Quinta, 3 de abril de 2014
Por Ib Sales Tapajós*
Nesta semana o Golpe Militar de 1964
completa 50 anos. Há 50 anos teve início na América Latina um longo
ciclo de golpes militares e contrarrevoluções que durou até a década de
80, levando o historiador Eric Hobsbawm a caracterizar esse período como
“a era mais sombria de tortura e contraterror da história do Ocidente”
[1].
Precisamos refletir sobre o significado desse fato político e a
herança que ele deixou à sociedade brasileira. Primeiramente, é preciso
refutar e combater uma leitura desse período realizada por setores
conservadores da sociedade brasileira, para quem a nossa Ditadura teria
sido “menos pior” do que as demais ditaduras da América Latina. A
ESTÓRIA da “ditabranda”, contada por um Editorial da Folha de São Paulo
em 2009, não resiste a uma análise séria dos fatos: durante o regime
militar brasileiro, mais de 70 mil pessoas foram presas, exiladas e
perseguidas e cerca de 437 foram mortas e desaparecidas, segundo
levantamento feito por familiares das vítimas da ditadura.
Por outro lado, Vladimir Safatle e Edson Teles (ambos filósofos e professores da USP) argumentam, na abertura do livro “O que resta da Ditadura”,
que a violência de uma ditadura se mede não apenas pela quantidade de
mortos deixados para trás, mas principalmente pelas marcas que ela deixa
no presente. Por isso, “a ditadura brasileira foi a ditadura mais
violenta que o ciclo negro latino-americano conheceu” [2].
Com efeito, a ditadura civil-militar que se iniciou no dia 1º de
abril de 1964 e perdurou até o ano de 1985 produziu sequelas que até
hoje são sentidas no dia-a-dia pelo povo brasileiro, sobretudo pelos
pobres, negros e moradores de periferias urbanas, em quem recai a
repressão cotidiana de uma das polícias mais violentas do mundo. A
propósito, estudos apontam que a polícia militar brasileira é a única da
América Latina que comete mais homicídios e crimes de tortura na
atualidade do que durante o período da ditadura militar. [3]
A execução da trabalhadora negra Cláudia Silva Pereira pela PM do Rio
de Janeiro mostra que essa polícia herdou muitas das práticas da
ditadura. Após levar um tiro nas costas e outro no pescoço (!) Cláudia
foi arrastada por cerca de 250 metros no asfalto por uma viatura
policial. As imagens chocaram o país, mas não se trata de um caso
isolado: antes dela, o desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo
de Souza (que também foi torturado pela PM!) mostrou ao país que a
brutalidade policial e a violação de direitos humanos elementares são
uma constante no nosso “regime democrático”.
Memória, Verdade e Justiça: a exceção brasileira
Se há um traço que distingue a ditadura
brasileira das demais ocorridas na América Latina, não é a “brandura”
afirmada pela Folha de São Paulo, mas sim a ausência de uma justiça de
transição e a total impunidade dos responsáveis pelos crimes bárbaros
aqui cometidos. O Brasil é o único país da região onde os torturadores
nunca foram julgados. Nosso Exército jamais reconheceu os crimes
cometidos no regime militar e dirigentes das Forças Armadas chegam ao
cúmulo de taxar de “ressentidos” aqueles que lutam pela memória e
reparação dos crimes da Ditadura!
A instalação da Comissão Nacional da Verdade em maio de 2012 foi um
passo importante para que o povo brasileiro tenha acesso a informações
que os militares golpistas e seus aliados políticos gostariam de manter
escondidas. Entretanto, os trabalhos da Comissão sofrem uma séria
limitação: a recusa do Governo Dilma em propor revisão à Lei da Anistia
(Lei nº 6.683/1979), a qual impede a punição dos torturadores e
assassinos da Ditadura. Pressionado pelas forças militares, o Governo
quer apenas uma “justiça parcial”, que na prática significa manter a
injustiça e a impunidade.
Igualmente lamentável foi a decisão do Supremo Tribunal Federal em
2010, que considerou compatíveis com a Constituição de 1988 os
dispositivos da Lei da Anistia que perdoaram as torturas e demais crimes
de lesa-humanidade praticados por agentes públicos do regime militar.
Entretanto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem entendimento
consolidado de que os Crimes contra a Humanidade não
prescrevem e não são alcançados por anistia. Essa tese foi reforçada
inclusive na condenação que sofreu o Estado Brasileiro na referida
Corte, no caso dos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia, mostrando que
o debate não está encerrado, mas, pelo contrário, pode e deve ser
retomado nos meios jurídicos e políticos nacionais.
Felizmente a Anistia Internacional lançou a campanha#50diascontraimpunidade, querecolherá assinaturas numa petição online a ser encaminhada para a
presidente Dilma Rousseff e ao Congresso Nacional, exigindo a revisão da
Lei da Anistia. Átila Roque, um dos dirigentes da organização no
Brasil, é muito preciso na motivação da campanha: “Enquanto você não
fecha o ciclo da impunidade, favorece que certas práticas, certas
estruturas do Estado, que seguem uma rotina de violação de direitos,
continuem. Persiste uma estrutura de segurança altamente militarizada,
organizada para combater o inimigo interno e não para garantir o direito
à segurança e ao exercício pleno da cidadania” [4].
