Quarta, 2 de setembro de 2015
Do Blog Náufrago da Utopia
Por Celso Lungaretti
Não
sendo jurista, vou abster-me de um posicionamento sobre os aspectos
legais do pedido de impedimento da presidenta Dilma Roussseff que Hélio
Bicudo acaba de protocolar na Câmara Federal.
Apenas lembro que, seja ou não cabível o impeachment, Bicudo fez o que,
numa democracia, qualquer cidadão tem o direito de fazer. Golpista é quem violenta a Constituição, não quem exerce um direito que a Carta Magna lhe confere.
A reação de muitos petistas nas redes sociais me deixou profundamente
enojado: ao mesmo tempo em que partiam para a satanização de praxe,
evidenciaram desconhecer um dos maiores heróis brasileiros!
Bicudo, hoje com 93 anos, foi o procurador de Justiça que travou luta dramática contra o Esquadrão da Morte em São Paulo, conquistando uma vitória que lavou a nossa alma numa fase em que só amargávamos derrotas.
O delegado Sérgio Fleury, tocaieiro de Carlos Marighella, tinha suas
digitais impressas nos crimes cometidos por tal grupo de extermínio na
segunda metade da década de 1960 (o Esquadrão nasceu no seio da Polícia
Civil e foi liderado pelo Fleury quando este ainda comandava o
radiopatrulhamento).
Por haver depois se tornado um dos principais assassinos e torturadores
da repressão política, Fleury era ostensivamente protegido pelos
militares. A ditadura chegou a criar uma lei unicamente para evitar sua
prisão imediata quando virou réu de um processo do Esquadrão.
Lula e Bicudo na fase de 'lua de mel' |
Com extrema coragem, Bicudo assumiu os riscos de levar sua cruzada até o fim; o incisivo apoio que recebia do jornal O Estado de S. Paulo
deve ter dissuadido o Esquadrão de atentar contra ele, pois a
repercussão seria enorme, no País e no exterior, provavelmente obrigando
a ditadura a responder com medidas enérgicas, ainda que a contragosto.
Bicudo deu o xeque-mate ao conseguir provar que o Esquadrão não agia com
fins de faxina social, mas sim para fazer jus à mesada de um grande
traficante, que contratou seus préstimos para eliminar a concorrência.
Os militares não tinham restrições morais quanto a proverem um escudo
protetor para torturadores e assassinos covardes, mas a coisa mudou de
figura quando se tornou público e notório que se tratava, ademais, de
capangas do narcotráfico. Então, os milicos deixaram Fleury e os outros
carrascos do Esquadrão entregues à própria sorte.
O primeiro sabia demais e foi dormir com os peixes, caso único de dono
de barco que se afoga no ancoradouro. Os demais, acabaram condenados ou
transferidos para o quinto dos inferno (ou seja, para localidades as
mais distantes possíveis da capital...).
Em seguida, Bicudo ajudou a fundar o PT e foi um de seus maiores
patrimônios morais até que, como vice de Marta Suplicy, assumiu a
Prefeitura paulistana no final de 2004, quando ela se licenciou para
disputar o governo do Estado.
Ao invés de simplesmente ficar esperando o tempo passar, resolveu
governar de verdade e suas iniciativas foram muito elogiadas pela
imprensa, provocando ciumeira no grupo da Marta, que o hostilizou de tal
forma que a ruptura com o partido se tornou mera questão de tempo.
Ocorreria no ano seguinte.
Sua decepção, contudo, vinha de longe. Em 1998 (vide aqui),
presidira a Comissão de Ética que o PT criou para apurar as denúncias
do economista e ex-guerrilheiro Paulo de Tarso Venceslau contra o
empresário Roberto Teixeira, responsável pela montagem do primeiro
esquema de desvio de recursos públicos para os cofres do partido.
Foi uma satisfação à opinião pública, pois Venceslau, depois de passar
dois anos recorrendo em vão à direção do PT, levara suas acusações ao Jornal da Tarde.
Os grãos petistas certamente esperavam que Bicudo fizesse um jogo de
compadres. Ele, contudo, optou por uma justiça salomônica. Recomendou a
expulsão de Teixeira como maçã podre e de Venceslau por ter vazado à
imprensa um assunto interno do partido.
Lula, compadre do Teixeira (o qual até lhe cedia gratuitamente um
apartamento de cobertura no centro de São Bernardo para morar com a
família...), ameaçou desligar-se do PT. Chantageada, a Executiva
Estadual avocou a decisão final e, desautorizando a comissão de ética,
livrou a cara do corruptor. Bicudo teve de engolir um sapo gigantesco.
Depois do desligamento, ele se tornou um crítico contundente do PT, ao qual acusa de ter virado um partido de direita.
Apoiou José Serra na eleição presidencial de 2010 e Marina Silva na de 2014.
Suas justificadas mágoas o levaram, na minha opinião, mais longe do que
deveria ter ido. Mas, mesmo que eventualmente discordemos de alguns dos
seus posicionamentos recentes, temos uma dívida de gratidão para com
ele. Quando mais necessário se fazia, foi um titã. Merece respeito.