagem da cultura indígena, a Caipora e o governador Rollemberg.

E Maria de Benício enquanto torrava o café num tacho do mais legítimo barro do chão da minha aldeia, ia falando com uma voz agradável e afável da sua sabedoria de como se proteger das peças aprontadas pela Caipora que habitava as matas e caatingas de Itiúba.

Dizia ela, Nuno —este era o meu apelido, colocado por um irmão pequenininho, mas um ano mais velho do que eu. Ou seria um ano menos novo do que eu?— você que é danado e anda aí por esse mato de Meu Deus, tome muito cuidado com a Caipora.

—Ela é danada. Prega cada uma com as pessoas! Faz com que fiquem ariados [desorientadas, sem rumo, perdidas].

E aí vinha o mais importante da conversa, como se livrar da Caipora ou como mesmo depois de perdido, desorientado, sem rumo, se encontrar novamente. “Se desariar”, como dizia a velha e linda velhinha ao puxar umas baforadas no seu cachimbo e mexer no tacho de barro os grãos de café, para que não queimassem. Era necessário torrar, mas queimar é outra coisa.

O que fazer então se algum dia a Caipora fizesse eu me perder no mato? Antes de repetir o manual de como eu deveria proceder, ela dizia que prevenir era melhor do que tentar remediar. Prevenir para ela era levar no bolso uns pedaços de fumo de rolo (só servia de rolo) e de quando em quando, em algum lajedo ou embaixo de uma frondosa árvore colocar um pedaço. Pois Caipora era figura que adorava fumar um fumo de rolo.

Maria de Benício explicava as manhas para se escapar da Caipora e sorrindo, o mais lindo sorriso, colocava uns três ou quatro pedaços de fumo de rolo em meus bolsos. E eu, com a cara mais cínica, pedia a ela uns papeizinhos de fazer “bode” (na minha aldeia, cigarro feito com fumo de rolo). Ela fazia uma cara de reprovação, mas colocava uns três ‘bodinhos’ já preparados no meu bolso. E alertava com cara e amor de mãe: “Esses você pode até pitar, apesar da professora Lygia, sua mãe, brigar com você quando chegar em casa com cheiro de ‘bode’. Mas os outros você não pode fumar, são para livrar ‘meu filho’ da Caipora, e não se perder aí pelo meio do mato. Ouça meus conselhos", arrematava preocupada.

Eu, danado como era, fumava os três ‘bodes’ e mais um pouco, este outro pouco fumo da Caipora enrolado em palha seca de milho. Por via das dúvidas, aqui e acolá deixava um pedacinho de fumo para aquela figura chamada de Caipora, com quem não se deve facilitar

Mas a principal orientação dada a mim por Maria de Benício referente à caipora, era para se algum dia ela, a Caipora, fizesse com que eu me perdesse, ficasse desorientado no meio da mata, sem rumo, era que, mais rápido do que nunca, tirasse toda a minha roupa, ficasse completamente nu e também o mais veloz possível vestisse toda a roupa pelo avesso. Pronto! Já não me sentiria perdido, voltaria a saber o rumo que tomar. Estaria novamente ‘desariado’.

Lembrando-me da minha aldeia, da minha querida terrinha encravada na Serra de Itiúba, do delicioso café donzelo e, principalmente dos conselhos de Maria de Benício de como voltar a me orientar caso a Caipora um dia viesse a me ‘ariar’, termino aqui ousando dar um conselho:

Rodrigo Rollemberg, rápido!

Vista as roupas pelos avessos.

Se oriente, rapaz!