É fundamental que seja intensificada a pressão popular pela revisão
da Lei da Anistia, de modo a permitir que os criminosos da Ditadura
sejam responsabilizados por seus atos. Devemos seguir o exemplo dos
nossos vizinhos argentinos, chilenos e uruguaios, que colocaram na
cadeia os seus ditadores. Precisamos enterrar práticas do passado que
definitivamente não devem se repetir no presente!
50 anos após o Golpe: lutar pelo direito à manifestação no ano da Copa.
De maneira tragicamente cômica, após 50 anos do Golpe Militar,
parlamentares da base de apoio do Governo da ex-guerrilheira Dilma
Rousseff se articulam para aprovar uma “Lei Antiterrorismo” que é um
claro atentado ao direito de manifestação. O Projeto de Lei do Senado nº
499/2013 nos faz lembrar da famigerada Lei de Segurança Nacional do
Regime Militar, e possui um objetivo preciso: evitar protestos e tensões
sociais durante a Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016. Em nome
da Copa, o Governo Dilma e sua base aliada no Congresso se submetem a
todas as imposições da FIFA, a ponto de limitar direitos civis e
políticos essenciais em qualquer regime democrático. [5]
O Projeto de Lei Antiterrorismo, se aprovado, permitirá uma ampliação
do processo de criminalização dos movimentos sociais já em curso no
Brasil. Exemplo gritante desse processo foi o indiciamento de sete
jovens ativistas das jornadas de junho no Rio Grande do Sul por crimes
como “formação de milícia”. A Polícia Civil gaúcha apontou para a
responsabilização criminal dos jovens pelos atos de “vandalismo” nas
manifestações, mesmo sem ter nenhuma prova ou indício que demonstre a
participação direta ou indireta deles em atos violentos.
Aparentemente, as forças repressivas em nosso país aumentaram o leque
de sujeitos que constituem o chamado “inimigo interno”: além dos
negros, pobres e moradores das favelas, agora também os líderes dos
protestos devem ser monitorados, contidos e reprimidos. O problema é que
a lógica do inimigo interno é própria das ditaduras e dos regimes de
exceção: em 1964 o inimigo eram os “terroristas” e “subversivos”. Agora,
são os “vândalos” – palavra muito usada por empresas da Grande Mídia
que apoiaram o Golpe e, agora, fazem coro à criminalização das lutas
sociais.
O Golpe de 1964 conseguiu estancar pela força um processo muito
intenso de mobilização democrática e popular em nosso país, que teve seu
ápice na luta pelas reformas de base propostas pelo Governo João
Goulart. Agora, 50 anos depois, as classes dominantes, os governos e as
forças de segurança tentam conter o ímpeto radical e contestador que
ressurgiu nas ruas do nosso país nas jornadas de junho.
Isso tudo coloca a defesa do direito de manifestação como prioridade
da pauta da juventude e dos movimentos sociais. Juntamente com outras
pautas de ruptura com os resquícios autoritários do Golpe de 1964, como a
desmilitarização da Polícia, o respeito aos direitos humanos e a
punição dos criminosos da ditadura. Além disso, a luta por uma reforma
política que promova rupturas com o controle do Estado pelo poder
econômico é uma pauta necessária para avançarmos em uma real
democratização do nosso país.
É hora de enterrar de vez o nosso passado ditatorial e caminhar rumo a uma Democracia Real, certamente o principal anseio dos milhões que tomaram as ruas do Brasil em Junho de 2013.
* Ib Sales Tapajós é advogado militante do Juntos, membro da Executiva do PSOL em Santarém/PA.
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[1] Eric Hobsbawm, A Era dos Extremos, Companhia das Letras, 1995. Pag. 433. [2] Edson Teles e Vladimir Safatle. O que resta da Ditadura. Boitempo Editorial, 2010. Pag. 10. [3] Maria Rita Kehl. Tortura e sintoma social, no livro “O que resta da Ditadura”. Pag. 24. [4] Órgão faz campanha por revisão da Anistia.http://www.estadao.com.br/ noticias/impresso,orgao-faz- campanha-por-revisao-da- anistia,1147226,0.htm
[5] Sobre a Lei Antiterrorismo, ler: http://juntos.org.br/2014/02/ a-lei-antiterrorismo-uma- ameaca-ao-direito-de- manifestacao/
[1] Eric Hobsbawm, A Era dos Extremos, Companhia das Letras, 1995. Pag. 433. [2] Edson Teles e Vladimir Safatle. O que resta da Ditadura. Boitempo Editorial, 2010. Pag. 10. [3] Maria Rita Kehl. Tortura e sintoma social, no livro “O que resta da Ditadura”. Pag. 24. [4] Órgão faz campanha por revisão da Anistia.http://www.estadao.com.br/